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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O Rabaçal

João-Afonso Machado, 30.04.19

Mais uma vítima do cutelo liberal, outras mais sobras de um extinto concelho, em 1853. O Rabaçal é hoje uma freguesia integrada no de Penela, guardando embora muitos vestígios da sua antiga importância. Como é o caso da igreja Matriz:

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Ali passaria a malaposta, decerto, nessa convergência de muitos caminhos de sempre. Seria local de albergue dos viajantes, um porto de abrigo dos perigos das serranias.

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Por isso, imagens recolhidas de antigamente, atestando o espírito de serviço, a humanidade das gentes. Como é possivel andar para trás? Que é feito do Hospital de Nossa Senhora da Piedade do Rabaçal?

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Mas há de ter ficado esse espírito de convivência, sobretudo entre aqueles para quem o tempo já dispensa o relógio, já não ouve as horas e se diverte na conversa acerca dos mais quentes assuntos da terra.

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Da tal coloquialidade que crava fundo as suas raízes nestes meios pacatos. Nesta festa de todos os dias, a um dos melhores queijos do mundo, fomos lá lambuzarmo-nos um bocado com ele. E só então se ouviu um bocadinho de algazarra, que o Rabaçal perdoou.

No mais, uma região de agricultura pobre, o que constitui apenas um bom motivo para a enriquecer.

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E de muita limpeza, nenhuma poluição. Como as andorinhas são sempre as primeiras a perceber:

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Em suma, eis-nos perante um outra hipótese residêncial, pensando em todos os amanhãs possíveis - o Rabaçal. A meia horita de Coimbra.

 

 

O leão de Nemeia

João-Afonso Machado, 27.04.19

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Mudou-se para cá, o leão da mitologia grega, e andava aterrorizando os povos da Bairrada. Felizmente Hércules ressurgiu, tornou a dominá-lo, trouxe de novo a paz clássica, a que todos ansiamos.

Hércules, comemorando esta sua mais recente vitória, o seu 13º trabalho, desta feita no querido Portugal, ergueu um templo inolvidável. Guardado por leões, também, mas obedientes ao seu prestígio. Votivo de uma deusa sua, Afrodite, estamos em crer. A cabeça da terrivel fera ornamenta agora , não o próprio Hércules, mas a sua edificação - Nesta casa mora um leão com garra, conforme a sua divisa.

Entretanto, Hércules converteu-se ao culto mariano. É certo, não há mito que resista à verdadeira Fé. Por maior Babilónia em que se tenha transformado o habitáculo de Hércules na Bairrada.

 

Por onde o almocreve andarilhou

João-Afonso Machado, 24.04.19

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O almocreve deu graças à Primavera. No seu diante os contrastes da urze e das giestas, ali pelo cimo do mundo, durante o parco tempo em que acreditou este fossem as cores e, sobre elas, o seu flanar. Depois caiu na dura realidade do horizonte visual. A beleza à vista consistia na dureza das pedras nada estáveis, o calçado a dar de si, atamancado, o gado a renegar o percurso.

Um dia inteiro a arfar - porque a arfar trepava e escorregava, as mulas um tormento, - o almocreve atingiu um baixo, adivinhou a derrota da subida que se avizinhava e parou. Estava lá a ponte de que já o avô do seu avô falava. E as águas suaves, sussurrantes, deslizando entre os seus arcos, a abrirem uma nudez feita de trutas, dezenas delas a remarem contra a corrente.

Abriu os alforges das mulas o almocreve. Buscou, buscou, jamais contou se encontrou. Jamais revelou o segredo onde agora os automóveis transitam - afinal, aqueles fundos, o remanso das águas além, davam-nos - pescadores antigos - a bem-aventurança das trutas ou apenas o sonho, um eterno pôr-do-sol amochilado de fé?

O almocreve, tantos séculos antes dos motores, topou o carreiro e rejubilou. Chovera muito, o piso esburacara em regos tortuosos mas, premonitoriamente, uma palavra saltou fora da sua boca - "auto-estrada".

 

 

A Pocariça

João-Afonso Machado, 21.04.19

Tem um hino, tem leitões, caçadores, vinhas, um vinho afamado - o Poço do Lobo. Tem gente do mais hospitaleiro que me foi dado conhecer. Tem um passado de memórias minhas que remontam à primeira perdiz que matei. Aqui na Pocariça, do concelho de Cantanhede, em plena Bairrada, onde as povoações crescem muito na beira das estradas,

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nem sempre exibindo um gosto arquitectónico apurado, o que não é o caso presente: terra muito de brancos, sobriedade e limpeza de alma, deixando-nos indecisos, algures entre a Primavera e a Páscoa.

