Os gatos da Maria (relendo Torga)
Aquela gata não tinha graça alguma, mesmo pintada a três cores, fenómeno raro e de apreciado valor. O diabo da bicha era como se o branco, o negro e o amarelo se diluissem por completo num caldo imóvel, estuporado, frio e insosso, no qual ninguém punha a boca. Nem o velho macho preto da vizinha, lustroso e imponente, uma pantera, inquestionvelmente o garanhão dos quintais e telhados das redondezas.
A gata melava-se toda. Caíra lá em casa, sabe Deus como. Não miava, gemia. Também não caminhava - arrastava passos dolorosos, andamentos de caracol. Semelhante estátua não cativava simpatias. Até que um dia, percebeu-se, a barriga lhe inchava.
- Está prenhe! - sentenciou a Maria.
Mas como? Como seria ela capaz, enramelada, morronhenta, sempre enfiada no borralho?
O certo é que as semanas passavam e a pança da gata crescia. Ia crescendo, como o resto da desgraçada, sem pressas, indiferente a tudo, até ao calendário da gestação.
- Isto é mal que a gata tem. Qualquer tumor... - voltou a sentenciar a Maria.
Não que a bicha aparentasse sofrer mais do que a sua congénita tristeza de viver. Mas aquela barriga toda soprada, inexplicavelmente cheia de algo inerte...
- Ou então anda com eles mortos lá dentro - alvitrou ainda a Maria.
Se a gata estava doente, se a ninhada enquistara nas suas entranhas, se até a parir demonstrava a sua pasmaceira - o veterinário diria. A Senhora, compadecida, resolveu tomar providências.
- Oh Maria, amanhã chamas o Lopes, arranjas uma caixa de vime e vão ambos no carro ao Dr. Anacleto. Também não é direito deixar o bichinho neste estado, pode até ser preciso operá-la.
- Pois sim, minha Senhora.
Mas ao outro dia a gata surgiu do jardim elegante, mais ligeirinha, sem ventre que se visse.
- E a ninhada? Onde os terá tido?
- Por aí. E já os comeu todos, tão certo como eu me chamar Maria!
O caso foi dado por findo. Uma semana volvida, porém, os gatinhos apareciam no vão das escadas para a cave.. Amarelos e branco, um apretalhado, os olhitos bem espertos.
- E agora? O melhor é afogá-los...
- Não digas asneiras, Maria; ainda por cima já tão granditos...
- Mas ainda hoje dei com a gata a aninhá-los no armário da loiça! Por pouco não partia um jarro!
- Faz-lhes uma caminha lá em baixo. E põe um prato com comida para a mãe.
A resmungar contra o mundo, a Maria cumpriu as ordens recebidas. O que fazer com tanto gato? É que nem por oferta alguém os quereria. Raios partissem a murcona da bicha, para o que lhe havia de dar! Mas tudo fez, escrupulosamente, regressando à cozinha.
- Amanhã não esqueças: outro prato com comida para a mãe...
Os dias não se aquietaram. Os bichanos espevitavam, de olhos escuros, vivos, arrelampados. Já davam uns saltinhos a provocarem-se para a brincadeira. E a mãe, bem tratada, bem os tratava.
Certa manhã, a Senhora foi dar com a Maria num pranto incontrolado, que até lhe molhava a gola da farda.
- Então o que é isso, mulher?!
- Foram os meus ricos gatinhos, minha Senhora! Sumiram. Diz o Lopes que é capaz de ser doninha que anda por aí. E eu que já tinha nome para eles todos! A mãe mia por esses cantos, mais parece a Lurdes carpideira!