Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Recado para o Alentejo

João-Afonso Machado, 30.05.19

IMG_0645.JPG

Tem-te quedo, não saias da sombra. Nem sequer chegámos ao Verão e já me vens com histórias de vagas de calor! Achas-me com cara de um rapazinho de vinte anos? Pensas-te aqui ao dobrar da esquina, a dois passos de uma cerveja fresquinha?

Vão ser muitos os quilómetros. Quase um Portugal todo por uns cenários que a minha alma não dispensa, por algumas ideias que eu consiga acertar. Mas sem bafos de vulcão, se fizeres a fineza.

A brisa sobre o fresco, como um leque. Umas nuvenzitas no céu, que nunca usei guarda-sol. Noites de grilos e cegarregas, apenas. Aves, todas quantas quiseres soltar. E a estrada livre, sem buracos, bem atapetada até à fronteira, se não te importas.

 

 

Os gatos da Maria (relendo Torga)

João-Afonso Machado, 27.05.19

IMG_0954.JPG

Aquela gata não tinha graça alguma, mesmo pintada a três cores, fenómeno raro e de apreciado valor. O diabo da bicha era como se o branco, o negro e o amarelo se diluissem por completo num caldo imóvel, estuporado, frio e insosso, no qual ninguém punha a boca. Nem o velho macho preto da vizinha, lustroso e imponente, uma pantera, inquestionvelmente o garanhão dos quintais e telhados das redondezas.

A gata melava-se toda. Caíra lá em casa, sabe Deus como. Não miava, gemia. Também não caminhava - arrastava passos dolorosos, andamentos de caracol. Semelhante estátua não cativava simpatias. Até que um dia, percebeu-se, a barriga lhe inchava.

- Está prenhe! - sentenciou a Maria.

Mas como? Como seria ela capaz, enramelada, morronhenta, sempre enfiada no borralho?

O certo é que as semanas passavam e a pança da gata crescia. Ia crescendo, como o resto da desgraçada, sem pressas, indiferente a tudo, até ao calendário da gestação.

- Isto é mal que a gata tem. Qualquer tumor... - voltou a sentenciar a Maria.

Não que a bicha aparentasse sofrer mais do que a sua congénita tristeza de viver. Mas aquela barriga toda soprada, inexplicavelmente cheia de algo inerte...

- Ou então anda com eles mortos lá dentro - alvitrou ainda a Maria.

Se a gata estava doente, se a ninhada enquistara nas suas entranhas, se até a parir demonstrava a sua pasmaceira - o veterinário diria. A Senhora, compadecida, resolveu tomar providências.

- Oh Maria, amanhã chamas o Lopes, arranjas uma caixa de vime e vão ambos no carro ao Dr. Anacleto. Também não é direito deixar o bichinho neste estado, pode até ser preciso operá-la.

- Pois sim, minha Senhora.

Mas ao outro dia a gata surgiu do jardim elegante, mais ligeirinha, sem ventre que se visse.

- E a ninhada? Onde os terá tido?

- Por aí. E já os comeu todos, tão certo como eu me chamar Maria!

O caso foi dado por findo. Uma semana volvida, porém, os gatinhos apareciam no vão das escadas para a cave.. Amarelos e branco, um apretalhado, os olhitos bem espertos.

- E agora? O melhor é afogá-los...

- Não digas asneiras, Maria; ainda por cima já tão granditos...

- Mas ainda hoje dei com a gata a aninhá-los no armário da loiça! Por pouco não partia um jarro!

- Faz-lhes uma caminha lá em baixo. E põe um prato com comida para a mãe.

A resmungar contra o mundo, a Maria cumpriu as ordens recebidas. O que fazer com tanto gato? É que nem por oferta alguém os quereria. Raios partissem a murcona da bicha, para o que lhe havia de dar! Mas tudo fez, escrupulosamente, regressando à cozinha.

- Amanhã não esqueças: outro prato com comida para a mãe...

Os dias não se aquietaram. Os bichanos espevitavam, de olhos escuros, vivos, arrelampados. Já davam uns saltinhos a provocarem-se para a brincadeira. E a mãe, bem tratada, bem os tratava.

Certa manhã, a Senhora foi dar com a Maria num pranto incontrolado, que até lhe molhava a gola da farda.

- Então o que é isso, mulher?!

