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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Covelinhas

João-Afonso Machado, 29.09.18

Não há notícias de qualquer comboio em trânsito de ou para a Régua. Substitui-o o pacato barquito à vela, subindo o Douro, com um olho no anfiteatro sobre as águas que é Covelinhas.

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Estive muitos anos sem lá voltar: à terra do Dr. Pôncio Monteiro, que nunca conheci, um dos pioneiros dos debates dominicais sobre futebol, esgrimindo a sua verve pela honra do F. C. do Porto. Tem-no Deus. Uma terra, Covelinhas, que o rio de certo modo invadiu, para gáudio dos pescadores, às dúzias por lá.

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E não apenas de peixinho pequeno, o desespero das percas-sol e dos achigãs infantis...

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Também ali se apanham, sobretudo depois do escurecer, iscando com massa de cotovelos cozida, boas, repolhudas carpas; e ouvem-se histórias de cobras quase quilométricas, já por alguém vistas, bufando e curveteando as bordas da lagoa, como se tudo isto fosse um Ness à portuguesa... Por testemunho dou apenas a presença de lontras, brincalhonas, descontraídas em mergulhos atrás de mergulhos, desde que a gente as não perturbe e deixe andar.

No capítulo dos monstros e das aparições, que não fique esquecida a menção ao Gavetas. Quem era o Gavetas? - Não sei. Há vinte anos assim se tratava um certo energúmeno - depreende-se - assaz amigo dos bens alheios. Nunca o vi e fui então mantendo o cuidado de fechar bem as portas do carro.

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Porque nessa altura não havia ainda o parque de merendas. Tudo eram margens, apenas. E eu dormia nos estofos rebaixados, pelo menos enquanto não fossem horas de trepar a palmeira até à varanda e entrar em histórias aqui inenarráveis. Cumprindo sempre as obrigações piscatórias, sendo até as carpas um peixe muito apreciado naquelas bandas.

 

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E ao fim de uma semana debandava. Subia o monte por aquela estrada íngreme, estreita, sem barreiras de protecção. Passava na Galafura e estava a caminho de Vila Real. Depois rumava o sul. Para trás, as carpas, o silvo das cobras infindas, as lontrinhas, a palmeira e a permanente ameaça do Gavetas. Afora as partidas que a idade nos prega e os estragos que o Tempo causa, Covelinhas há de estar praticamente igual.

 

 

 

Sem rei nem roque

João-Afonso Machado, 25.09.18

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Houve um dia, percebi finalmente não eram os animais que tranquilizavam as pessoas. Eram estas a prepararem aqueles para esse nobre ofício de serenar os donos. Mas quais estas?

Vinha ao de cima o saber inicial: "estas" eram poucas, muito poucas. De tal maneira que os jornais iniciaram o tema dos maus-tratos à bicharada.

O ciclo completa-se e parte de nós, ditos os racionais. A caminho do Douro Alto, já noite fechada, penso muito em chicotear um juiz. Uma besta. Azar dele, porventura: não tem ao menos uma tarântula de estimação a amenizar os meus instintos. E tem-me com vontade de o esganar. E eu tenho muitas saudades daquela pessoa que, a estas horas, viajaria comigo, tudo transformava num passeio e correria também atrás de algum texugo que vislumbrássemos entre o vinhedo. Ora aí está!

 

 

O Cara de Grilo

João-Afonso Machado, 23.09.18

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Pois que hei senão de correr ofegante atrás da minha caneta, incapaz de a impedir de levar avante o seu propósito, um novo conto? A saga do Cara de Grilo, personagem grotesca. Estúpido, pedante, falaz. (Lá esta ela, a caneta, desbragada nos adjectivos.) E por mais que eu lhe peça, lhe implore, sempre ligeirinha, acutilante, a despachar considerações, o Cara de Grilo é um saco cheio de nada, uma tromba feia, um revolucionário a mamar pelo biberão. Calma, caneta, esquece o tema, escolhe outro.

É o esqueces! É o escolhes! Porque o rapaz não presta, não soma dois com dois. Porque é um mau exemplo. Porque é um ecologista fumador e lança as priscas ao chão. Porque todas as canetas têm memória (nisso estou de acordo com ela) e tanta petulância precisa de palavras grossas, em bom português, figuras de estilo escolhidas a rigor, frases plenas de direcção a frechar-lhe o armanço.

