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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Chovia na gare

João-Afonso Machado, 28.01.19

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Ainda de manhã, a humidade enregelava as almas, o comboio chegara no horário. Implacavelmente, sem sequer uns minutos para a exposição de algumas últimas vontades, um bónus que valesse o esforço de dois sorrisos. Por isso, foi só o tempo de ajudar a subida das três ou quatro malas, pesadíssimas de coisas e de saudades. Estas, anestesiadas num derradeiro beijo, já com a carruagem em marcha. A viagem seria longa de dias, perfurando a Europa quase de ponta a ponta.

E tudo poderia ter ocorrido num aeroporto. Mas seria secura a mais, o adeus final na entrada do corredor da morte, a longa espera nas varandas e o avião (-Tens mesmo a certeza que era aquele?...) troando já no céu, a fugir para lá do algodão das nuvens.

Assim a comoção e os acenos na gare da estação partilharam a sua tristeza até à junção das paralelas dos carris, no negro ponto último do comboio. Só então as dores se separaram, uma à janela do mundo, a outra vadiando na rua - ambas naquela cegarrega mental, o pouco que lhes restava - um dia, um dia, um dia...

 

 

"Azares de um domingueiro"

João-Afonso Machado, 27.01.19

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Não compareceu o domingo,

somente deixou recado em que, enfastiado,

se intitulou o dia do céu

e partira, felizmente,

trajando véu canonizado.

 

Mas logo findou a espacial viagem

em choque frontal contra nuvem

de vinte e quatro horas de peso.

 

Pois nem o toque nem a sua celestial beleza

lhe consentiram da proeza

amanhã escapar ileso.

 

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 26.01.19

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Ninguém acreditou e era verdade: o garimpeiro, uma vida inteira agarrado à picareta ou peneirando as águas onde lhe cheirasse o ouro, descobrira, enfim, a rainha das pepitas.

Mas achou-a triste, afocinhada de porco velho, já sem forças para viagens. Deixou-a ficar, lavadinha do pó e da porcaria que a sua lentidão acumulava. Com os pés nas areias sempre humidificadas pela força das correntes. Como uma estátua de si próprio, para lição e vergonha de todos os incrédulos.

 

 

"Memórias do caminho-de-ferro"

João-Afonso Machado, 24.01.19

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Saiu agora a notícia do fenomenal terminal ferroviário na nossa Lousado, o maior no mundo português, justa homenagem ao labor empresarial que se concentra em Famalicão. É uma honra! Um sinal evidente de progresso, uma valia merecida e irrecusável. Lousado, decerto, mudará de cara, como as senhoras-bem das revistas, mas tais sequelas não assustam. Começando as imprescindíveis obras, há que ir ao local, fotografar, registar diferenças, evitar o Passado fique sem imagem.

Isto dito, impõe-se volvamos à arqueologia, à proto-história dos meandros da circulação ferroviária aqui nestas bandas. Despidos de documentação, calçados apenas na memória. Como se, por exemplo, estivéssemos no terreiro da Casa do Vinhal, cercada por uma linha férrea acima e outra por baixo.

Esta última permanece activa. Foi electrificada e nela circulam comboios às vezes oriundos da Capital, depois Nine é um ponto nevrálgico onde tudo se define – ou para norte, até à Galiza, ou seguindo o ramal de Braga.

A linha de cima foi, há muito, desactivada. Era o ramal da Póvoa de Varzim. Hoje uma pista velocipédica de duvidosa utilidade, e já com uns trágicos episódios de selvajaria no seu palmarés.

Vão lá quarenta anos, a vida era outra: a estação famalicense tinha «retretes» e canteiros floridos; tinha muitas linhas que se esbatiam no cascalho a bordeja-las; tinha um chefe, fardado, de kepi e um assobio, a bandeira enrolada nas mãos. Tinha vagar.

Nada de electricidades. As automotoras circulavam de vez em quando, a espera era a nota dominante, o Gabriel amava a Manela e os bancos da gare aproximavam tão sublime sentimento… As automotoras!  Vindas do setentrião ou surgindo na curva próxima do meridião, vermelhas listadas de branco, ronceiras, engoliam levas de estudantes e quejandos. Percorriam as linhas principais, assim como os infinitos comboios de mercadorias, rebocados por uma locomotiva diesel cor de laranja, toda a força da vida com dezenas e dezenas de vagões carregados à trela. E, nas linhas mais afastadas, outras composições movidas por centenárias máquinas a carvão. O seu destino – a Póvoa, quase duas horas de viagem e um banho obrigatório à chegada, para lavar cabeças comidas de fuligem.

Mesmo para a criançada, na EN206, a caminho do litoral, o programa significava uma alegria maior. Apanhando a passagem-de-nível de Brufe fechada, dificilmente tal não se repetiria em Outiz, Cavalões, nas Fontaínhas. Eram os Anos 60/70 do século transacto, os comboios ainda um acontecimento festivo, e o Pai desesperado, estrada fora, tentando chegar antes de o guarda-linha baixar as cancelas… (Depois das Fontaínhas, a ferrovia internava-se no concelho poveiro e dela não mais se sabia.)

