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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A águia da noite

João-Afonso Machado, 28.02.19

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Escurecera bastante já, era a hora do regresso, o triste pio de mais um domingo. A família parecia conformada, ia em manobras de meia-volta, mas o espanejar do arvoredo, as ramagens num súbito alvoroço, fê-la parar. E a ave saiu enorme, negra, num instante de braços abertos lá no alto.

O que seria aquilo? As opiniões eram muitas: uma gaivota (- Mas alguma vez viste uma gaivota negra? -), um corvo-marinho (- Onde inventaste isso, mulher? Os corvos andam na terra a dar cabo do milho -), até um pato (- Com tal pescoço? Só se fosse filho dum ganso! -).

O Avô elucidou então, muito de dentro da sua idade avançada, cheia de experiência e erudição:

- É uma águia da noite.

Continuava a escuridão a tomar conta do parque. O sol desaparecera completamente. E antes que o Avô entrasse em pormenores, as crianças choramingaram, pedindo as levassem para casa. A águia da noite não estaria ali por boa coisa.

 

 

De passagem pela Batalha com O. Martins

João-Afonso Machado, 25.02.19

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A Vida de Nun'Álvares é um bocado de História com movimento, com todas as emoções que Oliveira Martins sabe dar à sua escrita e aos seus personagens. O Condestável, de início um simples escudeiro, viúvo aos 26 anos, dono de metade de Portugal, acabou repartindo a sua riqueza pelos antigos companheiros de armas e enveredar pela ascese no seu mosteiro do Carmo.

«Confiança, a confiança que há na consciência da força, não existia. Mas havia a fé: a esperança num milagre como aquele que o ano passado salara Lisboa, semeando a peste nos arraiais inimigos. Qual seria o milagre salvador de agora? Ninguém podia dizê-lo; mas confiavam todos, que um milagre viria; porque D. João I parecia predestinado, e o seu condestável figurava-se às imaginações atónitas como um anjo vindo dos céus, S. Miguel, ou S. Tiago, armado pela mão de Deus para o combate com energias invencíveis».

É o que se lê logo na primeira página do capítulo dedicado a Aljubarrota. Onde, quase juraria, ouvimos ainda agora o entrechoque das armas, as invectivas dos capitães, o relinchar dos cavalos espetados nos piques. O milagre, afinal, foi o excesso de confiança dos castelhanos, a sua soberba, e o génio e a coragem, a força de Nun'Álvares.

Recentemente canonizado. Confesso, esse não é para mim o mais importante do que foi o grande Homem. Canonizado estava ele, há muito, na sua estátua na Batalha. Porque ali não se retrata um combatente, antes uma chefia, um carácter forte, toda a tranquilidade de quem sabe defender uma causa justa. 

 

 

 

Apanhados (XIX)

João-Afonso Machado, 24.02.19

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Vem do tempo das grandes cilindradas, fosse porque os donos eram ricos, fosse porque  a gasolina era ainda barata. Este, muito bem tratado, tem cara de quem já só sai ao fim de semana. Lembra-me um antigo vizinho, de há muitas décadas com uma máquina idêntica a apodrecer na garagem do prédio - morria de falta de alimento e higiene, nunca mais soube do seu paradeiro. Os Ford Cortina (como o Mark IV) são para o que servem hoje: para um passeiozito ou outro, para polir a chapa a manter o aspecto racing, para ostentar a já merecida e gloriosa distinção de "clássico".

 

 

 

"Na hora da despedida"

João-Afonso Machado, 21.02.19

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Completam-se agora precisamente seis anos, iniciei a minha colaboração no Cidade Hoje. Eu tinha regressado à terra – e com que vontade!, com tão boa companhia, - depois de mais de três décadas de ausência estudantil e profissional. A residir mesmo em Famalicão, não pude evitar as comparações constantes, tantas eram as alterações em relação aos meus tempos de juventude. Eu deixara uma vila – pacata, orientada pelas horas badaladas no sino da Matriz – e encontrava agora, nesse mesmo local, um “centro” a fervilhar de gente e de ruas de sentido único, o polo de uma cidade que galgou Antas, Calendário, Gavião… As memórias eram muitas, em qualquer esquina me chocava com algum episódio do Passado e dar-lhe um pouco de vida, pela escrita, valia realçar no Presente os tempos menos fáceis de antigamente. Sem dúvida mais frios, menos dotados de transportes, mais bichanados aos ouvidos dos curiosos, talvez menos solidários ou, se melhor quiserem, não tão dotados de meios de solidariedade.

