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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"O misterioso personagem"

João-Afonso Machado, 07.02.19

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Chegáramos a Alenquer para uma visita e uma pernoita, em vésperas de mais um ataque aos faisões da Azambuja. Bonita terra aquela!, subindo a encosta do monte por ruas estreitinhas e íngremes, digo eu um treino a estas pernas que a idade já enferruja. E de tanto treinar, sobreveio a fome, uma presença incontornável, vendo as coisas com algum óptimismo, enquanto houver fome há saúde.

Por isso abancámos numa petisqueira, lá no alto da vila, sem propósitos de jantares complicados, apenas de picar qualquer coisinha devidamente regada. Mais a mais, o espaço, exíguo, estava vazio, ou seja, por nossa conta. O chefe da casa, um rapaz novo.

Lá fizemos as perguntas da praxe, prontamente respondidas, de modo sempre elucidativo. Havia umas empadas, uns nacos de porco, um branco leve da Região de Lisboa… Pois sim, era isso mesmo.

Foi então, caladamente, que o personagem entrou e se sentou sozinho numa mesa da outra ponta. Assim permaneceu um tempo considerável, decerto entretido na audição da nossa conversa com o patrão, que ia de vento em popa. A breve trecho, com a inevitável pergunta – de onde eramos nós?

De V. N. de Famalicão, claro. No Minho. E de passagem por aquelas terras inóspitas, tão longe do nosso abençoada reino… Isto tudo ia só aqui ainda, quando o incógnito personagem, do seu canto, proclamou em voz cava:

- Já lá vivi, em Famalicão!...

Olhámo-lo surpreso, ávidos de mais notícias. Seria um septuagenário com certeza, sorrindo da nossa curiosidade, não disposto a grandes palrações:

- Pouco tempo: estudei seis meses no Camilo…

E remeteu-se ao silêncio. Explicámos-lhe que o Camilo entregou a alma ao Criador logo após a vinda ao mundo do Liceu de Famalicão. Que fora depois, o seu edifício, a sede de um partido político durante alguns anos. Sem especificar, porque não apetecia levantar eventuais polémicas, só nos sabia jantar bem e descansadamente. Depois o Camilo, casarão, conhecera um triste, pouco exemplar e demorado período de ruína, até que, respeitando a sua fachada em azulejo verde, fora totalmente remodelado. Era hoje a Casa da Juventude famalicense, meandros empresariais já não para nós, nem jovens, nem empresários.

O personagem sorriu, com alguma tristeza, um olhar quebrado de nostalgia e, daí até final, nada mais acrescentou.

Já o patrão era de paleio insistente. Enólogo, apresentou-se, estudara na Universidade de Vila Real. É claro, no instante seguinte trocávamos nomes à descoberta de conhecidos comuns. Havia-os muitos, apesar da diferença de idades. O mundo é pequeno – intercalávamos com frequência, a cada nova referência condizente. E o personagem misterioso, no seu refúgio (espreitei-o de soslaio) continuava atento, melancólico, caladíssimo, como se o passado o alfinetasse ao de leve.

Chegariam uns amigos dele, a sua decerto ansiada hora de cavaqueira. A nossa, com o patrão, foi até serem horas de retirar para o descanso que antecede os grandes feitos. Após tão simpáticos momentos, a despedida carregou-se de efusividade. E já só cá fora, em pleno largo, nos lembrámos – não deixáramos nem um adeus ao inominado personagem ex-estudante do velho Camilo.

Conseguirá algum dos antigos alunos deste colégio identificá-lo através do verbete “Alenquer”?

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 07.FEV.2019)

 

 

 

Alenquer

João-Afonso Machado, 04.02.19

A estampa perpétua só ocasionalmente lá está - é a do presépio na encosta da vila, luzindo à noite, um marco de proximidade a Lisboa, nas antigas longas viagens pela EN1. Com Alenquer a manter-se  imerecidamente um simples lugar de passagem apenas.

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Indo com tempo, um dia, estranhei as multiplas alusões ao rio, não exactamente um Nilo ou um Amazonas. Barrento, acelerando em alguma correnteza. O tempo era chuvoso e, conversando com um ou outro alenquerence, percebi então a memória ainda vivissima das terríveis cheias de 1967, e de como elas dizimaram a baixa da vila e as suas gentes, nesse turbilhão de águas sem mais iguais.

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Alenquer, que já teve dinossauros, neolíticos, romanos e sarracenos, e foi reconquistada por D. Afonso Henriques, é natural resguarde as relíquias do castelo de outrora e de outros dignos monumentos, como, logo - literalmente - à cabeça, o convento de S. Francisco.IMG_0079.JPG

E de cima ao fundo, do fundo a cima, uma curiosa sucessão de templos religiosos, a judiaria e uma teia de ruinhas e escadinhas, tudo o que a noite de antigamente não deixava conhecer, tal a presença do presépio.

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Ali nasceu e acabou os seus dias Damião de Goes. E outras figuras de referência. Alenquer é um concelho recente, não obstante. O edifício da sua Câmara Municipal uma réplica do congénere lisboeta. Enfim, é grande a colecção de historietas que, com vagar, nestas bandas se podem saborear.

 

 

 

Correio do Minho

João-Afonso Machado, 01.02.19

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À minha prezada Amiga,

Menina Catarina:

Espero que esta a vá encontrar de boa saúde, que nós por cá todos bem. E me desculpe o incómodo, não me atreveria não fosse o acaso da fonte, e da placa nela aposta, descoberta numa das minhas recentes andanças por terras das suas gentes.

A minha rica Menina decerto não conterá a fúria diante os seus dizeres. E há de apelidar-me do pior.

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Mas, Menina Catarina, eu sequer quero comparações com o heróico antifascismo de tão galante Menina. Saiba, porém, aqui em casa não se votava Salazar e sempre se foi defensor de uma monarquia radicada na liberdade, no respeito pelas pessoas e por todos os valores da Modernidade séria, incluindo, claro está, os de Deus Pai Nosso Senhor. Se iriamos à Guerra? Iriamos. Iriamos porque não tinhamos o direito de não partilhar a sorte dos nossos compatriotas que a ela não podiam escapar. Se eramos socialistas? Não, redondamente não! O socialismo era o outro lado da Guerra, à escala mundial, uma imensa gula imperialista que cavalgava a nossa sociedade europeia. Ou estará tão arguta Menina a imaginar-nos militantes da Liga Comunista Internacionalista?

Com o 25/A, varrida a II República, pensámo-nos de regresso à civilização. Mas levámos em cheio com os desmandos dos admiradores da minha prendada Menina; e depois maltratados por este Estado voraz e corrupto, como agora vivemos. Pobres não são robles, diz o povo e com toda a razão.

A Menina perguntará, enfim, porquê isto tudo. Olhe minha Menina, porque sim - porque nada mudou, salvo as placas. À Menina, e aos da sua condição, continuamos a pagar impostos para os sustentar. Em troca - mandam-nos prás cativações. A Menina, a minha estremosa Menina, desculpará, mas para estes lados ainda ninguém veio contar a história do politicamente correcto. Por isso me despeço sem lhe revelar onde topei as ditas fonte e placa. E com um conselho: deixe o passado, pense no futuro, que ambos pertencem à História, seguramente um percurso, e não um instrumento do seu socialismo.

Este último, fique seu, sempre seu e só seu.

Do sempre devotamente também seu

JAM

 

 

 

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