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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Os gatos da Maria (relendo Torga)

João-Afonso Machado, 27.05.19

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Aquela gata não tinha graça alguma, mesmo pintada a três cores, fenómeno raro e de apreciado valor. O diabo da bicha era como se o branco, o negro e o amarelo se diluissem por completo num caldo imóvel, estuporado, frio e insosso, no qual ninguém punha a boca. Nem o velho macho preto da vizinha, lustroso e imponente, uma pantera, inquestionvelmente o garanhão dos quintais e telhados das redondezas.

A gata melava-se toda. Caíra lá em casa, sabe Deus como. Não miava, gemia. Também não caminhava - arrastava passos dolorosos, andamentos de caracol. Semelhante estátua não cativava simpatias. Até que um dia, percebeu-se, a barriga lhe inchava.

- Está prenhe! - sentenciou a Maria.

Mas como? Como seria ela capaz, enramelada, morronhenta, sempre enfiada no borralho?

O certo é que as semanas passavam e a pança da gata crescia. Ia crescendo, como o resto da desgraçada, sem pressas, indiferente a tudo, até ao calendário da gestação.

- Isto é mal que a gata tem. Qualquer tumor... - voltou a sentenciar a Maria.

Não que a bicha aparentasse sofrer mais do que a sua congénita tristeza de viver. Mas aquela barriga toda soprada, inexplicavelmente cheia de algo inerte...

- Ou então anda com eles mortos lá dentro - alvitrou ainda a Maria.

Se a gata estava doente, se a ninhada enquistara nas suas entranhas, se até a parir demonstrava a sua pasmaceira - o veterinário diria. A Senhora, compadecida, resolveu tomar providências.

- Oh Maria, amanhã chamas o Lopes, arranjas uma caixa de vime e vão ambos no carro ao Dr. Anacleto. Também não é direito deixar o bichinho neste estado, pode até ser preciso operá-la.

- Pois sim, minha Senhora.

Mas ao outro dia a gata surgiu do jardim elegante, mais ligeirinha, sem ventre que se visse.

- E a ninhada? Onde os terá tido?

- Por aí. E já os comeu todos, tão certo como eu me chamar Maria!

O caso foi dado por findo. Uma semana volvida, porém, os gatinhos apareciam no vão das escadas para a cave.. Amarelos e branco, um apretalhado, os olhitos bem espertos.

- E agora? O melhor é afogá-los...

- Não digas asneiras, Maria; ainda por cima já tão granditos...

- Mas ainda hoje dei com a gata a aninhá-los no armário da loiça! Por pouco não partia um jarro!

- Faz-lhes uma caminha lá em baixo. E põe um prato com comida para a mãe.

A resmungar contra o mundo, a Maria cumpriu as ordens recebidas. O que fazer com tanto gato? É que nem por oferta alguém os quereria. Raios partissem a murcona da bicha, para o que lhe havia de dar! Mas tudo fez, escrupulosamente, regressando à cozinha.

- Amanhã não esqueças: outro prato com comida para a mãe...

Os dias não se aquietaram. Os bichanos espevitavam, de olhos escuros, vivos, arrelampados. Já davam uns saltinhos a provocarem-se para a brincadeira. E a mãe, bem tratada, bem os tratava.

Certa manhã, a Senhora foi dar com a Maria num pranto incontrolado, que até lhe molhava a gola da farda.

- Então o que é isso, mulher?!

- Foram os meus ricos gatinhos, minha Senhora! Sumiram. Diz o Lopes que é capaz de ser doninha que anda por aí. E eu que já tinha nome para eles todos! A mãe mia por esses cantos, mais parece a Lurdes carpideira!