Como é óbvio, tudo mudou. Guardou-se, justamente, o Museu Ferroviário de Lousado e a sua secção de Nine. Vão corridos uns tempos largos, descobri num alfarrabista uma numerosa colecção de postais da época, imagens de Famalicão, da Trofa, da ponte de Caniços, de outros lugares icónicos. Preciosidades em que locomotivas resfolegavam, carruagens desfilavam nos carris para onde quer que fossem. Ao longo de recordações subitamente vivas, quase com pernas de rapazote – nesta altura em que o conforto é tão bom, mas os telemóveis preenchem com mensagens e jogos as viagens, enquanto a automotora batia tachos, gingava toda, tinha assentos de pau e napa… mas era conversadora, coloquial, conhecia toda a gente.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 24.JAN.2019)

 

 

 

No fio da navalha

João-Afonso Machado, 22.01.19

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Ouvi a algazarra e fui ver. Mais uma rafeirada. Curta, peluda, serviçal, parecidamente mansa. Sempre ignorando a agilidade do gato, gasto de inveja.  Latindo, latindo, latindo para o fim do mundo, era o facto.  Excitado, aperreado, - a imitar o autoritário  -  essa era a atitude.

Tudo é o bicho energúmeno, persecutor. A teoria canídea reza o revez. (Oh! meus perdigueiros!) Vivi-a e vivo-a. Sou testemunha de todos os dias. O Inferno, contra os reaccionários, é diferente. Não tem bichos porque, se tivesse, os pobrezinhos em largas costas arcariam os pecados da gente, que são ignóbeis.

Mas tornemos ao gato. O desgraçado em cima dos ferros da ramada, como quem aguarda as próximas eleições, não arfava. Simplesmente esverdeava o olho. De olho posto no agora. 

Não ofegava. Somente esperava . Esperaria a tarde toda se necessário. O rafeiro persistia. O gato acomodava-se. Adormeceu em cima do arame. O depois é uma incógnita. Hoje são muitos dias. O eterno é a sobranceria do seu olhar. A Humanidade nada percebeu. A lição é nula.

Porque - em resumo - um ferro é uma cama; uma espera, um colchão; amanhã, o regresso à vida (o estupor do cão - claramente não um perdigueiro - há de cansar a sua bestialidade); descer a ramada, um passo de amanhã apenas. 

Os dias são isto, os irracionais ensinando aos racionais. Estes até aprenderão tudo - tudo menos dominar o pânico: aquele estar as horas múltiplas no frio da ramada.

 

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.01.19

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Tantos - mas tantos! - anos depois, de novo em Lisboa! Em outra investigação, versando Costa e a sua gula do Poder. Um trabalho encomendado, com alguma pesquisa em arquivos nacionais. No decurso do qual conheci um simpático historiador a convidar-me para um jantar, o do seu aniversário.

Compareci. Com um fato emprestado pelo meu primo mais velho e uma gravata quase a enforcar-me num nó de sapiência. A pagar o preço do casual, termo, para mim, de agora, que significa ganga e sapatilhas («ténis», dizem eles). O restaurante, de resto, não estava por nossa conta...

Tudo isto era nada, não fosse o caso de ela estar lá. Sempre a mesma! Loira, as pulseiras a chocalhar no pulso, lindíssima. Envolveu-me num Olá! enorme, saudoso, verídico. E ficámos sentados lado a lado.

O pior foi o outro lado. O oposto. Deu na cadeira um cavalheiro enorme que logo se apresentou como empresário. E antes de qualquer "boa noite" de resposta, avançou números - acabara de investir quatro milhões no Ribatejo. Quantia, aliás, insuficiente, amanhã mesmo insuflaria no empreendimento mais quatro milhões... O Estado estava com ele!

Eu não sei, continuo sem saber, o que são quatro milhões, ainda por cima acrescido de outros tantos. E vi-me sozinho - eu e a minha ignorância - naquela mastigação de notas. Limitei-me a ouvir respeitosamente.

O quê? Não me perguntem. Era o confronto entre os papeis velhos e o papel novo, circulante no mercado. Mais uma vaga noção de que o senhor, contrariado, desafiara para a porrada toda a assembleia municipal de uma Câmara qualquer. Á cause...

Eis senão quando sinto - oh! santa primeira vez! - a sua mão, erguendo-se no peso das pulseiras, massajando a minha. Foi, para mim, a profissão de fé no capitalismo. Valera a pena! E num asssomo de coragem, voltei a cara, mandei os milhões (que não eram meus) à merda e falámos - eu e ela - de poesia.

Um pormenor importante: antes de entrar a fundo em Mário de Sá-Carneiro, já não sei porquê, talvez pela minha eterna mania da caça, apontei aos patos-bravos. Inocentemente..

O certo é que o meu flanco direito baqueou. Foi fumar um cigarro e o tabaco, conclui, é coisa sagrada. As nossas mãos ficaram uma com a outra, os milhões encolheram, sumiram, e amanhã será o primeiro dia do resto da minha vida.

(Disse ela, ao ouvir-me suspirar de alívio: - Então não conhece o género?...)

