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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Estremoz

João-Afonso Machado, 31.03.19

Estremoz à noite. A praça ampla do Gadanha, o primeiro passo de uma história. O lago é enorme e, no centro, essa desconcertante figura, ao que parece Saturno, a contar o tempo, a determinar as vidas. Alguém menos atento di-lo-ia Neptuno, rei dos mares. Mas não é o tridente nas suas mãos - antes a fouce terrível de que a Morte se faz acompanhar.

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Na centúria de Setecentos seria a Praça de S. Brás e o lago, datando dessa altura, propunha-se dar de beber ao exército inteiro... Homens e os seus cavalos. a tropa do Regimento. A estátua chegaria após, oriunda da igreja dos Congregados.

Anda-se por ali, há muito para ver. Demais, para as pretendidas ligeiras palavras. Resta aguardar o fim da noite, o amanhecer. Percebeu-se já o castelo lá no topo.

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E, à luz do dia, chegamos, enfim à Rainha Santa D. Isabel.

À sua derradeira morada em vida!

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Foi ali, entre torres e o calor abrasivo do Alentejo, que a Rainha Santa morreu. Dizendo o seu testamento querer ser sepultada em Santa Clara, Coimbra, o féretro organizou-se. O seu caixão ia em cima de um burro, a viagem longa e o calor a massacrar os acompanhantes. Temeu-se uma podridão que jamais ocorreu. Sabe-se até, daquele invólucro do seu corpo emanava um cheiro de rosas. A nossa Rainha jaz para onde foi levada conforme a sua vontade.

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Agora, de dia, a vista do castelo onde findou a sua vida terrena, é nítida. Indo lá, meio Alentejo pela frente dos nossos olhos. É tempo de partir.

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A saída pelas portas de Santo António. Como se viessemos de épocas antigas que nos ficam na alma. Estremoz não são dois episódios - é uma crónica toda começada com Portugal, vivida nos séculos, seguramente muito mais do que um simples lugar de passagem com meia dúzia de fotografias a recordá-lo.

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 27.03.19

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- É preciso reconhecer...

(dizia eu, muito conciliatório essa tarde),

- ... é preciso reconhecer que o único jardim zoológico português em condições é o de Lisboa!

E até me lembrei daquele leãozinho bebé que uma vez apanhei no da Maia, fugindo espavorido de uma pueril - mas autêntica - carga de cavalaria: centenas e centenas de crianças atrás dele, que mal corria ainda e não aprendera a trepar às árvores.

Ela (está cada vez mais bonita, mais sorridente, mais fresca) nada respondeu. Eu pedira-lhe se me acompanhava ao Zoo, onde há alguns dez anos não punha os pés. Um programa nada do seu agrado, sei bem. Mas foi suficientemente querida para não se negar. Agora bebíamos uma cervejinha fresca naquelas esplanadas preambulares, entre fotógrafos, bicharada em plástico e postais e meninos aos berros.

- Lembra-se da última vez?

perguntou de súbito, num estremeção da cadeira.

Pois não havia de lembrar! Sim, dessa última vez, vão lá os tais dez anos, acabara por me deparar com ela (está igual, está igual!), acompanhando um seu sobrinho, o Manel. E eu já de saída, com uma macaquita pequena ao meu lado. Isto desde a outra extremidade do Zoo, ninguém parecendo dar conta e aqui o idealista, no seu entusiasmo, a ver-se a cem metros de um autocarro, de um taxi, rumo ao sucesso no Norte, o homem do símio agarrado ao seu pescoço. Na Chapelaria Oliveira, pensara até, hei de comprar um condigno chapéu colonial...

Rimos imenso os dois. E, prosseguiu esta minha flor de nenúfar,

- O chimpanzézito trazia nas patas uns óculos já partidos, não era?

Pois era. Pois foi - o triste fim dos meus sonhos. A dona dos óculos descobriu aquela inocente brincadeira e veio de lá como uma fera, uns dentes enormes e aguçados...

- E você ainda levou uma dentada do bicho...

- Não, não, quem me mordeu a mão, fartei de sangrar, foi a dona dos óculos...

 

 

Apanhados (XX)

João-Afonso Machado, 25.03.19

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Vinha chocalhando um bocado no paralelo. É da idade e dos tratos, do seu invejado sucesso nos idos em que se construía até no meio da rua.

O Mercedes 240D antecedeu uma certa desproporcionada moda das carrinhas. Sendo um sedan, um carro familiar, o seu utente era, por norma, apenas o condutor: um homem obeso, a rebentar pelas costuras, sem vagar para gravatas, poderoso lá na terra e com critérios estéticos algo duvidosos; sempre disponível para ler a  legislação de pernas para o ar. Dizia-se dele, então, - lá vai o típico empreiteiro português.

E com o motor diesel, desses mesmo muito fumarentos, o Mercedes percorria mais uns milhares de quilómetros, a semear azulejos, amarelejos e verdelejos por toda a ruralidade de Portugal.

