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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Para este próximo ano

João-Afonso Machado, 31.12.18

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A corvina, toda a vida, fora o mais formidável desempenho de barbatanas que o trazia preso à barra. Há quem diga, graças também ao exagero de algumas vozes mazinhas, a acrescentar-lhe o peso, a dignidade e a braveza do troféu, a delícia do pitéu. O certo é que empreendera na corvina.

E pontualíssimo, dia após dia, na foz, lançamento sobre lançamento, já não havia solha, cavala, sargo ou mesmo robalo (quando eles vêm em cardume, aos milhares, enormes), já nada sobrava para lhe satisfazer as aspirações. Senão a corvina.

Nunca a vira. Mas estudara-a, lera muito. Empenhou-se mesmo, para comprar a cana e o carreto adequados. Encheu o velho Opel Rekord de aparelhagens e iscos, cheques, sabão e víveres, o necessário para uma ausência prolongada. No carro dormia, no cais cozinhava e mirava o horizonte, conversava com as estrelas e as marés, com a lua... e infatigavelmente pescava.

Assim decorreu um ano todo. As gentes ribeirinhas segredavam entre si, aquilo ou enviuvara sem filhos, ou endoidecera. A criançada já esgotara a curiosidade de o espreitar, sempre igual.

Conheceu o fustigar das chuvas, as navalhadas do vento frio, o sol em brasa. Sem esmorecer. De coração posto na corvina, prateada, uma boca tubaranesca, para cima de uma arroba na balança... Assim ela entrasse no rio e se deixasse cativar pelos atractivos do seu anzol.

Está lá, neste exacto momento, o lutador. Viram-no receber a encomenda pesadíssima, um farto renovar do seu stock de apetrechos. E a um apiedado daquela fé, respondeu em vibrante entusiasmo - É já este ano!!!

 

 

 

À mesa, o bacalhau de muito longe

João-Afonso Machado, 29.12.18

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Bacalhau por unanimidade. Frente a frente, os guardanapos desdobrados e as primeiras palavras como o mais banal pão com manteiga. De súbito, a lembrança de uma garrafa de vinho, que o coração já dava sinais de sede. Os comensais eram dois, o mundo uma bola de estilhaços, talvez perceptíveis alguns. O empregado ia e vinha, a conversa importante mantinha-se calada.

Foi depois a agradável sensação de que o bacalhau não tinha espinhas. Verdade ou ilusão? Sem espinhas, sem qualquer coroa delas, era um instante feliz, um gole de vinho a empurrar, e a cabeça liberta crendo - ou querendo crer - estavam ali, afinal, dois corações que se entendiam.

A sobremesa nada aditou aos muitos sonhos sonhados à mesa, por vezes indiscretamente. Como não apostar o amontoado dos dias todos num jantar só?

Esses os propósitos na viagem de regresso. Exclamações de entusiasmo lado a lado com o comedimento de alguns sins. O bacalhau nadava ainda as águas da memória, continuou a nadá-las noite fora, e decerto tal é o seu longínquo desempenho no tempo, no oceano das vontades, ninguém sabe até quando.

 

 

 

"O grande albergue de algum dia"

João-Afonso Machado, 27.12.18

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Entretanto, espero eu, os famalicenses passaram um Natal felicíssimo e preparam-se afanosamente para entrar na maior folia em 2019. Um ano, para todos, cheio de coisas boas, as do costume – saúde, prosperidade e, talvez não menos, a Paz. Esse precioso ingrediente das noites bem dormidas.

Tudo isto não é mais de o mínimo possível que alguém pode desejar a outrem. A crónica findaria aqui, pois, se não houvesse novidades. Desta feita, oriundas de Inglaterra.

Estive lá uma semana inglesa: no sábado tudo era pretérito. Estive em Canterbury, para os mais distraídos a sede da Igreja Anglicana, a célebre Cantuária do Arcebispo. Uma pequena cidade não longe de Londres, em que um meu filho estuda na Universidade. Foi por isso – fui lá visitá-lo.

Assim dei conta do seu modus vivendi. Numa enorme mansão de três andares (com alguns quinze hóspedes), dessas absolutamente britânicas, atijoladas, com um jardim agora parque automóvel. O funcionamento é simples, se os utentes não complicarem – há uma lavandaria, duas cozinhas, os sanitários bastantes. E quem lá vive?