Mas havia buracos negros, rupturas impossíveis de entender: o estado a que chegou o Garantia, as velhas instalações da CGD, umas quantas outras manchas arruinadas, abandonadas, nacos de histórias que ficavam a um canto, por contar.

Em paralelo, na coluna do “haver”, um carnaval genuíno, o mundo desportivo famalicenses, as muitas iniciativas culturais, as feiras, os espectáculos, a boa comida, estabelecimentos que tive o gosto de cronicar e… o Parque da Devesa.

Sobre este, acrescente-se, era o fim dos matagais, de que os nossos olhos guardam apenas uma recordação turva, nebulosa; e o surgimento de uma vida nova para todos, obreira da absoluta modificação dos hábitos dos famalicenses. A dar um exemplo, o grande sucesso que foram as cãominhadas reflecte a proliferação das clínicas veterinárias por cá, o feliz final da bicharada vadia.

Por cima de tudo isto que ia acontecendo, havia ainda os que a doença ou o Tempo levaram, e urgia não deixar cair no esquecimento; e a gloriosa bandeira nacional, azul e branca, quando ela se ouvia flanar em Famalicão. Eram estes, em regra, os motivos da minha escrita. No final, umas tantas dezenas de textos.

Decerto não sobrava já muito a acrescentar. É sabido, os jornais necessitam periodicamente de renovar o seu repertório. Por isso, é chegada a minha vez de passar o testemunho.

Faço-o já com saudades, mas sempre com alegria por cada pessoa que me abordou com dizeres simpáticos e encorajantes sobre os meus escritos. Valeu a pena! E é com um obrigado a todos que me despeço do Cidade Hoje, para prosseguir a minha vida, de caneta na mão, em outra folha, em outro projecto, quaisquer. Até sempre, amigos e conterrâneos famalicenses!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 21.FEV.2019)

 

 

 

O paparazzo dos passarecos

João-Afonso Machado, 20.02.19

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Aproximou-se vagarosamente, manhoso, a coberto da coluna de granito. O craque trinava ante assistência atenta, veneradora. Estava de cor de laranja no seu trono, como é da praxe, entre as ramificações do seu veleiro. Nada percebeu - o paparazzo, astuto, patilhas de proxeneta, homem sem escrúpulos, silencioso na aproximação... - assim continuou, é o ponto fraco dos astros quando a almejada fémea, o objecto do engate, anda perto, ouve, vai caindo embevecida.

O tempo desenrolou-se em minutos intermináveis. O paparazzo impacientava-se, não lhe pagavam para tanto. Queria-se uma mulher ao menos desnudada do peito para cima e beijoqueira. Um pequeno episódio de amor. E o pisco chamava, chamava, não desistia. Assobiava argumentos, mostrava as cores, subira aos cumes da embarcação. Quase valeu encostar-lhe a máquina fotográfica aos pulmões. O pateta - nada!!!

Por fim, desistiu. Toda a gente desistiu.O paparazzo, um falhado, voltou à redacção do tabloide com uma dezena de fotografias. Ouviu umas bocas foleiras do chefe e saiu, enfiado, acagaçado. Onde isto não mete fémea, nem beijos, o préstimo (a sobrevivência do artista) anda perto do zero.

 

 

"Meio-dia"

João-Afonso Machado, 17.02.19

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Doa-te o frio todo das pedras do tempo

e, por um prato de sopa,

os muitos anos de flauta.

