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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O Porto que ainda resiste ao invasor

João-Afonso Machado, 07.05.19

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Dizia eu, então, o velho Porto de tantas décadas esfumou-se. Era, sem dúvida, um Porto mais ribeirinho, mais do litoral. Espoliaram-no dos seus comedidos haveres e enforcaram-no numa palmeira, com piriquitos a bicarem-lhe o cadáver. Quase não ficaram sobreviventes. E nesta tristeza toda, surge-me à tona, de repente, o Porto oriental.

Sim, a velha cidade pelo seu ângulo mais fabril, mais feio, agora o único com garantia de origem. Campanhã, S. Roque da Lameira, os barbos pescados a iscar com batata frita, sob a ponte do Freixo.

O Campo 24 de Agosto revisto como o nosso St. James Park. A negra - vetusta - fealdade da Rua do Bonfim promovida - embelezada - homenageando a sua veracidade. Com os seus casarões entaipados, os prédios esguios, sem garagem nem elevador, o pó, o ruído, os promíscuos mistérios da noite.

(E do dia. Calculo, um ou dois andares abaixo do meu, que seria o 4º, o lupanar carregado de mulatinhas de umbigo decotado até ao pescoço, barriguinhas derretendo por fora das calças justas. A vizinhança incomoda-se, protesta, arreceia-se: há muito ninguém paga o condomínio, a sua administração inexiste, a bandalheira é completa.)

Mas este é o Porto de sempre. O Porto portista. Em uma dessas ruelas onde ele se perde, há o café da esquina: ecran enorme, muito futebol; a um velho conhecido, o Neves, acontece um estrondoso descuido intestinal, e logo sem pestanejar, ainda no eco, o Zeca muito pronto - Anda Tibi, que essa foi à trave!...

Habito um apartamento mais velho do que eu, neste Porto que ainda sinto. Mas damo-nos bem e, à janela, regalamos a vista no oceano de telhados e cortelhos de zinco circundante. De quando em vez, a emoção de uma pomba arrulhando perto, qualquer pardalito. E as verduras expostas nos passeios pelos pequenos merceeiros, as suas filhas, já cachopas a puxar corpo, recolhendo a mercadoria pelo anoitecer. Ou então as moscas inertes, sem vida, no interior de montras antigas, devoradas, descoradas pelo sol de anos e anos.

Bebo mais uma cerveja, na expectativa de outro momento de sorte para Tibi. O mundo tem ali a dimensão de um bairro, nem sempre com o sotaque mais bonito. Mas é o Porto que resta, tranquilizadoramente próximo da auto-estrada.

 

Isto ainda é o Porto?

João-Afonso Machado, 05.05.19

Cada vez mais me convenço, foi a minha despedida do Porto, aliás balbuciada numa mescla de idiomas - bye, au revoir - e, também, - sorry, excusez moi - tanta a cotovelada para lograr passar e a angustiante ausência de compatriotas.

Não me admiraria, há quem garanta é a volta de Soult, desta feita imparável, arrasador. E consta, na Sé, o nosso Bispo está por horas, cercado de um imenso exército protestante.

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A Foz (a velha Foz dos submarinos), venceu-a um mundo novo, tropical, povoado de aves exóticas. O tradicional nevoeiro dos idos da aliança britânica (de súbito dissolvida na amálgama invasora), sumiu ao lado das tasquinhas da Cantareira, onde comiamos pratos simples, concebidos do peixe do rio, e bebíamos canequinhas de um branco suspeito, martelado. Agora tudo é gourmet, desde a primeira tapa estrangeirada ao descoroçoante, nórdico, preço final. Coisas de gente fina, endinheirada, olho em redor e avisto dois portugueses.

É o adeus ao Porto. Ele lá vai, adiante de uma manada espanhola de bicicletas alugadas. Um chinfrim de campaínhas impacientes em terras outrora nossas... Agora, os passeios da Marginal pertencem-lhes e, do Freixo à Arrábida, o rio é patrulhado por simulacros de rabelos com ninhadas e ninhadas de turistas lá dentro.