 

 

 

Ericeira

João-Afonso Machado, 16.01.19

A história desta praia está quase no seu cinquentenário. Para trás ficará muito mais, pelo meio feitos miríficos do Progresso. Regressar à Ericeira só tinha um sentido - o de procurar lugares de antigamente, enveredar pela arqueologia das recordações, trazer cá para fora, irreconhecíveis de tanta poeira, todas essas múmias da sensibilidade. Desde logo, o Hotel, um poiso para outros bolsos mais tilintantes:

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O mar era bravo, coalhado de colchões Repimpa, o surf ainda não nascera cá. O areal muito encolhido e povoado. O jagoz vagueava mais pelo norte, e a capelinha de Nossa Senhora da Boa Viagem  é uma presença inequívoca entre as gentes da pesca.

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Vieram abaixo muitos cafés de então. Muitas edificações. Foi necessário andar de lupa na mão, o velho cinema tinham-no abatido... Mas a Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva continua no seu posto:

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Embora a Ericeira fosse mais a brincadeira, o Nita, a Paula e o Carlos Gramanhas, tantos nomes que as décadas dispersaram entre a vida e a morte. E as ruínas do moinho no cimo da colina que sumiu na voragem da construção civil. As ruas em gravilha, o dia em que a bicicleta me atirou ao chão e o Dr. Peralta me tapou a rótula com seis pontos. E o Caga-Baixo, o homem mais pequenino do bairro. Tudo assim galopando a minha cabeça ao atravessar o Jogo da Bola

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nessa tarde de sábado, como se ainda agora ali fossemos pelo jornal, por um sorvete, por umas ferraduras, que eram o almoço dos dias de praia numa Ribeira de Ilhas de água, areia e rocha e de muito poucos só.

Cantando e rindo  a cantilena do imorredoiro Gabriel Cardoso - "Ericeira, onde o céu é mais azul / Das belas praias do Sul (...)".

 

 

 

O eco de um adeus sem pontualidade

João-Afonso Machado, 14.01.19

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Ouvem-se ainda os passos hesitantes de um rumo desconhecido e vozes ansiosas, de velório, que o nevoeiro encobre, humilha. Seriam que horas? El-Rei marchava à frente, renitente, com os da sua derradeira confiança, mas ali há mais conselheiros do que coragem; e os pescadores têm mão no bote, entre o silêncio, a comiseração, e a força das ordens recebidas..

Cheguei tarde. A praia é já betão e as velas do mundo, desfraldadas à toa, como tantos e tantos,  afundaram o iate real nos arquivos da História. Falha-me o espaço para um aceno até, neste areal, trincheira intransponível.

Entretanto, a traição de uma rota supostamente para o Porto. No Norte as enchadas demoliriam as choças, enquanto os quarteis toariam clarins de boas vindas. Mas todos haviam esquecido a pistola que não foi apontada ao ouvido do comandante do iate. Gibraltar, um argumento atenuado, tendo na mira a Inglaterra, o exílio sem retorno.

E tudo sem um adeus, uma palavra positiva num olhar de energia. A praia atulhada de betão pelo tempo, a pistola no bolso de ninguém, os turistas gozando o verde-rubro do sol actual. Que fazia eu ali, calado sobre como foi?, as lágrimas de Suas Majestades as Rainhas espezinhadas no areal movediço da Praia dos Pescadores... E um iate à deriva perdido em águas que nunca mais se encontrarão. Resguardei a alma deste frio do destino e abalei.

 

 

Os famosos quatro cavaleiros

João-Afonso Machado, 11.01.19

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Muitos se lembram da História as longas, arrastadas, lágrimas soltas do cimo daqueles paredões brancos por fora, tenebrosos por dentro. Lágrimas penduradas nos ferros das grades, humidade eterna... E das imensas páginas das vestes freiráticas, eficazes paraquedas aterrando nos fenos dos carros de bois cúmplices e velozes em fuga nas margens do rio.

O resto foi o destino de cada uma aventureira. Tudo assaz variante, como sucede sempre, se a espoleta são amores contrariados e logo se enclavinam vontades em guerra. Ou ainda: no caos, em derrocada total, oxalá os varais afiados dos carros de bois não viessem acrescer a tragédia.

Em suma, quando os sentimentos esganam as palavras e as palavras chicoteiam os sentimentos. Na iminência incontornável do pânico. Ou desse surdo pesar que, em qualquer noite de desespero, clamava por archotes e farta forragem, a apaziguar os pontiagudos varais, com freirinhas inconformadas, revoltas, disparando-se pelas janelas para as estrelas do seu íntimo. As grades dos conventos são isso: a asfixia, a impiedade, as saudades, a ausência, - o apocalipse da alma.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 09.01.19

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É a história do pulmão encarvoado. Do oxigénio todo sujo. Mas em versão líquida e tinturada, vinda de muito longe, uma nojeira espalhada nos fundos do oceano dito azul. Não obstante a furiosa resistência das ondas na barra. E nesse entulho vão ainda as priscas dos nossos cinzeiros.

Eis o que devia figurar no rótulo dos maços de cigarros: devia ser proibido fumar debaixo de água.

 

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