 

Ingrato! – segredas sem aparato,

- Ingrato modo de vida

suja, malditas moedas,

assobios de sempre sem pauta.

 

E soando depois o meio-dia os carrilhões da torre

como a dizer – faltam os tostões? -

é boa hora, não almoçando saboreia a agonia,

 

e sai tropeçando, vai embora e morre,

segue-se a outra música, mais alegria.

 

 

"O poeta Vicente Arnoso (3º Conde de Arnoso)"

João-Afonso Machado, 15.02.19

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«”O Vicente magro e alto, de fino rosto macilento ou descorado, à lisboeta, de bigodinho incipiente, e olhos grandes, que emanavam uma luz doce, e um sorrisinho, nos lábios da mesma doçura” assim Teixeira de Pascoaes recorda o seu condiscípulo em Coimbra, Vicente Miguel de Paula Pinheiro de Melo, o 3º Conde de Arnoso (…). Vicente Arnoso, como o conheciam, nasceu em Lisboa a 9 de Dezembro de 1881 e foi-lhe concedida a mercê de Moço-fidalgo com exercício, posto haver servido nas cerimónias da aclamação de D. Carlos. Viveu, por isso, a vida da Corte que, certamente, não o seduziu. Tão-pouco a carreira das armas ou a política. Vicente Arnoso era poeta e escolheu para si uma profissão que não existia – a de Academista. Demorou-se dez anos pela Universidade, cuidando meticulosamente de reprovar para não perder esse ofício. Até que, intimado pelo Pai, concluiu o curso de Direito e foi nomeado adido à legação portuguesa em Berlim, chefiada pelo seu tio e padrinho, o 2º Visconde de Pindela”».

Em traços largos assim decorreu a vida desta figura grada da Casa de Pindela, que tanto dele se orgulha. Porque é principal na sua tradição literária. E sendo a vida a literatura, cabem aqui mais algumas considerações sobre a sua pessoa:

«Mantinha pelo poeta Afonso Lopes Vieira uma estima reverencial – “o Vicente, quando pronuncia a palavra Afonso, fica completamente reduzido a um ponto de admiração.”». E Afonso Lopes Vieira prefaciou o seu livro de memórias, Coimbra – Nobre Cidade (1909). Escrevendo assim - «”Entre todos os nossos companheiros tu eras o menos “literato” e o mais poeta. Porque eras tu quem possuía maior porção de alma capaz de comunicar com o Povo e com a Paisagem”». Invocando os velhos tempos coimbrãos, acrescentava - «”no dia em que embarcaste com as tuas “cartas”, na estação, todos os teus vizinhos da Couraça e muito mais gente miúda vieram despedir-se de ti com lágrimas”».

É muito difícil, para um sobrinho do vate Arnoso, sintetizar o tanto, tanto, da sua vida. Que foi, acima de tudo, a de um poeta das estrofes simples, viradas para a gente de todos os dias. Aqui deixo, nesse registo, uma quadra do seu Cantigas leva-as o vento:

 

Coração que muito amou

Já não pode mais amar,

Saudades, recordações,

Nada mais tem p’ra lhe dar.

 

E outra, já agora:

 

As palavras nunca dizem,

Nunca conseguem dizer

Metade que os olhos dizem,

Que os olhos dizem sem qu’rer.

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A sua permanência na Universidade de Coimbra deixou um rasto longo. Era o do amor sem rumo certo. Dispersado pelas tricanas, a sua grande paixão. Escrevia Vicente Arnoso sobre elas - «[Raquel]  ó doce, ó clara Raquelinha da Couraça, vaso espiritual”»; e da Maria José – «“doce perfil de santa martirizada, em que o sol moribundo parece vir expirar, iluminando a serena tranquilidade do seu olhar doce”»; mais da Assunção «que morreu tuberculosa no hospital e ele acompanhou à sua última morada, onde pugnou fosse erguido um monumento às irmãs da Alcaria; e, sobretudo, da Deolinda, “a mais bonita das três irmãs de emoção, a atarem a primeira fita de veludo preto no colo da sua amada - a Deolinda que, em silêncio, sofreu a dor de ver partir para a Alemanha o único homem a quem dera o seu coração, e que, até à morte, jamais tirou do pescoço esse bocado de veludo que passou a ter um nome: o vicente”».