Muitos estudantes. Alguns trabalhadores ou gente sem família, vidas errantes. E migrantes – lembro uma russa que não dizia uma palavra em inglês…

Cada um se encarrega das respectivas provisões alimentícias, guardadas, por norma, nos frigoríficos comuns. Do mesmo modo com as roupas, lavadas e passadas a ferro no compartimento preparado para esse efeito. Cada um, enfim, cozinha o seu almoço ou o seu jantar.

Os quartos têm apenas um lavatório. Além da cama, de uma secretária, o armário e a prateleira. Uma regra essencial – o silêncio, para não incomodar os vizinhos. Quanto ao lixo, o seu despejo fica a cargo de cada um que o produz.

É como vive gente tão díspar, sendo frequentes as amizades que se vão criando. Nesse casarão já afastado do centro de Canterbury, um entre tantos rodeados de frondosos jardins.

E nem tudo são flores. O bretão da era de Stonehenge também lá está. Hirsuto, chineleiro, grossas meias de felpo e o inefável fato de treino, já muito seboso; não correspondendo às saudações que lhe são dirigidas, mastigando alvarmente sentado na quina de uma mesa da cozinha; a grunhir, a grunhir, a grunhir, sempre a despentear-se mais do que já está… mas acabando a lavar a loiça que utilizou. Assim a vida prossegue, sempre para diante.

 Partilhei-a toda a minha estadia. Observei. Não tardou estava no meu espírito o nosso Hotel Garantia. Conheço-o interiormente, sei quão iguais são os seus quartos aos da moradia que acolhe o meu filho em Canterbury. Acrescente-se-lhes a enorme cozinha, o espaço, nos pisos inferiores, um autêntico batatal… O café de tanta saudade, ressuscitado, esse que foi o mais bonito café famalicense – um potencial bar ou restaurante (uma cantina?), um qualquer lugar de lazer.

Não sou conhecedor da situação do Hotel Garantia. Nem sequer de a quem pertence. Mas sei que, naquele estado, com aquela localização, não dignifica a cidade e, em particular, deslustra o seu centro.

Isto tudo quando se multiplicam as queixas de falta de pequenos apartamentos para arrendar. E os locais de trabalho são cada vez mais voláteis. E as pessoas circulam de terra em terra, hoje aqui, amanhã ali, - ou em Famalicão, com custos elevados e tendo por vizinho este soturno fantasma, eternamente inconformado com a injustiça nele perpetrada.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 27.DEZ.2018)

 

 

 

Top model

João-Afonso Machado, 25.12.18

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Aquela pasta verde era o seu bacalhau. Já anoitecera há muito, embora ninguém tivesse dado por isso. Nem pelos foguetes habituais, caso em que talvez galopasse (é modo de falar...) para o seu abrigo. Não, o momento desfiava-se sossegadamente.

Comeu bem, vegetais diversos. Faltaria ainda o bolo-rei, ao fundo da mesa, não fosse a sua veemente recusa. A massa carnuda, folhas esponjosas, as frutas cristalizadas, açucar e mais açucar...

Assim, sozinha, recolheu a dormir. Enquanto os outros todos foliavam nessa noite nem sempre de excepção. Mas não era só a obesidade que a horrorizava, era também o desemprego que a ameaçava.

Que dia seria o seguinte? Não sabia. Seguramente, um dia sem sessões fotográficas. Outro dia para manter a magreza. Porque, afinal, todos os dias são iguais.

 

 

 

Há que desenrascar, e nisso somos bons

João-Afonso Machado, 22.12.18

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Foi numa voltinha a Ross-on-Wye que conheceu Mr. Cunningham. Chegara há pouco, levara-o o compadre esse domingo, havia lá onde beber cerveja da boa. Mr. Cunningham parecia trazer o barril dentro dele, a escapar-lhe por cima do cinto. Falava muito, uma algaraviada que, não fora o compadre, ainda agora lá estaria, a tentar entender.

Feitas as contas, esse tal queria vender a sua velha furgonete. Reformara-se.

- Já não cabes lá dentro, meu grande boi! - pensou com os seus botões. Mas ainda sem modo de vida e com o compadre a segredar-lhe - Compra, aproveita, não sejas sostra, morcão! - convenceu-se. Ficou-lhe com o cangalho e o negócio. E não olhou nem para a ferrugem nem para a pintura, para os dizeres da Bedford. (A última assim que vira, ainda o avô era vivo...) Também esqueceu os papeis da viatura. Alou-se e começou a bater às portas todas iguais daquela town. Com um propositado ar de trouxa, de Mr. Cunningham worker.

