«”O Vicente magro e alto, de fino rosto macilento ou descorado, à lisboeta, de bigodinho incipiente, e olhos grandes, que emanavam uma luz doce, e um sorrisinho, nos lábios da mesma doçura” assim Teixeira de Pascoaes recorda o seu condiscípulo em Coimbra, Vicente Miguel de Paula Pinheiro de Melo, o 3º Conde de Arnoso (…). Vicente Arnoso, como o conheciam, nasceu em Lisboa a 9 de Dezembro de 1881 e foi-lhe concedida a mercê de Moço-fidalgo com exercício, posto haver servido nas cerimónias da aclamação de D. Carlos. Viveu, por isso, a vida da Corte que, certamente, não o seduziu. Tão-pouco a carreira das armas ou a política. Vicente Arnoso era poeta e escolheu para si uma profissão que não existia – a de Academista. Demorou-se dez anos pela Universidade, cuidando meticulosamente de reprovar para não perder esse ofício. Até que, intimado pelo Pai, concluiu o curso de Direito e foi nomeado adido à legação portuguesa em Berlim, chefiada pelo seu tio e padrinho, o 2º Visconde de Pindela”».
Em traços largos assim decorreu a vida desta figura grada da Casa de Pindela, que tanto dele se orgulha. Porque é principal na sua tradição literária. E sendo a vida a literatura, cabem aqui mais algumas considerações sobre a sua pessoa:
«Mantinha pelo poeta Afonso Lopes Vieira uma estima reverencial – “o Vicente, quando pronuncia a palavra Afonso, fica completamente reduzido a um ponto de admiração.”». E Afonso Lopes Vieira prefaciou o seu livro de memórias, Coimbra – Nobre Cidade (1909). Escrevendo assim - «”Entre todos os nossos companheiros tu eras o menos “literato” e o mais poeta. Porque eras tu quem possuía maior porção de alma capaz de comunicar com o Povo e com a Paisagem”». Invocando os velhos tempos coimbrãos, acrescentava - «”no dia em que embarcaste com as tuas “cartas”, na estação, todos os teus vizinhos da Couraça e muito mais gente miúda vieram despedir-se de ti com lágrimas”».
É muito difícil, para um sobrinho do vate Arnoso, sintetizar o tanto, tanto, da sua vida. Que foi, acima de tudo, a de um poeta das estrofes simples, viradas para a gente de todos os dias. Aqui deixo, nesse registo, uma quadra do seu Cantigas leva-as o vento:
Coração que muito amou
Já não pode mais amar,
Saudades, recordações,
Nada mais tem p’ra lhe dar.
E outra, já agora:
As palavras nunca dizem,
Nunca conseguem dizer
Metade que os olhos dizem,
Que os olhos dizem sem qu’rer.
A sua permanência na Universidade de Coimbra deixou um rasto longo. Era o do amor sem rumo certo. Dispersado pelas tricanas, a sua grande paixão. Escrevia Vicente Arnoso sobre elas - «[Raquel] ó doce, ó clara Raquelinha da Couraça, vaso espiritual”»; e da Maria José – «“doce perfil de santa martirizada, em que o sol moribundo parece vir expirar, iluminando a serena tranquilidade do seu olhar doce”»; mais da Assunção «que morreu tuberculosa no hospital e ele acompanhou à sua última morada, onde pugnou fosse erguido um monumento às irmãs da Alcaria; e, sobretudo, da Deolinda, “a mais bonita das três irmãs de emoção, a atarem a primeira fita de veludo preto no colo da sua amada - a Deolinda que, em silêncio, sofreu a dor de ver partir para a Alemanha o único homem a quem dera o seu coração, e que, até à morte, jamais tirou do pescoço esse bocado de veludo que passou a ter um nome: o vicente”».
Compreendamos melhor este paradigma da poesia vivida: a de «esse adorno, “da largura de um dedo, que lhes afoga o pescoço” e se tornou uma peça omnipresente e fundamental na indumentária das tricanas. A palavra a Júlio Dantas: «”para compreender o poder de sedução do vicente é preciso ter visto, algum dia, a carnação luminosa e inconfundível da tricana”». «Por tal acessório se distinguiam “à légua” as raparigas de Coimbra. E elas próprias diziam: “são as nossas pérolas” (…) “é o nosso coração”».
Enfim, entenderão, a Casa de Pindela guarda consigo o maior orgulho, num beijo enorme de carinho para este seu Filho querido, que Deus chamou a si em 1925.
Fica ainda um apontamento final da sua biografia: terminada a sua formatura, abriu escritório de advocacia em Coimbra – “Raul Teixeira e Vicente Arnoso - Advogados”. Alguém rabiscou à mão, essa noite a tabuleta - «Bravo, bravo, levou tempo mas sempre foi»!
Depois foram os dias de acompanhar o seu padrinho, o 2º Visconde de Pindela, como secretário na Legação portuguesa em Berlim, de que este era Ministro Plenipotenciário. Regressaram ambos em 1910, recusando servir a República, como monárquicos ingénitos que eram.
Em Lisboa, outra vez, Vicente Arnoso continuou a escrever. Desde logo, guiões para peças de teatro. Na ocasião da estreia de uma delas, em 1916 (Coimbra, Terra de Amores), comentou nos jornais um crítico seu contemporâneo, Eurico de Seabra, - «”se vissem a sua obra, abraçá-lo-iam os próprios iconoclastas e ferozes lentes que o reprovaram, e beijá-lo-iam, em desforço, comovidas, as lindas tricanas que o amaram e ele amou. Coimbra, mãe dos poetas, beijá-lo-ia também, porque um dos seus filhos caros a louvou e toucou de rosas. Nós, que em Coimbra vivemos e Coimbra sentimos, estendemos-lhe a mão e apertamo-la contra o peito”». Talvez Pindela não tenha perdido este modo estouvado de ser…
Cultivou essencialmente a quadra popular, nos três livros de poesia que deixou – Cantigas… Leva-as o Vento, Quem Canta Seus Males Espanta e Cantigas e Mais Cantigas. Era do que gostava!
Mas pairam aí dispersos seus, a convir sejam recolhidos. Em estilo diferente, a apontar o parnasianismo, como este poema que guardo comigo, um recorte de um jornal inominado:
Um rapazinho olhava alheio à multidão,
Era ao cair da tarde, em frente dum bazar,
Morria o sol, descia a sombra e na amplidão
Como um arauto antigo erguia-se o luar.
Anunciava a noite, abençoava a terra
E a miséria ia abrir de par em par as portas,
E fraquejar de dor, travando a eterna guerra
Da conquista do pão, de noite, às horas mortas.
Contudo no bazar, à luz dourada e calma
Um arlequim taful sorria-se de gozo
E fazia surgir daquela ingénua alma
A tragédia infantil dum roubo audacioso.
Muito mais havia a contar de Vicente Arnoso… Aquela sua subida no Bairro Alto, a fumar, com uma familiar piedosíssima; o pobre, na rua, – Oh! Senhor Conde, dê-me a beata! – Não posso, é minha… irmã…
Quando morreu, Rocha Martins imaginou-o na Eternidade: sempre em serenatas com o Hilário dos fados, apoquentando o coitado do S. Pedro.
(Nota: todas as transcrições são feitas do meu estudo O Morgadio de Pindela, 1999)
(In Real Gazeta do Alto Minho, nº 18)