Um minhoto na Capital
Tantos - mas tantos! - anos depois, de novo em Lisboa! Em outra investigação, versando Costa e a sua gula do Poder. Um trabalho encomendado, com alguma pesquisa em arquivos nacionais. No decurso do qual conheci um simpático historiador a convidar-me para um jantar, o do seu aniversário.
Compareci. Com um fato emprestado pelo meu primo mais velho e uma gravata quase a enforcar-me num nó de sapiência. A pagar o preço do casual, termo, para mim, de agora, que significa ganga e sapatilhas («ténis», dizem eles). O restaurante, de resto, não estava por nossa conta...
Tudo isto era nada, não fosse o caso de ela estar lá. Sempre a mesma! Loira, as pulseiras a chocalhar no pulso, lindíssima. Envolveu-me num Olá! enorme, saudoso, verídico. E ficámos sentados lado a lado.
O pior foi o outro lado. O oposto. Deu na cadeira um cavalheiro enorme que logo se apresentou como empresário. E antes de qualquer "boa noite" de resposta, avançou números - acabara de investir quatro milhões no Ribatejo. Quantia, aliás, insuficiente, amanhã mesmo insuflaria no empreendimento mais quatro milhões... O Estado estava com ele!
Eu não sei, continuo sem saber, o que são quatro milhões, ainda por cima acrescido de outros tantos. E vi-me sozinho - eu e a minha ignorância - naquela mastigação de notas. Limitei-me a ouvir respeitosamente.
O quê? Não me perguntem. Era o confronto entre os papeis velhos e o papel novo, circulante no mercado. Mais uma vaga noção de que o senhor, contrariado, desafiara para a porrada toda a assembleia municipal de uma Câmara qualquer. Á cause...
Eis senão quando sinto - oh! santa primeira vez! - a sua mão, erguendo-se no peso das pulseiras, massajando a minha. Foi, para mim, a profissão de fé no capitalismo. Valera a pena! E num asssomo de coragem, voltei a cara, mandei os milhões (que não eram meus) à merda e falámos - eu e ela - de poesia.
Um pormenor importante: antes de entrar a fundo em Mário de Sá-Carneiro, já não sei porquê, talvez pela minha eterna mania da caça, apontei aos patos-bravos. Inocentemente..
O certo é que o meu flanco direito baqueou. Foi fumar um cigarro e o tabaco, conclui, é coisa sagrada. As nossas mãos ficaram uma com a outra, os milhões encolheram, sumiram, e amanhã será o primeiro dia do resto da minha vida.
(Disse ela, ao ouvir-me suspirar de alívio: - Então não conhece o género?...)