Nada a fazer. É deixá-la deslizar no papel a rabiscar o conto. E, ao menos, negociar umas imagens, enxertar nele alguns pormenores paisagísticos a amenizar a ferocidade da narração.

Os leitores depois dirão de sua justiça.

 

 

"Outono à vista"

João-Afonso Machado, 20.09.18

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Chegando a casa depois de quase dois meses de ausência, eramos olhados com uma certa desconfiança pelas gentes do campo. Vínhamos castanhos, tisnados do sol, de um castanho suspeito, aciganado, conquanto mais loiritos, amarelados da cuca. Não que a vida na lavoura não proporcionasse também outras cores. No entanto, a prevalência, nesses casos, era o vermelhusco, a poupar a faixa cimeira das testas, onde assentavam os chapéus, e o tronco, as pernas, que a roupagem protegia dos raios solares. É claro, não se faziam contas às mãos e aos pés, tão calejados, endurecidos e enegrecidos na dura e honrada faina de todos os dias.

Sobrevinha, então, a curiosidade do que se passara «lá para as praias», se não mesmo uma pontinha de censura – que pouca-vergonha! – imaginando a imensa tropa veraneante, eles e elas, despida nas areias até ao mínimo indispensável. Estávamos a décadas, ainda, do bronzeado global, ansiosamente (e pouco sadiamente) também buscado pelos netos dos dessas remotas eras.

Idos de acentuada diferença, em que a lotação no nosso litoral estava ainda muito longe de esgotar… Ocorre-me de repente a visão de há umas semanas – a de uma jovem com o seu biquíni, estendendo a toalha no cimento de uma antiga vacaria, sob um sol inclemente mas ávida de cores mais atraentes, mais sexy; e a da capa do Crisis, What Crisis?, o LP dos velhos Supertramp…

Mas em tais épocas as coisas funcionavam em sentido oposto. Demorava mesmo algum tempo a habituarmo-nos uns aos outros, os que haviam permanecido nas aldeias e os que retornavam. Provavelmente, ainda doeriam as memórias de algum episódio mais doce, mais bafejado pela gentileza de um olhar feminino. Restava o doloroso calvário de aguardar o próximo Verão… Mas já a semana seguinte o drama se mitigara, felizmente. Bastava, para tanto, qualquer vinda à Vila, o encontro casual com esta ou aquela colega liceal, a lembrança rejuvenescida de promessas no ar, sonhos interrompidos no derradeiro suspiro do ano lectivo. Pendências de Junho e Julho…

O triângulo apaziguava-se – a praia, o campo e a Vila. Como o ciclo de vida de qualquer ave migratória. Já no horizonte se ouviam as vozes autoritárias dos professores, as tremendas alvoradas para as aulas. Mas antes ainda gozaríamos a excitação das vindimas.

O bardo era um sistema então desconhecido. O vinho nascia e brotava das ramadas, na orla dos campos, sobre os caminhos, ensombrando a oceânica poça das rãs. Sempre seriam duas dezenas de pipas, ou mais… E labuta para vários dias. Chegavam de fora reforços. Rapazes e raparigas novos, à jorna, o dia todo subindo a escada com a tesoura de poda e o cesto de vime, descendo a escada carregados de cachos, deslocando a escada para onde fosse necessário voltar a firmá-la no chão. E cantava-se, palrava-se, ao longo dos arames das ramadas, diria mesmo, namorava-se. Também se espreitava, sobretudo quando alguma cachopa se esticava um pouco mais a não deixar para trás qualquer gaipito de uvas. – Ó Se’Manel, onde tem você os olhos? Ora faça o favor de não ficar a mirar a lua que ainda não é noute! – E entre risadas e brejeirices o Se’Manel deixava em paz as pernas da moça até à próxima oportunidade de as «apreciar», como delicadamente se dizia então.