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Tem os seus heróis, começando por António Fragoso, musicólogo, compositor, executante... A Pocariça assinala e cuida da casa onde viveu, presta-lhe uma homenagem constante. É, aqui o bom gosto impera, comove a sua igreja de Nossa Senhora da Conceição, alvíssima,

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o florido em volta, dir-se-ia, o compasso pascal está quase em marcha. Na outra extremidade, uma raridade, a capela de S. Tomé,

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que no Porto se chamava capela dos Reis Magos. O templo (ou, pelo menos, a sua fachada) é oriundo da Baixa tripeira, onde foi demolido para alargamento da Avenida dos Aliados. Um capitalista recém-chegado do Brasil, pocaricense de berço, comprou aquele granito bem trabalhado e enxertou-o cá, em pleno reino da pedra de Ançã. 

A capela de S. Tomé precisa de umas pinceladas a condizer com o asseio da Pocariça. Onde, a finalizar, existe - um segredo deles - uma variedade única de leitões, com asas de abelhão. Mesmo já assados, continuam a zunir em nossa volta, largados como caça, capturados para o prato com zagaias e muita pontaria dos garfos. 

 

 

 

O comboio dos maus

João-Afonso Machado, 19.04.19

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Com o maior topete, a antiga ladeira em calçada passou a levar a parte nenhuma. A gente sobe-a e esbarra numa rede como a dos presídios. A entrada é lateral, subterrânea, através de um tunel que leva à gare, e os comboios tornaram-se silenciosos, desapareceu de entre os carris o areão negro, fuliginoso, de antigamente.

Até que, nas nossas costas se ouve um ruído de manobras, uma chiadeira infinda. A pequena locomotiva puxando uma catrefada de vagões cilindricos, carregados de cimento, vem deixá-los numa linha nova, aberta entre o edifício e a dita rede que só não nos tolhe a memória. O mais é uma enorme caixa de agulhas a ajudar à festa.

Tratava-se do saque do dia. O produto de mais um assalto à serra, a roubar-lhe o calcário de armas em punho. Assim aqueles relevos vão sumindo, transformados em fatias, assim a fábrica se agiganta. Souselas jaz no cemitério, mesmo encostadinho à cintura do monstro. Está na eternidade de todos os previsiveis amanhãs.

 

 

Porta-aviões sobre carris

João-Afonso Machado, 17.04.19

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Estendi-me ao comprido no banco da gare da estação, e sonhei alguns quinze comboios. Eu, um antigo candidato a "engenheiro de comboios". Voaram o Alfa e o Intercidades, passaram dois "mercadorias", fizeram alto outros tantos suburbanos. Para norte e para sul. Ora vindos dos lados da Pampilhosa, ora procedentes ("procedentes" - este o termo adequado que já me faltava) de Coimbra, a dobrar a curva onde antes estavam as cancelas, o carreiro para a azenha.

A memória agarrada aos carris, antigamente chocalheiros, compassados, às vezes infindos naquelas composições ("composições" - outro membro da antiga nomenclatura), incapazes de cobrirem o saboroso aroma de Setembro e das figueiras. Em calções, vão lá quase cinquenta anos.

O chefe da estação, de quépi branco, como um almirante condenado ao continente, a sua farda castanha, como a da Ordenança local; o seu bastão, uma bandeira enrolada a sinalizar a paz da ferrovia. E eu com ele, ambos de sobreaviso. (- Menino, o comboio saiu agora da Pampilhosa - a dar-me tempo para me sentar no banco de pau da plataforma de então, e assistir ao desfile, a "composição" logo no início da recta, a chegar-se, a chegar-se a nós, o chefe impancte nas suas funções, merecedor de demorado louvor, a passagem um estrondo, mas caras que se viam, pescoços fora das janelas, vidas em movimento; ainda assim se manterão?)

Eram as minhas tardes em Souselas. As tardes de um neto do Senhor Eng., um peso pesado na CP. (Por isso a paciência do chefe com o puto.) No armazém junto de uma linha colateral, azuis amacacados descarregavam fardos...

E a estação, um edifício sem ser feio, branco, as portadas e janelas verdes, era a vida de uma família residente no andar cimeiro. Uma vida sedentária, como se avaliava pela dimensão das cuecas do chefe, postas a secar à banda. Já as da sua senhora, dormindo a mesma corda, não tão enormes, indiciavam mais movimento das pernas. Ela lavava a roupa, punha a secá-la, tratava da hortazinha cheia de couves, alface e outras vivazes. Mesmo junto ao jardinzinho bem tratado dos buxos, com flores coloridas e cheirosas, antecedendo as retretes (assim mesmo, "retretes", quais "sanitários" ou "WC's", a rimar à portuguesa com "cagadeiras"). Provavelmente, o chefe da estação, e os seus, saiam dali directamente para a reforma. Era uma vida toda.

Mas, ao som de uma voz gravada, automatizada, ergui a cabeça.O escritório do chefe aferrolhado. Onde o seu quépi? A bandeira enrolada? Agora comandam-nos por sons despersonalizados, e a estação é triste, a linha superlotada. Saber esperar, uma ciência perdida. No andar cimeiro do almirante em terra, ferroviário, o vácuo óbvio.

