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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Vouzela

João-Afonso Machado, 28.06.19

Estamos no coração da velha terra concelhia de Lafões e da sua suculenta vitela - a vitela de Lafões, ainda agora. Uma vila em que poucos atentam e, por isso, desconhecem a sua História. Assim sendo, as suas belezas também. Pacata, despercebida, mantém os galões que lhe pertencem, e ali nasce, ainda hoje, a imprensa lafonense,

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arauto de uma região vasta, quase toda enfiada no distrito de Viseu. Vouzela vive devagar. Vive carregada de flores ao longo de ruas bonitas e de muitas casas monumentais. O silêncio impera.

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Enquanto descemos o empedrado, espreitando um lado e outro, de repente,

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damos connosco já em cima do rio Zela. Limpinho, cheirando a água só, prometendo recantos idílicos, e nós já com uma vontade imensa de tornar a Vouzela, ducá-la no maior respeito, oh Duquesa!

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A vila é pequena. Maior do que ela, a gigantesca ponte que lhe faz sombra. Onde outrora transitavam os velhos comboios da Linha do Vouga.

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Porque vem de uma época em que se construía assim, de monte para monte, sobre vales e rios ocultos na vegetação. E os seus pilares, quais centopeias, tantos como num aqueduto joanino: o Passado, felizmente mantido presente.

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Agora mesmo, uma velha locomotiva alemã de 1912, um vaivém de muitas décadas naquele trajecto, assinala, como um marco miliário, a antiga estação de Vouzela. O caminho-de-ferro, àquelas bandas, pereceu há muitos anos. A outrora ferrovia é pasto de ciclistas e pedestres. Não adiantam os saudosismos, o mundo é o que é...

 

Novas da Pocariça

João-Afonso Machado, 26.06.19

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Cambaleou, - mas não esqueceu o destino do altar. Levava pelo braço a filha casadoira, e a sua expressão saudosa de quem perdeu o sabiá era absolutamente compreensivel. Mas a cerimónia correu numa toada empolgante e todos acharam a igreja lindíssima. O cortejo nupcial partiu a pé, assim atravessou a urbe. Ia começar a festa profana.

A maior atracção consistia nas feras. Não fui capaz de conter a minha curiosidade e desci às catacumbas por elas. Eram tantos os cristãos de olhos postos nos céus, aguardando a sua vez!

Mostraram-mas ainda nas jaulas. Esticadas, dengosas, pareciam dormitar, tostadas do calor. Sem sequer um garfo, um canivete, com que me defendesse, arreceei-me. Mas o campino de serviço - e uma destemidíssima senhora - rindo-se da minha frouxidão, deitaram as mãos a um deles, um matulão, e assim fizeram questão de ser fotografados.

Não demorou, subiam à praça, investindo sempre. E jamais na Pocariça se bandarilhou com tanta arte e engenho. E, sobretudo, com tanta rapacidade.

Seguiu-se incontável fartura de iguarias. O hidromel - proveniente do Poço do Lobo, que é o Olimpo de lá. E prolongada, eterna, alheada da chuva cá fora, a noite acordou dia claro, num tonificante, telúrico, aroma de humidade.

Horas, depois, todavia, soava o alarme: e a Pocariça corria à procura dos seus caracóis, fugidos, todos, com a pluviosidade.

 

O folclore das palavras

João-Afonso Machado, 23.06.19

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Conversando com elas, dizia eu - Há um excessivo rigor convosco, palavras, como se tivesseis todas surgido já adultas, mal-humoradas, pontuais como um relógio de marca.

O léxico entreolhou-se, pareceu soprar de cima de si as primeiras culpas. Prossegui, então, estivessem à vontade, que se descontraissem: as palavras nacem e crecem dadas a tropelias como qualquer significante. Fasem xixi nas calsas até (segundo os antigos costumes) meia dúzia de reguadas as treinarem a, nas calças, fazerem somente chichi. Mas incontinentemente, se quiserem.

Nacidas e crecidas, às palavras vêm-lhe os ésses, como peras e patilhões oitocentistas, e outros ademanes sem os quais a ortografia não sairia, realmente, da deriva. Mas é então o diabo com a semântica que, aliada à fonética, desde o berço das palavras sucita muitos outros equívocos. Sucitamente, são as vésperas da anarquia dos trocadilhos.