As dornas e a colheita, em cima do atrelado, levava-as o tractor à adega cooperativa. Sentia-se bem a pequenez dos dias, pelas sete e pico o sol caía já sobre as bandas do mar. Desse mar que, antes pouco, fora o centro das atenções balneares. O tempo é fulgurante! O Natal estava à vista e a idade cavalgava, com o Passado sempre atacando furiosamente o Futuro.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 20.SET.2018)

 

 

 

Cacela Velha

João-Afonso Machado, 17.09.18

Um pedaço de Algarve diferente, vindo da antiguidade dos gregos e fenícios, passando pelos romanos e árabes a caminho de uma história inteira de conflitos fronteiriços e ameaças corsárias. De tudo estão lá os vestígios.

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Foi sede de concelho, posta em cima de uma arriba fóssil com talvez um milhão de anos. A espreitar o fim da Ria Formosa, a língua enorme de areia que a separa da praia, como se ainda agora a guarnição temesse a ruindade vinda do mar, danificando os muitos azuis das suas águas.

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Sopra no ar um toque intenso de ruralidade. Dentro da povoação o tempo espreguiça-se ao sol, desde a edificação da Matriz até à da casa do Pároco.

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 Sem se preocupar com os avanços das telecomunicações...

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Estamos no coração no concelho de Vila Real de Santo António. Em plena ausência da construção em altura, dos condomínios mirabolantes.

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Porque o mais são dunas, falésias, espaço e horizonte. O regalo de idosos contemplando o mundo que os criou e os ensinou quer a pescar, quer a trabalhar as terras. Sorrateiros, não venha aí a invasão dos povos turistas.

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Talvez mesmo por ali se consiga ouvir o silêncio, ou alguma ovelha a balir. Em vez de qualquer madame a guinchar ante a visão de uma lagartixa.

 

 

 

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 14.09.18

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Gosto de histórias em que as princesas se miram ao espelho: seja para se torturarem com a sua anorexia, seja para gozarem a sua beleza, a elegância das suas pernas vermelhas do sol.

Assim fosse tão simples cativá-las e, sem espinhas, dar-lhes um beijo na boca.

 

 

 

Como El-Rei e os Infantes

João-Afonso Machado, 13.09.18

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Águas quase mouriscas, como essas que despejam especiarias em terra. A maré movimenta-se pachorrentamente, há colorido e algum desarrumo nas docas. Tudo é próximo, Espanha, África, mesmo o inalcançável horizonte. De algum lado chega a música de estranhos, exóticos, instrumentos. E um ambiente acalorado, de um pé do lado de cá, e o outro do lado de lá da fronteira.

Nem nos ocorre mais do que a foz do rio e o pressentimento da aridez do interior. De costas viradas ao seu curso, espreitamos as margens. Sim, também se ouve falar português...

Mesmo os aromas não são os nossos. Talvez a sua estranheza resulte da temperatura nestas paragens. Dos seus tons e sons.  A bordo de uma embarcação patusca, sonhando, as impressões do Império de uma grandeza enorme, que é o dos sentimentos e das sensações.

 

 

Faro

João-Afonso Machado, 10.09.18

Não é uma história longa, mas é a capital do reino do Algarve. E é, mesmo assim, antiga, quer porque remonta ao tempo dos romanos, quer porque Faro estava a umas décadas das minhas últimas férias naquelas bandas.

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Agora é, essencialmente, um girândola de aviões chegando ou deixando o seu aeroporto. Em Faro há uma imensa prevalência de turistas, nacionais ou estrangeiros, e alguns nativos sobreviventes. Tal qual a velha «catedral» e as vistas da sua torre sineira.

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Mantem ainda um lugar reservado para as velhinhas ruas de que capital de distrito alguma pode prescindir. Todavia, em doses comedidas, infelizmente.

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Não obstante, o Passado ainda consegue respirar, cá em baixo, entre o palpitar do comércio e a espuma das cervejas nas esplanadas, em um ou outro bocado de parede. Quem seriam, outrora, os importantes de Faro?

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Questões - esta e muitas outras - a responder sabe Deus quando. À nossa frente, o traçado caprichoso da Ria Formosa e das suas muitas formas. Vale a pena espreitar, sonhar com o barquito e o passeio pelas suas ilhotas.

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É o Sotavento, quase todo ele. O Algarve, bem vistas as coisas, é bastante maior do que geralmente idealizamos. 