Era gente, a recebê-lo, de curto paleio. Mas tinha sempre que despejar para dentro da furgonete. Ferro-velho. Quase tudo para vender a peso numa iron factory. Dava para o gasóleo e para uns filetes mal amanhados, um nico de peixe dentro de uma carapaça de gordura, com umas batatas, aquilo não eram fritas nem assadas... Enjoava como uma pescada e vinham-lhe arrotos e saudades da terra, qualquer lagrimazita, até...

Mas, o outro dia, saiu-lhe a sorte grande. No meio da entulhada, uma caixa com meia dúzia de carrinhos antigos, desses com que a canalha brincava antes das electrónicas. Foi o compadre a dar com eles e a segurá-los, antes que os deitasse fora. - Vamos vendê-los à feira de Portobello, em Londres: isso vale bom dinheiro!

E foram. Era verdade, trouxeram umas fartas notitas para casa. De tal modo que essa noite não quiseram saber nem do fish, nem do cod, e comeram num restaurante português um senhor bacalhau assado, regado com uma garrafa de boa pinga para cada um, carago!

É claro, agora, sempre que visita um freguês, diz-lhe logo nada quer com old toys, a ver se ele se lembra de algum, no bedroom, e lhe pede o favor de o desenfardar daquele traste.

 

 

O trono real

João-Afonso Machado, 20.12.18

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Eles são assim. Sentados na maresia, entretidos a contemplar o Continente, ante um canal calmo, de águas somente mortíferas de tão gélidas. No mais, tudo é a infinitude do Tempo e uma pitada de saudade, isso da fleuma britânica tem muito que se lhe diga. Quem deixou amarrado ao banco o ramito de flores? Lembrar o sulcar das ondas de quantas centenas de embarcações, a angústia da Normandia umas horas depois, o sangue que foi e se diluiu no mar... Ainda agora são gritos bem vivos!

Claro que a superioridade é deles, com mais ou menos pounds no bolso. São historicamente o baluarte de um mundo livre e de uma personalidade que não verga. Pedi licença e fui para a pontinha do banco, como num breve instante em que Portugal reinasse aquela desconcertante ilha.

Onde, afinal, a celebérrimo chá deu à costa trazido por nós, da raça dos improvisadores e de um canto que eu ando a cismar, ainda me ponho de coração a cantá-lo. Portugueses e britânicos, de tão diferentes, tornam-se próximos, absolutamente amigáveis.

 

 

Tessie

João-Afonso Machado, 18.12.18

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A cidade estremeceu, o berreiro era ensurdecedor. Mas que explicassem a um português quem fora aquela sua compatriota ali descansando de que vida? E as notícias, algo desencontradas, permitiram trazê-la por momentos aos nossos dias. Vinha temerosa, um pouco, acabada de desembarcar em Cardiff, uma mala apenas, conquanto excessiva para a sua esguia figura. Saia às pregas abaixo do joelho, um sobretudo já com vasto uso, e o lenço a cobrir a cabeleira muito a pedir arrumo. Ainda não desaparecera totalmente o cheiro a pólvora queimada durante tantos anos de milhões de mortos.

Os britânicos não sabem localizar a sua proveniência, mas, a avaliar pelo apelido, minhota ou duriense não será. É provável Maria Teresa Borda fosse uma dos muitos milhares de existências à deriva na imensidão lisboeta. O que, sem dúvida, tira cor, tira drama ao enredo. Até porque, sugeriu alguém, corria-lhe nas veias o sangue de uma qualquer avó inglesa. Mas, acrescentou um idoso, ela viera por um amor impossibilitado durante os constantes bombardeamentos de Londres. O grito maior de dor advém, precisamente, desse desencontro, da confusão e das toscas comunicações de então. E, sem uma referência, um sítio de romagem para florir, fora ficando. Gente sabedora desse amor assassinado antes mesmo de se dar as mãos, compadeceu-se, trouxe-a para si. Tornou-a Tessie. Mas onde vivia? Com quem vivia?

A cidade afastou-se de mim, cultora sempre da essencial discrição. Afinal, a única certeza é que Tessie jamais regressou a Portugal. Ficou onde melhor sentiu a proximidade do seu impossible loving husband. E, vão lá vinte anos, partiu acredito piamente ao encontro dele. Era uma mulher nova, mas ansiosa, impaciente. Foi a sua vez de cá deixar saudades, estas sim, sabedoras de onde colocar flores invocativas. E de agora se caligrafar a sua eternidade, portuguesa de um dia, um tempo, um percurso, vão lá vinte anos.