Que nunca alguém, todavia, na infância ou na maturidade das palavras, usando-as deixe de compor ideias e tolices, - a harmonia dos termos, a ironia do dia-a-dia. Pôlha!, diz-se na minha terra, bem-educadamente, contornando o mais contundente - Porra!

 

Apanhados (XXIII)

João-Afonso Machado, 22.06.19

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Dou com ele frequentemente aqui na terra: um Opel Kadett B, nascido no meado dos Anos 60. Já o fotografei parado, a dormir, com um ar avelhado e incapaz de transmitir qualquer sensação sobre essa inolvidável Década. Quando em trânsito, a sua regular presença apanha-me sempre desprevenido, com a Canon em casa ou no coldre, muito pouco à mão. Até ao último desfile de automóveis clássicos a que assisti: o Kadett caiu logo ao primeiro tiro.

Com ele viajam pais e avós de então, da mesma idade de nós de hoje. Vêm sem ar condicionado, decerto sem música para ouvir (ou talvez algum faduncho, apenas, na Emissora Nacional ou na Renascença); vêm a anos-luz dos GPS's, do Bluetooth, dos telemóveis; e vêm felizes, com as estradas por conta deles, honrados chefes de família de um tempo em que a poluição não era tema, nem as vias rápidas, nem férias a grandes distâncias, mas ser dono de um Kadett, sim, era augúrio de vida triunfal. Como agora, no capítulo dos sobreviventes do Progresso fulgurante.

 

Badajoz

João-Afonso Machado, 20.06.19

Partindo de Olivença, havia que dar um salto em Badajoz. A terra dos caramelos e de que mais? Nesse dia de um calor excessivo, afuguentando todos para dentro das suas casas. As ruas eram um deserto e nós nele, sedentos, suados, sucumbidos. Mas havia ainda muitos quilómetros pela frente, e vistas em que pôr as mãos antes de anoitecer. Badajoz, francamente falando, não deslumbra. É certo, a sua Sé ninguém lha tira, e o monumento tem grandiosidade:

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Naquela quietude de almas, avultavam memórias dos heróis locais, esculpidas em pedra, episódios que permaneceram ignotos, a puxar a curiosidade sobre os feitos de alcaides, oficiais peraltas 

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e outros hipotéticos combatentes, homens de letras e da governança. O brasume do ar não falava, Badajoz permanecia queda, desdobrando-se em avenidas muito bem postas na formatura, talvez uma cidade nova, do pós-Guerra Civil:

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Lá pelo meio, uma teia de vielas, decerto mais apetecíveis, ensombradas. Com bares e a frescura da cerveja, que se pressentia. Mas, em matéria de comeres, é dificil confiar nos espanhóis...

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Prosseguimos a árdua caminhada, refrescada, aqui e ali, por jardins mais oportunos do que abrigos nos cumes atulhados de neve

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e por fontes. Muitas. Numa batalha insana para humidificar o ar. Pobres esforçadas! Aqui lhes presto a minha homenagem,

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bombeiras a vida toda apagando o fogo do céu. Enquanto os nativos dormiam a sesta e os portugueses penavam em calados e moribundos domínios deles, o contrário de nós, anfitriões de primeiríssima qualidade. Caramelos? Nem uma loja aberta para os comprar.

 

 

O lado acrobático das andorinhas

João-Afonso Machado, 17.06.19

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Entretanto, percebi: a minha máquina fotográfica revela-se incapaz de apanhar répteis e batráquios, mais por causa do Alentejo urbano, da correria na Provincia, dos cães à minha frente a desassossegar o percurso. Ficou o meio aéreo. Nas traves da cavalariça, as andorinhas.

Assim vou andorinhando. Roubo-lhes as cores, os hábitos, uma tonteria de voos e piados, espreitei-lhes os ninhos. Em tudo o mundo vai de pequeno a grande.

Estamos em Junho. Depois da intimidade dos ovos. Os passarecos nasceram, cresceram, puseram penas e saíram do ninho. Mal voam, alvoraçam os progenitores (mais por mim; os cães nunca assustaram andorinhas), é uma algazarra na cavalariça. Andam comigo ideias de Spitfires heróicos entre aquelas paredes.

E eu, velhote, apanhei imagens da juventude deste voo insano. Como é de agora, obviamente sem gravata. Oxalá, pejados de medalhas nas missões que se lhes destinam.