- Foram os meus ricos gatinhos, minha Senhora! Sumiram. Diz o Lopes que é capaz de ser doninha que anda por aí. E eu que já tinha nome para eles todos! A mãe mia por esses cantos, mais parece a Lurdes carpideira!

 

 

Terras de Bouro

João-Afonso Machado, 23.05.19

Decerto a mais pacata vila minhota. Não se ouve, não se vê vivalma. Como se todos tivessem partido, com toda a certeza para os encantos do Gerês. Não é longe, mas é sempre a subir.

CÂMARA.JPG

O edifício da Câmara Municipal dá a exacta noção da quietude destas bandas, não obstante um concelho imenso, que em duas freguesias suas traga a serra do Gerês inteira e quase entra por Espanha adentro. Mas cá em baixo, barra-se terminantemente a agitação - e o turista prossegue até se perder, e a televisão surgir com imagens dos bombeiros seus salvadores. Lá nos picos.

FONTENÁRIO.JPG

Por aqui ouve-se o cantar das águas, a vila tem o seu centro, o seu jardim, e nele o fontenário cantador. Continuamos sem ouvir o insano ruído automóvel e, em redor, são muitas as marcas do antigo mundo rural que pouco distinguia a vila dos horizontes todos que a cercam.

RURAL.JPG

É um passeio, de pedra em pedra, na ausência de palácios e outras grandes manifestações arquitectónicas. Por isso toda a disponibilidade de espaço para a esplanada magnífica, por acaso esse dia um nada animada (eles não seriam mais de uma dúzia...) com a derradeira jornada do campeonato de futebol.

ESPLANADA.JPG

Estava-se bem. Eu teria ficado, a olhar para o silêncio, ponderando ainda o inacreditável: lá para cima, as aldeias, as serranias, tudo parece muito mais agitado do que a Vila de Terras de Bouro.

ROUPA A SECAR.JPG

E será que a sede do concelho se importa? Não haverá por ali uma pontinha de despeito, ao menos? 
Não me pareceu. O caminho para riba daquelas gentes será conhecido e calcorreado quando Deus quer e manda. Enquanto não, a vila vai dormindo a sua sesta que, sendo dia de sol, a roupa à janela seca num instante. Deixá-los ir, mais a muita pressa deles.

 

 

 

De um momento de liberdade

João-Afonso Machado, 22.05.19

SOBREIRO.JPG

À sombra do tronco musculado sem camisa ouvi o segredo, o conselho - pega na caneta, escreve tudo menos as palavras. - Atenta o mundo - rumorejou o corpo enorme, braços feitos de muitos anos. - Escreve, escreve, escreve... - O quê? - O que não te vai nos ouvidos, tão simples quanto isso. Tens papel, tens a tua eleita caneta, que mais queres?

Levado no fim dos ponteiros do relógio, assentei, escrevi. Talvez haja vociferado. Contra o ruído, a merda que é hoje a caneta, a escravidão, em suma. Pensei as tecnologias, o vício de publicar, a porrada que o meu mundo sofreu.

Descarnei em busca de expressões geniais, contundentes.

Depois deixei a caneta solfejar as aves. O murmúrio das ramagens. Braços afeitos ao sol e aos ventos, sempre presentes, seja calor ou o tormento do frio serrano, acobertaram-me. A rocha musguenta cantou á-bê-cês. De olhar no além procurei apenas o dom da escrita, um modo ortografado da alma.

Aquela força hercúlea da Natureza não queria mal à Gramática. Ensinou-ma, até. Mas recomendou recato, recados contra os incautos da cacafonia. No fim riu-se, gozou, compreendeu - do cimo do penedo, eu apenas deixara as ideias fluirem.

 

 

Bernardino, o ás dos velocípedes

João-Afonso Machado, 20.05.19

EU E BERNARDINO.jpg

Era eu um jovem de 30 anos, vi-me envolvido num embróglio que me custou, além de outras mazelas, uma fractura e um traumatismo craniano. Lembro bem: já consciente, tentei impor me deixassem ir para casa, hospitais não eram comigo. O neurologista, um sábio, disse apenas - Você fica, por muito menos do que isso morreu o Joaquim Agostinho!

Assustei-me. De tal maneira que o meu Pai, logo presente, foi atrás do clinico, alertando-o de que ainda me matava da cura. E assim decorreu uma semana de internamento.

Andaram muitos anos e, de cada vez que pegava uma bicicleta, o episódio vinha-me ao espírito, não pela sarrafusca na boite, mas pela invocação de Agostinho. Como agora mesmo, quando fui convidado para um passeio ciclistico homenageando os museus da nossa terra. A mim que não montava uma bicicleta desde antes de terem inventado as rotundas.