 

 

 

 

"Uma Senhora que deve e vai ser homenageada"

João-Afonso Machado, 06.09.18

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Famalicão prepara-se. Vem aí um dia de festa e agradecimento. Dedicado a D. Miquelina Peixoto, uma enfermeira nossa. Cá da terra. Vamos a um breve interlúdio:

Muitos se lembrarão dos partos em casa. Do nascimento dos filhos, dos irmãos ou primos, ali na cama de todos os dias, envolta em todos os improvisos, resultando, tantas vezes, em lastimável malogro. Eram os tempos e a falta de ciência. Depois chegou o velho hospital da Misericórdia (o edifício da actual Lusíada) e finalmente, o do presente, creio apelidado “do Médio Ave”. Este um processo cujas primeiras páginas já somam gerações e gerações de famalicenses. Milhares deles.

Resumidamente, o hospital que nos serve remonta aos Anos 60 do século passado. O anterior não primava por instalações especialmente convidativas. E durante quatro décadas, neste turbilhão de carências e batalhas, serenamente dava o que podia, com os meios de que dispunha, a enfermeira Senhora D. Miquelina Peixoto.

Não nasci cá, não foi ela que me puxou para o mundo. Já com os meus irmãos mais novos, é bem possível que sim. Mas não ficaram registos desses natais. Como quer que seja, o serviço à comunidade da Senhora D. Miquelina é uma realidade de uma vida inteira. Aliás, segundo as suas próprias estimativas, terá auxiliado a cerca de 300 partos anuais, ao longo das ditas quatro décadas!

Assim se justificam alguns traços biográficos mais, como tudo foi acontecendo:

Nasceu em S. Simão de Novais há 86 anos e fez os seus estudos de enfermagem nas Irmãs Franciscanas Hospitalares da Imaculada Conceição. Mais tarde, na portuense Maternidade Júlio Dinis, obteria a especialidade de enfermeira-parteira-puericultura. E assim regressou a Famalicão, a exercer o seu múnus. Se as pessoas não se valiam (por falta de hábito…) do hospital, ia a Senhora D. Miquelina a casa delas assistir aos partos. Por vezes, em localidades vizinhas, já fora do concelho. Foi a nossa primeira enfermeira-obstectra.

Todo este historial lembrou a um grupo de famalicenses a justiça da imprescindível homenagem a esta benemérita. Quanto sei, precisamente no dia do seu aniversário – 28 de Setembro – com uma missa de acção de graças na Matriz nova, e a intervenção da cantora lírica Maria João Matos a interpretar a Ave Maria de Schubert. Depois, à noite, ocorrerá um jantar no restaurante Dux, da Universidade Lusíada.

Tenciono estar presente. Porque, mesmo não conhecendo a Senhora Emfermeira, mesmo não havendo beneficiado do seu saber nesse longínquo (e glorioso) Junho de 1960, o facto é que se trata de um agradecimento colectivo a quem  a todos dedicada ao longo da sua existência. Não será, talvez, despiciendo invocar os tempos mais recuados de uma Famalicão menor em tamanho, mas maior em solidariedade; onde todos se conheciam e a vida decorria como numa grande família, a da “Vila”. Que tanto deve à Senhora D. Miquelina Peixoto!

Acabo. Não sem que antes divulgue a caminhada da dia seguinte (29 de Setembro), em prol dos doentes de Alzheimer, iniciativa da respectiva Associação. Aqui podemos ser claros. O passeio derivará entre Sinçães e a Devesa. Do que se trata? Dos nossos Pais, de nós próprios, dos nossos descendentes. De uma doença tremenda. Do presente e do futuro, meus caros amigos!

 

(Da rúbrica De Torna-Viagem, in Cidade Hoje de 06.SET.2018)

 

 

 

"Depois do sol"

João-Afonso Machado, 05.09.18

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Sobre a fuligem da pedra morta ainda medra a vertigem,

voz torta, eco da origem de todos vós.

 

(Que os sei tão sós...)

 

Mas a pedra seca, de madeiros encarquilhados,

da última hora peneira,

como se o sol não queimasse,

granito vão, ditos decorados,

- maldita asneira! -

atabalhoados.

 

 

Sobre a fuligem da pedra morta

nomes grandes discorrem,

entre couves e a origem,

a voz torta que a todos quer impor

(sinto latente a vossa dor)

a solução de uma horta.

 

 

 

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