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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Arqueólogos do momento agora

João-Afonso Machado, 08.01.19

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O Duque nosso senhor morreu, dizem, - e não é verdade. O Duque é a História, são pedras aqui e ali, é também um símbolo, o Presente, e por isso mesmo o Futuro também. Não fora assim o que resta do seu Paço seria apenas material a usar em tolices quaisquer, e não o orgulho com que a terra o faz monumento e o acarinha. 

E do cimo da sua muralha, o Duque contempla o Tempo. Ocorre-lhe a célebre gravura quatrocentista de Duarte de Armas, o palácio molhando os pés nas águas cristalinas do rio...; e as armas terçadas contra a poluição, tantos séculos depois de Alcácer Quibir, as boas novas da pesca ou da caça, a floresta eterna de então. Tudo aquelas aparentes - e tão faladoras - ruínas contam. Tem boa memória, o Duque Nosso Senhor. E na sua liteira de recordações transporta-se até amanhã, tranquilo de que a História vai com Ele. Atrás, tanta gente, todos os que nessas páginas, jamais findas, se buscam a si próprios.

 

 

Do dia de S. Ex.cia, o galo

João-Afonso Machado, 06.01.19

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Em vão o topo das ruínas e o lavrar do rio sob a ponte. Ninguém acreditou. Mas o facto é que o sol se pôs e o galo cantou. Com alguma filosofia, houve quem dissesse a alvorada não tem horas fixas.

Para aqueles lados, de resto, a galo canta em qualquer esquina ou bicando a mais recôndita galinha nascida do barro. Assim como outrora à lendária mesa do juiz e hoje nas dos restaurantes, a crista encharcada em vinho verde.

Em tudo há um princípio. O condenado à forca, na eminência do breu mortal, foi salvo pelo cantar do galo. É justo agora o alvor da vida ocorra no ocaso solar, o momento pelo bicho escolhido para o seu cacarejo. O princípio, entenda-se, é o início, não uma regra. Justamente porque o acaso tem muita força e galo alguma autoridade. Com as palavras a servi-lo, jamais delas sendo servidor.

 

Nos idos da euforia

João-Afonso Machado, 02.01.19

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Um manto imenso de silêncio deixou para trás os reveillons e o foguetório. Renasceram os jardins, pingando húmidos, e a luz é do sol, não das lâmpadas. Ouviu-se um pisco, muito atacado da garganta e do nariz, e a temperatura foi de férias com a geada a substitui-la. Aliás, contentíssima, sem milhares de pés a pisá-la, a atormentá-la esmagada em calores de solas.

O ser humano tornou à superfície. Atónito, em face das toneladas de papel nas avenidas e praças, mesmo uma ou outra cadeira já só com três pernas. E garrafas de espumante no vão das janelas.

Muito prática, com o cabelo atado em rabo de cavalo, já varria o chinfrim todo da noite de anteontem. Não antes por puro medo e falecimento de forças. Merecia uma palavra de apreço, tão prendada menina. Aos poucos, restabelecida a paz, as pessoas voltaram à conversa com nexo. Nas ruas circula-se sem precauções. Deixando a cidade, são agora os musgos que brilham e os fontenários novamente cantadores. Sob um sol discreto, ainda na fardamenta desta época mais enregelada.

De rabo de cavalo e vassoura desembaraçada, aplicadíssima, - a imagem entranha-se - bem podia vir por aí acima. Mesmo na orla dos caminhos, as folhas das árvores ainda gotejam, os líquenes doem, postas as mãos neles, em qualquer recanto um pano branco de geada persistente. Era só desatar o elástico, deixar os apetrechos e calçar um sorriso de alívio e boa disposição - afinal, a normalidade está de volta.

 

 

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