Mas lá fui, já anunciara que ia. Com o grupo das pasteleiras, dos benquistos da antiga roupa domingueira, da criançada e... do presidente Bernardino!

Não perde uma, o velho malandro. Ainda agora, com quase duzentos anos. Por ele um jovem actor amigo, da actual encarnação (que eu conheci noutra, a de um velho morgado minhoto), encartolado, com o seu fraque, barba bem tratada e coisa e tal. Um dandy absolutamente bernardinesco. E sempre muito de salão, mas sincero, - o vencedor republicano veio abraçar o monárquico vencido!

Esse foi o suadíssimo passeio. Passarinhando entre cinco museus (aquele cicerone que se saiu a dizer o Santo António era jesuíta - Bernardino, anticlerical, ficou em silêncio - fez-me concluir eu não seria a maior cavalgadura no exercício de tal mister), dando à perna, dizia, invariavelmente sob o som das gaitadas das velhas traquitanas e sempre em amena cavaqueira com o presidente.

De resto, num repente, vi-me sozinho na cabeça do pelotão. Não podia ser: então e o protocolo? Abrandei, abrandei, abrandei, até Bernardino me alcançar. Assim seguimos lado a lado, o alto-burguês republicano e o proletário monárquico. Com direito à costumeira selfie, claro está.

Mas correu tudo muito agradavelmente. O presidente pedala que se farta, é um artista das campanhas eleitorais. O "Bernardininho das gingas". Saúda à esquerda e à direita, a campaínha da bicicleta parece uma visita pascal toda, e em nada polui o burgo. Como não podia deixar de ser, muitos foram os que o abordaram, reclamando o regresso à Monarquia. - Ossos do ofício - como diz António Costa, quando cercado pelos «lesados» do BES.

Tranquilo, já inscrito na História - para o bem e para o mal - Bernardino sorria e cumprimentava, o chapéu alto na mão erguida. E eu, no fim, - Sr. Presidente, aqui, por favor, só mais uma selfie!

 

 

Aqui o "velho Lau"

João-Afonso Machado, 17.05.19

A CURVAR.JPG

Fui hoje buscar a bicicleta à loja que tão amavelmente ma cedeu por empréstimo. Tem mais manípulos do que uma avioneta mas guia-se bem, e o zunir dos seus aros é bonito, afinado, azeitadinho. Vim nela, blazer azul escuro e calça cinzenta clara, até casa. Mais um saco de compras pendurado no guiador. Tudo por causa desse passeio aos museus do concelho agendado para domingo, e da mania que se me entranhou na cabeça de participar nele.

Espero só o desaire não seja completo. Eu vou individualmente, mas há equipas formadas, exibindo cores de índios em pé de guerra e nomes tribais assustadores - os Tomatubikes, por exemplo, ao que alcanço, muito constituídos por amazonas. É que andar de bicicleta, a gente nunca esquece; mas são muitas as saudades dos confortáveis selins de outrora, em pele e com molas, ergonómicos como os assentos do meu Peugeot. Agora é um pedaço de plástico, enfim... recorrentemente algo inconveniente. E, depois, o império das lycras, um festival de tons e dizeres, mais os capacetes, as luvas, os óculos plásticos, o ambiente todo de uma carga da brigada ligeira.

Vou de calças de ganga, botas da caça, t-shirt e a mochila com a máquina fotográfica, umas garrafitas de água não ardente e ardente, para os momentos de maior desânimo. Algo de mau que me aconteça no trajecto só poderá ser remediado pela Real Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de V. N. de Famalicão: mas se eles entretanto decapitaram o "Real", então o meu lugar será na berma da estrada, como um cão vítima da sua fidelidade ao dono. Seja isto levado na conta das minhas públicas disposições de última vontade.

Regressando são e salvo, mais contarei. Não que sejam de esperar grandes performances, curvas rasando o asfalto, rampas heroicamente subidas. Mas como não conhecer por dentro este mundo com que todos os dias nos cruzamos na estrada? E há prémios de participação, uns quilitos a precisarem ser abatidos. Camone!

 

 

Um recado para o Zé Colmeia

João-Afonso Machado, 16.05.19

URSO.jpeg

A notícia já correu o país de lés a lés e, reconheço, esta tua incursão tem tanto de simpático como de corajoso. Não é qualquer urso pardo que se atreve a enfrentar o tigre Tuga e a sua felina fome de predação.