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Sobre a pesca, estamos conversados. O pescador tripeiro, membro ilustre da 3ª idade, reformado e pachorrento, finou-se. À fome, depois dos editais que não lhe consentiam apoiar a cana nas amuradas e esperar a tarde toda o peixe viesse pelo anzol ao seu jantar. A nova tirania apoderou-se desse espaço para as suas bicicletas, as suas deambulações.

Aí por Massarelos, militares armados ordenaram-me retrocedesse, à míngua de documentos meus (decerto o passaporte) que abrissem as portas desta nova concessão do mundo global. Assim regressei à quietude e independência do Interior, na final despedida em que juraria ter ouvido o Porto salmodiar - Este corpo que abraçaste/Que já foi o teu prazer,/Vai tornar-se em pó, em terra,/Adeus, Márcia, eu vou morrer - recordando 1829, a terrível narração das derradeiras horas dos Mártires da Liberdade por Oliveira Martins, no seu Portugal Contemporâneo

 

"João de Lemos, poeta legitimista irredutível"

João-Afonso Machado, 03.05.19

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Natural da Régua – onde ainda hoje é considerado uma figura literária de destaque – João de Lemos Seixas de Castelo Branco, viu a luz do mundo em 6 de Maio de 1819. Um ano antes, pois, da revolução vintista e, decerto, um início de vida pautado por toda a turbulência política que atingiu o Reino dessa época. Não obstante, João de Lemos rumaria Coimbra, onde se licenciou em Direito.

Não terá combatido na Guerra Civil – era muito novo ainda. Mas viveu intensamente o movimento do ultra-romantismo e, porventura assim, abraçou a causa legitimista para todo o seu sempre. É neste contexto que vem a desempenhar diversas missões diplomáticas ao serviço do Senhor D. Miguel, já expatriado, e a dirigir, a partir de 1848, o jornal tradicionalista A Nação. Foi, entretanto, colaborando em diversos periódicos e revistas, onde deixava quer as suas impressões políticas, quer também os seus poemas.

Tudo somado valeu-lhe o exílio em Londres… A sua obra literária (a que há a acrescentar o teatro) consta de diversas publicações em que se destaca o Cancioneiro, em três volumes (I – Flores e Amores; II – Religião e Pátria; e III – Impressões e Recordações), talvez a súmula de vida do ilustre poeta reguense.

Mas o seu saudosismo e o seu lirismo ficaram imortalizados no poema A Lua de Londres, escrito precisamente nessa cidade da sua proscrição, onde o grande astro raramente se vê no céu. Ei-lo, o poema:

É  noite. O astro saudoso

rompe a custo um plúmbeo céu,

tolda-lhe o rosto formoso

alvacento, húmido véu,

traz perdida a cor da prata,

nas águas não se retrata,

não beija a flor no campo a flor,

não traz cortejo de estrelas,

não fala de amor às belas,

não fala aos homens de amor.

 

Meiga Lua! Os teus segredos

Onde os deixaste ficar?

Deixaste-os no arvoredo

das praias de além do mar?

Foi na terra tua amada,

nessa terra tão banhada

por teu límpido clarão?

Foi nas terras dos verdores,

na pátria dos meus amores,

pátria do meu coração!

 

Oh! que foi…. Deixaste o brilho

nos montes de Portugal,

lá onde nasce o tomilho,

onde há fontes de cristal;

lá onde viceja a rosa,

onde a leve mariposa

se espaneja à luz do Sol;

lá onde Deus concedera

que em noite de Primavera

se escutasse o rouxinol.

 

Tu vens, ó Lua, tu deixas

talvez  há pouco o país

onde do bosque as madeixas

já têm um flóreo matiz;

armaste no ar a doçura,

do azul a formusura,

das águas o suspirar.