 

 

Canterbury

João-Afonso Machado, 16.12.18

Lamentavelmente, a grande catedral inglesa - a sede do anglicanismo - está em obras, e as imagens daí resultantes são as de um freguês do barbeiro sentado na cadeira a desfazer a barba. Mesmo porque no ar corre um certo cheiro a pescoços cortados, ou enforcados, naquela era conturbada do rei das sete mulheres.

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Mas o templo é grandioso. Como no seu interior muitos dos túmulos, decerto de gente importante, que o Tempo nem esquece nem deixa identificar. O sereno semblante dos mesmos poderá indicar que estão na paz do Senhor. No mínimo, depende do ponto de vista.

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A cidade é pequena mas tem muita animação, muita gente. Uma parcela considerável constituída por estudantes. São bastantes as mini-praças, a abarrotar de movimento, bordadas a casinhas de bonecas.

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E há comércio para todos os gostos. Livrarias, antiguidades, outras coisas mais -  e mais do agrado das senhoras.

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Para os cavalheiros, lautas doses de jeropiga - da jeropiga britânica - vertida, entardecendo, nos famosos pubs. Como, nesta altura do ano, anoitece às quatro...

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Canterbury, há muito extravasou os muros medievais. Destes restam excertos, mais ou menos extensos, dos quais o mais famoso será a West Gate.

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Aliás, dessa porta para além a cidade é outra. Nota-se na construção, no recrudescimento do trânsito automóvel, na dispersão das pessoas. Mas isso serão outras histórias.

 

  

 

Mr. John Kemp

João-Afonso Machado, 14.12.18

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Mr. John Kemp (o quarto do nome) é, por todo o condado, um reputado funeral director. Veste-se invariavelmente de negro ou, em dias mais primaveris, de um cinzento escuro quase igual ao dos humanos em geral. Sob a cor das suas gravatas nada haverá a acrescentar, bem como sobre o cabelinho fino, agrisalhado, com uma risca que é um linha recta cercada de um qualquer unguento, capaz de resistir à maior tempestade. A vénia é um vício seu, o esfregar as mãos, curvado e atencioso, um outro, a que sabe juntar três lágrimas vertidas na ocasião exacta das condolências. Depois sobrepõem-se as questões práticas, as costas sempre curvadas, as mãozinhas numa efeverscência. O plano impõe-se-lhe surja a gosto pleno do cliente. E Mr. John Kemp é regularmente avisado de que o cliente manifestara em vida o desejo de fazer a sua última viagem na carreta. Na sua antiga carreta puxada por dois muares negros.

O funeral é, então, algo digno de ser visto. As bestas cobertas por mantas amplas, roxas como a Quaresma toda, com incrustações prateadas. Exactamente iguais às da época de Mr. John Kemp, o primeiro do nome. O cocheiro trajando a rigor, de cartola e chicote em riste, solene que nem um general. São momentos em que, naquela litlle touwn, não há lojista, reformado ou simples transeunte não pare e observe, estupefacto, semelhante aparato. 

Enfim, um cangalheiro conforme manda o preceito. Sempre invocando os serviços funebres por si organizados, os de gente célebre, isto conversa com vivos que, arrepiados, sempre lhe impõem - Stop, Mr. Kemp, my turn it´s not come yet.

Assim Mr. John Kemp (o quarto do nome), cangalheiro por sucessão e tradição, foi dando conta de que, na rua, no futebol, no pub, a sua presença produzia a impressão de um abutre recém chegado, uma companhia indesejável, negativamente premonitória. (Brrr....)

Urgia dar aos seu conterrâneos uma lição de vida. O quarto Mr. John Kemp é um homem de recursos imaginativos, já se disse. E o gato negro que acaricia ao colo todas as noites, antes de dormir, esse gato que encontrara um dia, bebé, a morrer de fraqueza, forneceu-lhe a ideia genial - uma campanha pela adopção de animais abandonados.

Mr. John Kemp, deixou as mãos em paz, uma com a outra, e foi-se à montra da sua agência, que varreu de tudo quanto lá assombrava os passantes: cruzes, epitáfios, vasinhos de flores. molduras prós defuntos. Atirou essa trastalhada ao chão (ante o desespero da funcionária, que o julgou possuído pelo demo) e encheu a montra com um cartaz enorme, repleto de fotografias de gatos e cães - e mesmo um periquito - ansiosos por uma companhia amiga que o Pai Natal lhes traga nesta quadra.