Compreendamos melhor este paradigma da poesia vivida: a de «esse adorno, “da largura de um dedo, que lhes afoga o pescoço” e se tornou uma peça omnipresente e fundamental na indumentária das tricanas. A palavra a Júlio Dantas: «”para compreender o poder de sedução do vicente é preciso ter visto, algum dia, a carnação luminosa e inconfundível da tricana”». «Por tal acessório se distinguiam “à légua” as raparigas de Coimbra. E elas próprias diziam: “são as nossas pérolas” (…) “é o nosso coração”».

Enfim, entenderão, a Casa de Pindela guarda consigo o maior orgulho, num beijo enorme de carinho para este seu Filho querido, que Deus chamou a si em 1925.

Fica ainda um apontamento final da sua biografia: terminada a sua formatura, abriu escritório de advocacia em Coimbra – “Raul Teixeira e Vicente Arnoso - Advogados”. Alguém rabiscou à mão, essa noite a tabuleta - «Bravo, bravo, levou tempo mas sempre foi»!

Depois foram os dias de acompanhar o seu padrinho, o 2º Visconde de Pindela, como secretário na Legação portuguesa em Berlim, de que este era Ministro Plenipotenciário. Regressaram ambos em 1910, recusando servir a República, como monárquicos ingénitos que eram.

Em Lisboa, outra vez, Vicente Arnoso continuou a escrever. Desde logo, guiões para peças de teatro. Na ocasião da estreia de uma delas, em 1916 (Coimbra, Terra de Amores), comentou nos jornais um crítico seu contemporâneo, Eurico de Seabra, - «”se vissem a sua obra, abraçá-lo-iam os próprios iconoclastas e ferozes lentes que o reprovaram, e beijá-lo-iam, em desforço, comovidas, as lindas tricanas que o amaram e ele amou. Coimbra, mãe dos poetas, beijá-lo-ia também, porque um dos seus filhos caros a louvou e toucou de rosas. Nós, que em Coimbra vivemos e Coimbra sentimos, estendemos-lhe a mão e apertamo-la contra o peito”». Talvez Pindela não tenha perdido este modo estouvado de ser…

Cultivou essencialmente a quadra popular, nos três livros de poesia que deixou – Cantigas… Leva-as o Vento, Quem Canta Seus Males Espanta e Cantigas e Mais Cantigas. Era do que gostava!

Mas pairam aí dispersos seus, a convir sejam recolhidos. Em estilo diferente, a apontar o parnasianismo, como este poema que guardo comigo, um recorte de um jornal inominado:

 

Um rapazinho olhava alheio à multidão,

Era ao cair da tarde, em frente dum bazar,

Morria o sol, descia a sombra e na amplidão

Como um arauto antigo erguia-se o luar.

 

Anunciava a noite, abençoava a terra

E a miséria ia abrir de par em par as portas,

E fraquejar de dor, travando a eterna guerra

Da conquista do pão, de noite, às horas mortas.

 

Contudo no bazar, à luz dourada e calma

Um arlequim taful sorria-se de gozo

E fazia surgir daquela ingénua alma

A tragédia infantil dum roubo audacioso.

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Muito mais havia a contar de Vicente Arnoso… Aquela sua subida no Bairro Alto, a fumar, com uma familiar piedosíssima; o pobre, na rua, – Oh! Senhor Conde, dê-me a beata! – Não posso, é minha… irmã…

Quando morreu, Rocha Martins imaginou-o na Eternidade: sempre em serenatas com o Hilário dos fados, apoquentando o coitado do S. Pedro.

