Um minhoto na Capital
Completei, então, o meu trabalho de anos onde, terminantemente, demonstrava no nosso Minho imperar a ascendência sueva. (- Até que enfim este gajo escreve algo de jeito - terá rezingado um edil cujo um dos bisavós maternos era negreiro e tornara do Brasil sozinho, apenas com o seu séquito de mulatinhas.) E com tal sucesso científico e literário, ela telefonou um dia, pródiga em felicitações. Assim, de repente e sem saber como, estava eu de volta a Lisboa.
Jantámos, foi toda uma restrospectiva das nossas vidas, e o resto não me perguntem porque não sei responder. Mas logo essa noite ficámos juntos, numa explosão imensa de amor; e na manhã seguinte, ainda entre lençois, planeámos o cruzeiro. Partimos uma semana depois, rumo ao Mediterrâneo, ao Adriático, a não sei quantas fascinantes escalas.
Lindo vapor! - exclamei, na chegada ao Cais do Tabaco. - Lindo quê? - inquiriu ela de rompante, muito simples, umas calças de ganga e uma blusa apenas. Não valeria a pena justificar-me com o designativo que a minha Avó sempre utilizava para as grandes embarcações... - Lindo transatlântico... - ainda corrigi. - Lindo navio! - foi o seu ensinamento final.
Os estrangeiros eram a esmagadora maioria. Não se falava português a bordo, circunstância grave, uma vez que ainda navegávamos águas territoriais nossas, sequer tinhamos passado o Bugio. Fechei-me na minha concha, enquanto a minha loiríssima amada se desdobrava em perguntas e cirandava velocíssima - Sorry, sir! - You are wellcome! - tudo isto entre aquela malta internacional. Já no camarote, assustaram-me os dois malões enormes, acalorou-me o smoking que vinha neles.
Depois perdi-me, gozando os horizontes das águas sem fim. Trazia comigo as mui rurais Cartas do Meu Moinho, de Alphonse Daudet, que calhavam muito bem com os bancos estendidos, nas imediações das piscinas. Num acesso de romantismo entrei numa ourivesaria (que fartura de lojas, dentro do vapor!) e ofereci à minha querida um fio de ouro com um berloque qualquer que ela tinha achado girissimo. Retribuiu-me comprando um vestido e um biquini tão bem decotados que as minhas horas eram uma felicidade permanente. Foi cuidar-se ao cabeleireiro e eu satisfiz um velho sonho: cortei o cabelo e aparei a barba numa barbearia a bordo. - Essa pera bem afiada e as pontas do bigode a retorcer! - ordenei, com toda a força do meu sangue suevo.
Por norma jantávamos informalmente, num dos muitos restaurantes do barco. Mas chegou o dia da gala. O dia do smoking... A minha princesa enchia aquele vestido comprido, da cinta para cima era quase um buraco só... É claro, ai de quem demorasse os olhos nele!!! Um vapor de luxo armado em socialista - jamais!
E de repente, um pensamento como um punhal: na valsa ainda me desenrasco; mas... e o tango, os ritmos latino-americanos? Que ridícula figura me estava destinada naquele baile diabólico?
É quando o vapor esbarrou num qualquer iceberg mediterrânico. Senti-me molhado do suor, senti o pânico, um berreiro imenso...
... E quem berrava mais era a D. Dolores, batendo desesperada à porta do meu quarto ao Campo das Cebolas. - Oh Sr. Machado! venha depressa! Está aqui em baixo um menina furiosa, com pulseiras que tilintam como campaínhas. Diz que não lhe perdoa o atraso e esqueça a ida no cacilheiro à Trafaria...
Ainda estremunhado, recordei - eu ontem, realmente, demorara-me um bocado mais pelo Cais do Sodré, a beber umas cervejas e a ouvir o saudoso e inesquecível Django Reinhardt, num bar já nem sei qual...