Cá pensei comigo: com o Avô aqui, em Souselas, em nada se mexia. E fui, resignadamente, deixando os comboios passar.

 

 

Será Páscoa?

João-Afonso Machado, 13.04.19

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É Páscoa? Não sabemos.

A enfermeira olha os ferimentos e põe uma expressão reprovadora. Abana negativamente a cabeça. Aquelas peles brancas sobre a ferida, ainda húmida, indiciam infecção. Num instante recomenda cuidados no duche, uma luva protectora. Já a mazela devia ir secando.

Se não forem as glicinias - vias ao nascer, tão bonitas! - o que será a Páscoa? O que será a Páscoa sem ser a ressurreição do mundo? A enfermeira não diz. Seca, de meias palavras, cumprindo somente o seu dever. A refugiar-se nos médicos e nos remédios, quiçá no querer dos doentes. Ou no Destino - Deus!

Por ela aprendo a força da incerteza. As glicinias perderam a cor e o viço, tombam ao peso da desgraça. Foram estes dias todos de chuva sem a luva protectora do duche. Prematuramente velhas, esbranquiçadas, incapazes de receberem a visita pascal.

Mas será Páscoa? É, pelo menos ainda vai a tempo de ser.

 

 

"Da ternura"

João-Afonso Machado, 11.04.19

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O vento calado da ternura,

o tempo esfumado, dias de um continuado adeus!

a não parar, cresce

saudade e sempre rejuvenesce,

olha para trás os seus

 

e talvez diga sim

a Deus.

Mas vive a carne, o espírito vive, vivem memórias, tantas histórias,

 

rancores,

dores!

 

E, no fim,

o cabelo branco, o bigode assim,

onde quer que passeie

o meu pensar

 

ele, só ele, sente magoar

um sinal alarmado

 

(minha ternura, minha fé pura)

 

 - este cabelo, este bigode voam mas ninguém diz, nem pode,

que o mundo é acabado.

 

 

 

Arraiolos

João-Afonso Machado, 09.04.19

Quando chegámos à terra dos tapetes mágicos fazia-se já tarde. O castelo em forma circular, dizem-no ímpar em Portugal, ficaria para outra altura. Àquela hora, todos os caminhos nos levam cá abaixo, ao centro da vila. Vamos por eles.

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É um estranho mundo branco com riscas azuis, quase apenas. Não se vislumbram arruamentos largos e ruídos, mas muitas andorinhas. E a terceira idade, descansando ao anoitecer nas pedras já frescas, uma conversa que é pouco menos de um silêncio. Enfim, a Praça do Município, gastando das mesmas cores.

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Fomos direitinhos à esplanada, iamos acabando o stock local de águas minerais. Ali pastámos qualquer coisa, era o último de alguns dias com muitos quilómetros. Enquanto tal, os pormenores arquitectónicos vizinhos saíam-nos ao caminho.

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Sentados, iamos deixando as máquinas fotográficas fazerem o seu trabalho. Que era bastante.

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E lá ao fundo, aproveitando este entusiasmado princípio de Primavera, duas miúdas nos degraus do pelourinho faziam horas extraordinárias na resolução dos seus decerto gravíssimos problemas. Depois, também elas partiram.

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A noite tornara-se adulta. Era tempo de um descanso que o levantar cedo do dia seguinte exigia. Debandámos.

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Não sem antes um derradeiro retrato do castelo misterioso, esse que reclama por um dia todo em Arraiolos. Ele está prometido, numa próxima incursão ao Alentejo.

 

 

 

Dietética

João-Afonso Machado, 06.04.19

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Sempre disse à gente dos caracóis - as larvas hão de ser mais saboroso petisco. Têm menos óleo, são menos enjoativas. Não será preciso inundá-las em azeite, especiarias e alcool. Mas ninguém acredita. Lagartas de borboletas, escaravelhos, até moscas? E eu respondo sempre - são um mundo de proteínas! - mesmo não sabendo exactamente o que isto é. Mas carocas é que não!

O chapim-real, cheio de cores e de vida, surgindo invariavelmente nas árvores da esplanada, saltita mais arisco do que nunca. Com as suas cores garridas a condizer. É o diabo para o paparazzar!

Porquê? Porque se alimenta bem. À base de larvas.

O resto é o fim da tarde e a última cerveja. Mais uns tímidos piares nas ramagens por cima, a inquietude do chapim, e a nossa paciência à espera do momento do certeiro disparo final.

Os dias vão uns depois dos outros, a correr. O jardim, ora mais florido, ora mais pobre. Os chapins impávidos ao tempo, conquanto imparáveis nos galhos.

É das larvas. Aprendamos com eles.

 

 

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