O estranho mundo de Campanhã
Como se estivessemos a milhares de quilómetros da foz do rio, saíamos do comboio, em madrugadas negras, esparvoados, sonâmbulos, quase sem rumo na vida. Defronte à estação, algumas hospedarias e os nossos bolsos vazios, a vontade a chorar por uma cama com visões de palácios. E de carruagens puxadas a quatro cavalos, havia quem simplesmente lhes chamasse táxis, como o trajecto para um descanso já quase ali. Mas o destino apenas nos dava a enorme força para escalar a Rua do Heroísmo e depois Rodrigues de Freitas, a Batalha...; ou então Pinto Bessa, a Constituição (não lembro agora por que artéria), tudo em busca da Boavista, onde finalmente o sol nascia e acordava a cidade.
Era assim, magalas, estudantes e demais pobretanas.
Hoje não seria. (Vd. metro.) Resta a saudade dessas camas onde nunca dormi e dos pequenos-almoços a que, provavelmente, não teria direito.
No mais, Campanhã mantém-se igual. Um cadáver industrial, um armazenista mumificado. Mas povoada de famílias, contra o senso comum. Como é natural, a abarrotar de tascas e estabelecimentos daí para o fundo. Entre outros viras, há fados. E porrada, claro. Diz-se, no Porto, se for preciso contratar alguém para um ajuste de contas, é em Campanhã. A oferta topa-se amiúde, ornada de tatuagens e olhares desafiadores. Vamos de beco em beco.
Florescem aí, entrementes, galerias de arte. (Elas também procuram os lugares mais baratos.) Não é promiscuidade, é um fundo da cidade a levantar a cabeça, entre a rufiagem e a cultura. Campanhã abre as portas. Lembro uns clientes meus, do tempo em que advogava no Porto - quando os visitava... fábrica sem vistas, sítio pardo, sem ecos, ruas anónimas, gente nas trincheiras. Agora já não tanto.
Ainda assim, numa visita recente a uma exposição de fotografia, logo abaixo o estabelecimento com uma guitarra portuguesa desenhada na vidraça. E à porta, ia jurar, de cigarrette na boca, a Lulu Carabina. Ou a sua prima portuguesa mais próxima. Campanhã, em suma, tem ginástica, sobretudo a do can-can.