 

 

A lenda do Sem-pavor

João-Afonso Machado, 22.03.19

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Avizinhava-se o parto de Portugal. O feto crescia encabeçado no velho Minho, as pernas descendo Mondego abaixo.Todos foram chamados a auxiliar o feliz sucesso. Contam os anais, Geraldo, em Évora, deu o máximo da sua medicina.

Lembro-o da minha caderneta de cromos da nossa História. Com um pequeno elmo na cabeça, sem cota de malha, a veste de meia manga e o braço erguido com espada pequena a zurzir nos sarracenos. Tinha consigo um grupo de homens de armas e o desagrado de D. Afonso Henriques. Ao que parece porque, pelo caminho, ele e os seus apaniguados, matavam todos, incluindo cristãos. E estes, na altura, recomendava-se fossem poupados.

(Hoje não se pediria tanto a Geraldo Sem-pavor. Bastava que tomasse Borba - a Borba inteira - e a devolvesse aos de Queiroz.)

Sabedor do seu estatuto de fora-da-lei, ofereceu Évora ao Rei. De quem, assim, obteve o perdão das suas precipitações.

Geraldo, alvitram os historiadores, provinha deste Norte friorento de Castro Laboreiro.  Por isso combatia no Sul em mangas de camisa. Desconhece-se a sua progenitura, mas calcula-se o pai tivesse casado à sua vontade. Sua Magestade El-Rei agradou-se dele, parece o fez cavaleiro. 

É um eterno guardião, ainda agora. A maior praça de Évora tem o seu nome. Dizem os cronicões, antes serviu os velhos Menezes de Pousada, e o ensinou nas artes das armas  um inominado de barbas brancas, coevo e vassalo de Gonçalo Mendes da Maia, no Baixo Minho.

Como quer que seja, foi um grande guerreiro. Uma biografia a que todos devemos estar atentos.

Documentos recentemente descobertos demonstram, inegavelmente, Geraldo um profundo amador das damas. Muito achegado e galante. Se não ãntre o milho, já nos jardins dos paços que depois frequentou.

 

 

Locarno

João-Afonso Machado, 19.03.19

Foi um primeiro pé na Suiça, dito o País mais arrumadinho do mundo. Confirma-se. A aproximação fez-se a partir de Milão e ficou-se por Locarno, no cantão de Ticino, o único de idioma predominantemente italiano. 

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A receber-nos, um braço estendido do Lago Maggiore. Águas sóbrias cercadas por paredões altíssimos, a cobertura branca de neve e um frio súbito a fazer-nos voltar ao carro, pelos cachecóis. As muitas embarcações não deixavam tempo para dúvidas: os suiços, ajudando o clima, também dispõem da suas estações balneares. E o lago daria pano para muitas mangas, tanta a variedade de aves a banhar-se nele, e de indígenas gozando aquele momentâneo bocado de sol.

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A cidade vive do seu comércio. Sobretudo dos seus hoteis e restaurantes. Mas há mais: roupa, calçado... e saldos. Preço de um par de sapatos a 50% menos - 350 euros. Não é para nós.

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E há cores garridas, mas numa arquitectura equilibrada, receptiva, a cheirar bem. Sem barulho pelo meio. Tradicional sem ser antiga. Dir-se-ia, a despejar mais umas pazadas de riqueza naqueles bolsos já prenhes.

Locarno tem a sua zona mais antiga, as suas ruínas de uma fortaleza, uma torre. Passámos ao lado. Justamente para o solitário edifício onde se sediava a entidade exploradora de um funicular que, tudo indica, conheceu dias de maior movimento.

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E seguimos viagem, depois de uma pizza num restaurante cujo dono era casado com uma portuguesa de Lamego...

 

 

 

Transes alpinos

João-Afonso Machado, 16.03.19

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Era descomunal. Surgiu-me pela frente a quilómetros da minha espingarda mais próxima, num transe alpino, ventoso, gélido (porventura do medo, porque não reconhecê-lo?), enchendo o ar de ameaças e uma morte anunciada. As navalhas mais pareciam os cornos elípticos dos muflões. Bufava vapor. E soltava uns grunhidos enrolados, como se em banho-maria numa panela monumental.

Instintivamente deitei a mão a uma faca. Também a um tetradente ali deixado por alguém. Eram as minhas únicas defesas... E o javali avançava, em grunhidos enrolados, como se em banho-maria numa panela monumental.

Espetei-lhe a faca. Garfei-o no lombo. Estrebuchou, largando calor e aromas. Ao ponto de me queimar a pele, e, com o dele, quase partiu o meu marfim. Pedi auxílio, era muita coisa para um homem só, a boca ardia-me, ardia-me. Por que diabo fora parar tão longe e desarmado? E à cautela alcei a perna, não fosse levar alguma esquirolada na femural.

Estava eu em semelhantes aflições, surgiu o bom Amigo Sr. Azevedo (que faria ele ali, naquele transe alpino?). Consigo, uma garrafa toda de maduro tinto. - Aguente-se, aguente-se! Com esta ele vai!