Como hei-de agora entre gelos

Dardejar teus raios belos,

fumo e névoa aqui amar?

 

Quem viu as margens do Lima,

do Mondego os salgueirais;

quem andou por Tejo acima,

por cima dos seus cristais;

quem foi ao pátrio Douro

sobre fina areia de ouro

raios de prata esparzir

não pode amar outra terra

nem sob o céu de Inglaterra

doces sorrisos sorrir.

 

Das cidades a princesa

tens aqui; mas Deus igual

não quis essa lindeza

do teu e meu Portugal.

Aqui, a indústria e as artes;

além, de todas as partes,

a natureza sem véu;

aqui, ouro e pedrarias,

ruas mil, mil arcantes;

além a terra e o céu!

 

Vastas terras de tijolo,

estátuas, praças sem fim

retalham, cobrem o solo,

mas não me encantam a mim.

Na minha pátria, uma aldeia,

por noites de lua cheia,

é tão bela e tão feliz!...

Amo as casinhas da serra

coa luz da minha terra

nas terras do meu país.

 

Eu e tu, casta deidade,

padecemos igual dor;

temos a mesma saudade,

sentimos o mesmo amor.

Em Portugal, o teu rosto

de riso e luz é composto;

aqui, triste e sem clarão.

Eu, lá, sinto-me contente;

aqui, lembrança pungente

faz-me negro o coração.

 

Eia, pois, ó astro amigo,

 Voltemos aos puros céus.

Leva-me, ó Lua, contigo,

preso num raio dos teus.

Voltemos ambos, voltemos,

que nem eu nem tu podemos

aqui ser quais Deus nos fez;

terás brilho, eu terei vida,

eu já livre, tu despida

das nuvens do céu inglês.

Além do inconformismo e da saudade, uma ponta realista das diferenças meteorológicas (chamemos-lhes assim), dos modos do quotidiano. É sempre difícil um português aclimatar-se na Grã-Bretanha. João de Lemos ansiava pelo regresso ao seu berço. E logrou esse intento em 1846, por altura da Patuleia. Provavelmente vinha disposto a combater. Entrou na barra do Douro num navio inglês, disfarçado de marinheiro. Com ele vinha João Machado Pinheiro, depois o 1º Visconde de Pindela. Através dos relatos deste último, ficamos a saber, o desembarque foi complicado, ambos exilados, figuras malgradadas no regime vigente. (Tolhe-os o Serra do Pilar, da Armada Real.) Mas conseguiram-no, embora em vésperas da Convenção de Gramido. Acorrem juntos, contra Costa Cabral, à Junta do Governo Supremo do Reino, já em vão. Depois, João Machado escreveria o seu A Lua de Londres, não diria um plágio, mas uma inspiração imediata na genialidade do seu Amigo. Plausivelmente, no exílio, outra vez…

Com a Regeneração foi o reencontro de cada um consigo mesmo. A pacificação. João de Lemos tornou definitivamente a Portugal, onde morreria na Figueira da Foz, a 16 de Janeiro de 1890.

 

(In Real Gazeta do Alto Minho, nº 18)

 

 

"Soneto do Geraldo"

João-Afonso Machado, 01.05.19

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Lenda minhota Castro Laboreiro,

Alma feita aos lobos, cores da noite

Musicadas sem pauta, cancioneiro

De cimos onde não há quem se afoite;

 

Desceu. Veio aos planos o dianteiro,

Outros depois a desafiar o açoite

(Ai de quem! Gente do chão rasteiro,

Caninos navalhos o aviso – doi-te!)

 

E Geraldo também na migração,

Geraldo ainda mancebo, pata forte

Como seu pai, na frente da matilha,

 

Geraldo, o porte mítico de um cão,

Olho terno das feras logro e armadilha,

Dias amigos e pelo amigo… a morte!

 

 

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