Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"O misterioso personagem"

João-Afonso Machado, 07.02.19

IMG_0081.JPG

Chegáramos a Alenquer para uma visita e uma pernoita, em vésperas de mais um ataque aos faisões da Azambuja. Bonita terra aquela!, subindo a encosta do monte por ruas estreitinhas e íngremes, digo eu um treino a estas pernas que a idade já enferruja. E de tanto treinar, sobreveio a fome, uma presença incontornável, vendo as coisas com algum óptimismo, enquanto houver fome há saúde.

Por isso abancámos numa petisqueira, lá no alto da vila, sem propósitos de jantares complicados, apenas de picar qualquer coisinha devidamente regada. Mais a mais, o espaço, exíguo, estava vazio, ou seja, por nossa conta. O chefe da casa, um rapaz novo.

Lá fizemos as perguntas da praxe, prontamente respondidas, de modo sempre elucidativo. Havia umas empadas, uns nacos de porco, um branco leve da Região de Lisboa… Pois sim, era isso mesmo.

Foi então, caladamente, que o personagem entrou e se sentou sozinho numa mesa da outra ponta. Assim permaneceu um tempo considerável, decerto entretido na audição da nossa conversa com o patrão, que ia de vento em popa. A breve trecho, com a inevitável pergunta – de onde eramos nós?

De V. N. de Famalicão, claro. No Minho. E de passagem por aquelas terras inóspitas, tão longe do nosso abençoada reino… Isto tudo ia só aqui ainda, quando o incógnito personagem, do seu canto, proclamou em voz cava:

- Já lá vivi, em Famalicão!...

Olhámo-lo surpreso, ávidos de mais notícias. Seria um septuagenário com certeza, sorrindo da nossa curiosidade, não disposto a grandes palrações:

- Pouco tempo: estudei seis meses no Camilo…

E remeteu-se ao silêncio. Explicámos-lhe que o Camilo entregou a alma ao Criador logo após a vinda ao mundo do Liceu de Famalicão. Que fora depois, o seu edifício, a sede de um partido político durante alguns anos. Sem especificar, porque não apetecia levantar eventuais polémicas, só nos sabia jantar bem e descansadamente. Depois o Camilo, casarão, conhecera um triste, pouco exemplar e demorado período de ruína, até que, respeitando a sua fachada em azulejo verde, fora totalmente remodelado. Era hoje a Casa da Juventude famalicense, meandros empresariais já não para nós, nem jovens, nem empresários.

O personagem sorriu, com alguma tristeza, um olhar quebrado de nostalgia e, daí até final, nada mais acrescentou.

Já o patrão era de paleio insistente. Enólogo, apresentou-se, estudara na Universidade de Vila Real. É claro, no instante seguinte trocávamos nomes à descoberta de conhecidos comuns. Havia-os muitos, apesar da diferença de idades. O mundo é pequeno – intercalávamos com frequência, a cada nova referência condizente. E o personagem misterioso, no seu refúgio (espreitei-o de soslaio) continuava atento, melancólico, caladíssimo, como se o passado o alfinetasse ao de leve.

Chegariam uns amigos dele, a sua decerto ansiada hora de cavaqueira. A nossa, com o patrão, foi até serem horas de retirar para o descanso que antecede os grandes feitos. Após tão simpáticos momentos, a despedida carregou-se de efusividade. E já só cá fora, em pleno largo, nos lembrámos – não deixáramos nem um adeus ao inominado personagem ex-estudante do velho Camilo.

Conseguirá algum dos antigos alunos deste colégio identificá-lo através do verbete “Alenquer”?

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 07.FEV.2019)