Deixa-te, por isso, caro amigo, andar por Montesinho - e sempre com o maior cuidado a atravessar as estradas, onde o tigre Tuga revela o seu maior potencial de morte. Esquece as remotas Astúrias, cujos caminhos de regresso já nem deves lembrar, mas deixa sempre aberta a porta da Sanábria. Pelo sim, pelo não... Toma o rumo nocturno de Vinhais, aponta a Chaves porque em Ourense já não te olharão como um garrido papagaio.  Se insistires em aventurar-te mais em território nacional, abriga-te na Gralheira. Eu, entretanto, vou ter contigo.

Sim, vou porque, cá para baixo, o mundo está de um infernal desassossego, vergado ao braço pilhador da Internet e dos políticos e da gasolina. E come-se cada vez pior. Sigo já para Bragança e é coisa de mais momento, menos momento. O restante está pensado: pela noitinha vamos ao mel (não esqueças, as abelhas são-me letais, entretem-te com elas, eu rapo os favos todos). Nos ribeiros das montanhas, muito à americana, a minha cana de pesca a montante, as tuas sapatadas a jusante, e o banquete de trutas está garantido. Lá para a frente, será a maré das castanhas que me são fáceis de tirar dos ouriços e assar.

Depois chegará o Inverno. Aí, meu velho, temos de ponderar a situação - tu hibernas, eu tenho frio; tu não comes, eu não dispenso o jantarinho diário. Provavelmente virei nessa altura às minhas terras, a ver o que sobra do abandono em que as deixei.

Mas antes serão umas belas passeatas e desculparás a minha máquina fotográfica. Corta-me é essas unhas enormes porque antevejo as tuas palmadas nas costas, os teus efusivos abraços. Pá! eu não sou o tigre Tuga...

Só uma última coisa: detesto formigas, qualquer tipo de insectos e raízes. E sushi. Se enveredas por tais artes culinárias, não te espantem dois ou três tiros de espingarda - sou eu nos passarecos (nada de atavismos, rapaz!) a cuidar da minha janta.

Se podemos, perguntas tu, fanar a comida aos turistas? Mas com certeza que sim, e sempre patrioticamente, Zé Colmeia!

 

Apanhados (XXI)

João-Afonso Machado, 14.05.19

IMG_0869.JPG

Devem lembrar-se de Rafaele Pinto, de Markku Alen e das suas inquestionáveis vitórias nos Ralis de Portugal de 1974 e 1975. Ambos pilotaram modelos Abarth, o irmão mais musculado do Fiat 124 Spider, uma tentativa desta marca suplantar os Fulvia da Lancia.

Carros quarentões. Um luxo inacessível para os de então. Hoje já talvez não. Clássicos bonitos, apesar de tudo ainda frequentes na rua. Quando descapotáveis, um magnífico passeio primaveril ou estival.

Gosto de os ver, não de os ter - dá muito trabalho...

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 11.05.19

IMG_0820.JPG

Quando terá sido a velha sentiu as peles a encarquilharem-se? Ainda a dona Cidade seria uma menina Vila, destinada a tia o resto dos seus dias. Vai daí...

O resultado, desta feita, saiu a preceito. O casamento não tardou e a menina Vila, peito de rola, faces rijas, olhos esverdeados, passeava-se triunfal na rua, pelo braço do marido, o senhor que manda nas coisas da Administração. Usava agora, finalmente, o seu apelido, era a dona Cidade.

 

 

 

Últimas notícias

João-Afonso Machado, 10.05.19

005.JPG

O Sr. Adriano Costa Fontes, renomado membro do Grupo de Pesca da Casa do Povo de Lousado, «no passado domingo foi pescar ao rio Este». Principiou em Balazar, a terra da Santinha Alexandrina, e andou por ali fora, acompanhando o curso das águas. Quando topou, então, «um belo exemplar de truta», iscou, lançou, ferrou-a e trouxe-a para cima: pesava um quilo e meio!!!

É a notícia fidelissima do Jornal de Famalicão neste sagrado mês de Maria - mas do ano de 1969...

Infelizmente agora, cinco décadas volvidas, as trutas - ainda para mais daquele calibre - são apenas uma rima fácil para o feio nome das mães cujos filhos emporcalharam os nossos rios todos, e as mataram.

 

Pág. 1/2