Aquela gente gosta de animais e, um belo galgo, não há quem não sonhe levado à trela, mesmo deitado à lareira do bar de todos os dias. Mr. John Kemp, o quarto, é o actual maior receptor de palmadinhas nas costas. É certo, tudo isto é recente, ainda ninguém morreu entretanto, mas os animais rejeitados por ele descobertos, são alvo da cobiça de todas as almas da litlle touwn.

E Mr. John Kemp quer-se agora somente o dear John, fellows, esqueceu a sua fatiota de sempre e já usa blusão de cor garrida. À noire, no pub, consta até, abusa um bocadinho no emborcar dos pints.

 

 

"Um nadinha de política"

João-Afonso Machado, 13.12.18

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A assembleia reúne com regularidade e expressividade de pontos de vista. A lembrar os antigos tempos em que os monárquicos famalicenses se encontravam na confeitaria do Sr. Álvaro Bezerra (um dos nossos mais destacados caciques, o então chefe local dos fieis d’ El-Rei) e os republicanos em lugares diversos e grupos vários, sempre às turras uns com os outros. Hoje, reconheço, estamos em minoria – mas uma minoria que se vai esbatendo, esbatendo… Enfim, no sebastiânico dia da Restauração, previsto para muito em breve, a assembleia recebê-la-á, in totu, estou certo no mais incendiado entusiasmo.

No resto, há até um grande contingente de opiniões em comum. Ainda a semana passada, por exemplo, veio à baila o sinistro Beria, dito o “carrasco de Estaline” – o homem que instigou e deu andamento a milhares e milhares de condenações à morte. Gente sumariamente julgada, sem direito a defesa nem a recurso! Somente por terem caído no desagrado desse sanguinário bigodaças, com Beria a encher-lhe os ouvidos de intriga. Pois também ele (com o seu quê de fisicamente semelhante a Himmler, aliás) terminaria os seus dias em frente de um pelotão de fuzilamento, por ordem de Krushchov. Na União Soviética era assim… E nessa hora extrema, lê-se num livro recente de José Milhazes, Beria, aterrorizado, - o Beria que a mesma sorte ditara a tantos – suplicava misericórdia e fez cocó nas calças.

Evidentemente, a assembleia por unanimidade, solene como um júri, julgou Beria e Estaline uns assassinos carniceiros, um autêntico atropelo à Humanidade. Isto tudo enquanto procedia ao massacre de um naco de carne assada, já fora do concelho, em mais uma peregrinação gastronómica e cultural. Mas de quem falo eu?, perguntará o leitor. Pois não posso dizer, muito embora aqui fique a minha jura de que ninguém usa avental com o compasso e o esquadro da Maçonaria.

Não, a sua identidade é para permanecer oculta. Tal a elevação dos princípios iniciáticos por que se rege. No outro dia, um dos membros referiu-se aos demais chamando-lhes “tertulianos”. Discordei. Tertuliano era um imperador romano, um déspota cesarista, um digno filho da República. Antes os confrades se denominassem “tertulistas”, lembrando, até, os tempos idos de um belo totobola em cheio (gente proba basta-se com totobolas, o euromilhões é um excesso desnecessário), daqueles bem antigos, com quadrículas para o 1-x-2 e jogos da I Divisão e da II Divisão (Zonas Norte e Sul), que esperançosamente registávamos todas as semanas na Casa Voga, ansiando sermos “totalistas”.

Então o futebol era a política mais consentidamente conversada. A política do “chuta para a frente e marca”. Hoje fala-se de muito mais, sobretudo da estreita ligação entre o futebol e o crime, da sua irresistível propensão para o escândalo. A assembleia debate muito o tema, sobretudo riscando a duas cores – a verde e a vermelha – incompatibilidades ferozes.

Mas quando estas notas vierem a público, estarei um pouco longe, geograficamente falando. À margem, portanto, desses circunlóquios. A festividade da Imaculada Conceição terá também ficado para trás. Beria e Estaline esquecidos no caixote do lixo da História. Sua Majestade, com o Natal à porta, já principiará a distribuir pelo povo português o seu bolo, o melhor do mundo. Sob o manto sereno da nossa bandeira azul e branca. Parece que vejo daqui o filme – os tertulistas verdes e vermelhos esgrimindo diatribes e o Sérgio (de N. S. da) Conceição muito na dianteira com as suas tropas, a gloriosa bandeira azul e branca sempre erguida. Somos menos, mas somos muito melhores! Viva Sua Magestade!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 13.DEZ.2018)

 

 

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