 

(Nota: todas as transcrições são feitas do meu estudo O Morgadio de Pindela, 1999)

(In Real Gazeta do Alto Minho, nº 18)

 

 

 

O monstro saramela

João-Afonso Machado, 13.02.19

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Lá dentro sentiram as lages do átrio a tremer. Chovia e ventava, o inverno não dá tréguas. Soltaram-se muitas vozes, todos empurrando uns para os outros a audácia de ir à porta ver quem era. Porque de antemão se sabia.

A saramela rugia de silêncio, em gestos guturais de assentar as patas nos degraus das escadas e vinha, mole, avantesma, desajeitada, no roldão da pedra britada, estilhaçada ao seu peso. Descomunal saramela, os olhos dois buracos negros encimados de amarelo-corno garrido, a cauda como um ariete que não investe e a boca o fundo voraz de um deus sumério, ávido de sacrifícios humanos. Pobre gente, pobre terra, nestas noites geladas de escuridão e saramelas à solta.

Monstro execrado, monstro imensamente maior do que aparenta ser. Um monstro, a saramela, do tamanho de toda a imaginação dos minhotos antigos, alimentada e crescida nos lares de quantos serões a sua história lhes deu. E os minhotos antigos não duvidavam: quem não cuspisse à vista de uma saramela assumia-se seu padrinho de pia. E de outro modo jamais será. Acrescendo todas as calamidades que este inferno pintalgado, carregado de peçonha, com certeza provoca, dias aziagos são sempre bruxedo da saramela.

Enquanto isso, os citadinos, torcendo-se de nojo - mais de nojo do que medo - simplesmente se valem de métodos modernos e automóveis para as eliminar. No resto, muito ignorantes, chamam-lhes salamandras.

 

 

Um buraco até ao fim do Tempo

João-Afonso Machado, 11.02.19

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Já nem os dinossauros se lembravam. Antes deles, a nossa Estremadura era o mar. Um mar que foi indo embora (agora parece estar a voltar) deixando por souvenir uma jazida de sal-gema, no fundo da terra, muito abaixo das pegadas dos ditos monstros, aliás indiferentes a condimentos na sua alimentação.

As águas pluviais, no queijo labirintico que é o subsolo da serra dos Candeeiros, completam a lição. Correndo sobre o sal-gema, vêm à superfície em Rio Maior, por um poço, um buraco só, decerto negro, sem fundo, povoado de Tempo, mistérios, do eco imenso do não retorno. Essas águas que o poço gargareja e expele, o calor estival seca-as e transforma-as em sal ali mesmo, quase no meio do Portugal continental.

Um sal rude, em estado puro, encarniçadamente pré-histórico - sete vezes mais salgado que o sal do mar.

Dei facilmente com o poço entre as salinas circundantes. Dormia a sua época de descanso, não acordará antes de Maio, quando torna a rugir água salgada como nos milénios de milénios em que os dinossauros ainda não tinham saído do ovo.

 

Da minha gaiola

João-Afonso Machado, 08.02.19

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Antes de mais, uma confissão - endividei-me. E com um agiota, o mais vil homem cá da terra, posto os bancos nada quererem comigo. Mas eu não podia passar sem esse milagreiro acessório, uma gaiola sem rede em que cabe toda a muita bicharada.

Comprei a gaiola e, quase ao virar da esquina, enfiei um chasco lá dentro. De onde não mais sairá.

Sou de figadal aversão às modernas tecnologias. A semelhante ventania que nos leva o papel, as canetas, as ideias, tudo por troca com teclas e botões apalpados às escuras. Mas tão avançada gaiola valeu a pena, mesmo tendo já o agiota insinuado soltar os capangas no meu rasto, faltando-me o rigor no solver do empréstimo. E amanhã mesmo vou por alguma levandisca (cinzenta, amarela ou azul celeste, tanto faz), passarinho que não apanho desde os meus quinze anos. Quando andava por aí de pressão-de-ar em riste, dias de pavorosas carnificinas, e, na gaiola que possuia então, só cabiam vacas e cavalos, algum porco se apanhado com a boca na botija.

 

 

 

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