 

A fleumática fraqueza dos nenúfares

João-Afonso Machado, 16.06.19

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Uma manhã calada. De início, excessivamente vazia, sem rumos diante si. Depois... calada, talvez, mas de olhos no sol, já alto, e um pé aqui, outro ali. Afinal, gente com vida. Havia muitos cães, a manhã toda foi deles.

(Percebe-se o regresso à ferrugenta amálgama de um berço cada vez mais imaginário. Ideias perdidas no Tempo, a memória já só uma estrela cadente em noites desanuviadas do espírito.)

Miudezas das horas. Estão no ar, nas cores, nos interstícios das pedras. Na água, flutuando como os nenúfares, rente à cavalgada dos cães. Entre a conversa deles, as suas gargalhadas e uma insaciável sede canina, - um pé estouvado, um flor que se afoga. Tal a sustentabilidade dos nenúfares, aliás de apreciável serenidade, como a que nos falta todos os dias.

Mas não, afora o risco, não há ruídos, nem projectos, nem relógios a tolher-lhes o berço. Frágil mas não imaginário. E a manhã prosseguiu pelas centelhas da memória já perdida dos nenúfares.

 

 

Apanhados (XXII)

João-Afonso Machado, 16.06.19

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Creio ter sido o segundo modelo da Jaguar, e o primeiro a ser fabricado após o fim da Guerra Mundial. Obviamente, não é um carro para todos os dias e raros são os se vêem nas ruas. Este há de ser famalicense, de algum dos muitos coleccionadores que por cá vivem. O Jaguar XK 120, aqui numa versão não capotada, tem a distinção dos carros britânicos e é, por isso, um dos encontros felizes que, muito de vez em quando, nos acontecem na vida. Até porque uma coisa é o museu, outra, completamente diferente, apanhá-lo em circulação.

 

Monsaraz

João-Afonso Machado, 14.06.19

Outro concelho extinto. Outra vila carregada de história desde a sua conquista aos muçulmanos pelo célebre, famigerado, Geraldo Sem Pavor, aí por 1167. Nos nossos primórdios. A fortificação, num alto, era inevitável, contando os inimigos - Castela, de um lado, os sarracenos, do outro.

O tempo, menos belicoso, ditaria mudanças. No meado do século XIX, a velha vila de Monsaraz ver-se-ia integrada no recém-criado concelho de Reguengos de Monsaraz. Ficou a memória e a beleza do lugar.

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Hoje Monsaraz já não espreita somente a aridez do Alentejo. Banha-a o lago sem fim do Alqueva. Conhecia-a antes de tanta água. Da água toda que a torna mais bonita e apetecível. Compreenda-se isto subindo às suas muralhas.

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Assim a velha vila ganhou outra vida, apostada hoje no turismo. No Neolitico que a circunda. Em tradições de que não abdica: ainda agora reclama para si o estatuto de Barrancos, o poder legalizado de lidar "touros de morte". Uma tourada que decorre com os próceres do Poder Central, contra os enfermos das causas da "depressão urbana".

Quem lá habita, entre muralhas,

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não engrupará, decerto, hordas obscenamente primitivas e sanguinárias. É gente modesta que vive dos restaurantes e do artesanato. Resta reconhecê-los e respeitá-los. Portugal não pode ser o alvo dos decretos legislativos e Monsaraz tem por si o peso da antiguidade, essa forma autorizada de permanecer o que é. Ainda na juventude do Estado, já o seu Hospital da Misericórdia operava:

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Aliás, uma organização inteira dos de Monsaraz, à sombra do castelo, da sua maternal torre de menagem,

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sabedores de si, habituados a silêncios que, pese embora a invasão dos estranhos, ávidos da sua beleza, se mantém,

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sempre zelozos de um branco único, o branco que só o Alentejo consegue manter ao longo das centúrias, parco e humilde, grandioso na sua simplicidade de quem é e não comenta os outros, sejam, ou não, de gosto inferior.

 

 

"Poema de profecia militante"

João-Afonso Machado, 12.06.19

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Era um Passado de idade conhecida

o defunto, um fantasma remoçado

a trotar de vida e cores,

 

os olhos brilhando histórias e amores.

 

Pelas ruas vagueando

futurava outros idos ainda presentes,

almas penando, gemidos de gentes

 

de um mundo vil, doente e fantástico,

todo eterno plástico.

 

 

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