E foi. Estendidinho, sossegado, estafado e estufado. Afogado em molho. Foi todo. Graças ao Sr. Azevedo - Descanse (dizia ele), descanse que está aqui em Requião, só entre boa gente. Vai agora um queijinho curado?

 

 

Milão

João-Afonso Machado, 15.03.19

Devo dizer, não apreciei grandemente Milão. E menos ainda os milaneses. A Catedral,  a Piazza del Duomo, o Scala, o Castelo, o Corso e as galerias Vittorio Emanuele II, essa avalanche de lojas dos ricos, esses milhares e milhares de pessoas nas ruas, tudo se vê quase de passagem e de algodão nos ouvidos. Mais me tocam os eléctricos, muito parecidos com os dos tripeiros,

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também sempre a «tangar», como escreveu Rubén A., espalhados pela cidade enorme. E, acima de tal plateia, o Giardino Indro Montaneli, onde os cães passeiam os donos, brincam entre si, e dos lagos e canais saiem animais imprevisiveis.

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Galinhas de água e outros - tartarugas também -  nas margens, caturras (um autêntico crime, mas enfim..) no arvoredo, e gralhas cinzentas nos relvados

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Verdadeiras tardes de repouso! Mesmo dada a dimensão do jardim. A cãozoada tem lugar próprio para andar à solta. Por acaso, não se descobrem por aquelas bandas exemplares excepcionalmente bonitos, raças capazes de nos abrir a boca. Isto é: perdigueiros portugueses. Mas há a ternura das criancinhas

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indo a matar a sede depois da correria, e as ninfas e as musas lagunares, num constante rodopio de mitólogos e poetas em volta delas, amarelas, poseurs, inspiradoras.

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Perigosíssimas. Capazes de arrastar os mais incautos para as profundezas lamacentas, num sufoco horrivel, a gozar o estertor e a casquinar em cima do fim. Muito cuidado!

 

 

 

 

Sem subterfúgios nem argumentos

João-Afonso Machado, 13.03.19

No cruzamento das ambiguidades da vida, estão as pombas, somente pedindo um pouco de grão. Jamais um pombal tem esperteza além da espontaneidade. Não exige nem negoceia, arrulha. As pombas poisam tanto mais quanto menos queiramos delas. E são uma presença ininterrupta em viagens longas, como no despertar todos os dias. Migalhas, migalhas, anseiam, geralmente atiradas pelos autoctones. As pombas abandonam-se nas mãos de Deus.

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A desconfiança dos patos reais é maior. O seu gosto pela paparica igual. A distância a que se mantém, é decerto mais notória,  simples timidez, uma nada de vaidade no espelho das águas. como todos os espelhos, a reflexo do silêncio, incapaz de imposições ou ultimatos.

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São tudo sinais que a Natureza fornece. Uma lição. Mesmo porque os animais vivem geralmente por si. Os milénios criaram o instinto - para si. Desassombradamente interesseiros no que toca ao prato, conciliados connosco se o enchemos. Sem políticas.

É por isso: quando uma pomba nos pedir dormida ou boleia; quando um pato nos mandar calar, então o mundo estará em viragem. Ou em fundamental viagem. Até lá, citadinamente, o equilíbrio reside nos jardins públicos.

 

 

Lamprohiza, a santinha

João-Afonso Machado, 10.03.19

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A noite costumava ser negra, fechada, até a lua cheia se dava mal com ela. E os dias nevoentos, cacimbados, ameaçadoramente escorregadios. A Câmara Municipal não queria saber. Com lastimável frequência, as motorizadas, os automóveis, iam ribanceiras abaixo, a agitar aquelas terras tristes com a triste novidade da morte. As pessoas haviam já adquirido o hábito, e à noite, no café, bebiam mais uma aguardente para a viagem: senão pelo frio, pelo medo de um acidente.

Um dia os pirilampos passaram por ali, o Verão estava no seu melhor, a paisagem agradou-lhes. Resolveram parar, descansar um pouco a dar-se à procriação. Que prodígio de parideira, aquela fémea! Num instante de milhares de ovos, a mais tragicamente afamada curva da estrada, parecia nova, berrante, uma genuína pintura futurista. Irradiava luz, presença, vida. E até denunciava os postes eléctricos, a dormir a noite toda, sem ponta de utilidade.

Nunca mais alguém se queixou da escuridão. Somente os pirilampos - santa família! - protestam às vezes, os regressos nocturnos do café terminam não raro contra as suas paredes. De alegria - desculpam-se uns; do encadeamento causado por aquela inopinada luminosidade, confessam os outros.

 

 

"Tentativa"

João-Afonso Machado, 08.03.19

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A cor das palavras não disfarça a escuridão,

já só resta um longo ladrar de terror, a única voz

 

quase do além-mar,

a um passo do tempo sem tempo a ecoar

no silêncio a sós, intervalo, bendita solidão.

 

 

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