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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

À la minuta

João-Afonso Machado, 29.08.18

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A pergunta era constante - Avô, como é possível? - e a resposta a mesma, sempre, - A caixinha é mágica... - Enfiava então a cabeça naquele garruço preto, uma mão a ajudar, a outra poisada na caixa, e - Atenção, vai sair o passarinho!

Nesse tempo já tão longe, o povo fazia fila para tirar um retrato. Às vezes famílias inteiras; muito frequentemente, um parzinho amoroso, a derreter-se no olhar, as mãos abandonadas, seguras a dele à dela por um dedo apenas; ou então, sofregamente abraçados, assanhados, como se incapazes de esperarem - vá lá - por chegar a casa. Eram domingos engravados, cheios de ouro a reluzir no colo das mulheres, domingos de muito afã que rendiam bem uma notita de cem paus. Dinheiro gordo, na maré.

O Avô andou sempre em tal vida, mesmo quando precisava já das minhas forças para transportar o "realejo". A caixinha mágica... E foi assim que me ensinou a manejar a varinha de condão. Focar a lente, colocar o negativo, o papel junto, abrir à luz, dar-lhe o banho da revelação... Tudo à velocidade de quem não exaspera o romeiro na sua tarde de romaria.

Conhecem todos os avanços recentes da fotografia. Mas o Avô deixou-me o ofício... E lá calha... Em dias de festa, duas crianças empurradas para cima de um cavalo-baloiço (tive de arranjar algumas destas negaças), as ferozes beijocas dos namorados - a gente embrulha-as num coração com a data escrita e a localidade: Santa Luzia, S. Torcato... - de olhos fechados, mãos como sardaniscas naquelas costas, sem quererem saber do passarinho. Aqui atrasado, no S. Bentinho da Porta Aberta, eram dois marmanjões, a cabeça rapada e a barba de três dias, mas tal como fossem homem e mulher!!! A falarem francês, os sem-vergonha. Só por isso largaram mais dez euros pelo retrato. Ide lá dar beijos pró...

 

 

Eles vão gostar de saber!

João-Afonso Machado, 26.08.18

A hora deles é agora de manhã. Urge sobrevivam, e assim, ainda antes do banho tomado, vamos a passeio, a um pouco de brincadeira e a muita água bebida.

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Mas são duas psicologias dificilmente conciliáveis. D. Mécia, possessiva ao extremo, quase nada quer senão colo e atenção. Abrigada do sol, a sua expressão pede mimo e mais mimo, parece chorar de saudades por mimo.

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O Egas, mais novo, - não sei se mais resistente - mesmo sob o fogo do céu, a língua de fora, olha e manifestamente pede folgança. Não iria muito longe, decerto - não iria porque D. Mécia se encarregaria de lhe tolher passo; e porque o braseiro e a sede não demorariam a quebrar-lhe a vontade, a enfiá-lo de cabeça no bebedouro.

Realidades para eles infelizmente complicadas. Mas, juram-me, estão os políticos para legislar em defesa dos animais, tornando obrigatório os bichinhos estudem as estações do ano. (Agosto vai para o fim...) Bravo!

 

 

 

Património da Humanidade

João-Afonso Machado, 24.08.18

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Nestes dias em que ameaçamos desidratar, morrer estendidos em areais de asfalto - ou em dunas de betão... - vale-nos o bom coração dos amigos. Dos a sério.

À sombra da grande tília da Biblioteca Municipal fui encontrá-lo, a esse camarada de lides antigas, o Aires Mesquita, no atrelado com os seus melões. Em casa da minha Família imperava o calor e a sede, um tormento que as criancinhas mal suportavam já. Com dois daqueles, pensei, - os melhores do mundo - e umas garrafinhas de palhete e branco - também da sua produção - será talvez evitável a catástrofe. E logo parei o carro para a transacção. Um pouco de conversa, há tempos que não nos encontrávamos, a ida pelo vinho ao armazém e, no fim, - leva, tenho muito gosto.

Presenteou-me. Aceitei: na expressão dele isso era a sua vontade. Oferecia-me os melões e o vinho com sincera amizade. Depois de uma tarde inteira a fazê-lo como negócio.

É o que de melhor podemos ter por cá - amigos. Conhecêmo-nos há trinta anos, quando cursamos uma formação para empresários agrícolas que eu nunca fui e o Aires afincadamente é. De tal maneira, pensando a gente no fado e no cante alentejano, é bom se diga e divulgue aquém e além, fronteiras - os melões de casca de carvalho do Aires Mesquita são património da Humanidade. Famalicão está no mapa-mundi e a ele o devemos.

 

 

A fintar a multidão

João-Afonso Machado, 21.08.18

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A subida sossegou-me: o mutismo do elevador é um bom ensaio. Mas, lá em cima, no "cais", a multidão ávida de tudo o que as multidões são ávidas, quase me iniciou na penitência dos arrependidos. Enfim, a minha maleta de couro gasto, com duas camisas e outras tantas cuecas, mais a caneta e o tinteiro, três livritos, logrou perfurar a multidão. E a quietude tornou à tona. Estou cá vai para uma semana, a lavandaria do hotel faz milagres.

O pessoal de serviço, desde o porteiro aos rapazes do restaurante, obra o louvável conjunto de nem um penteado à Cristiano Ronaldo; muito menos à segurança de bar, com o tufo em cima das cabeças rapadas.

Não. Tudo gente de bem e treinada para o calor, não há cá mangas arregaçadas. As ementas não inventam, apresentam o indispensável cabrito, o bacalhau assado, os filetes de pescada e, regularmente, trutas fario, chegadas do rio Homem, ali para Caldelas. Um primor em que não se pode omitir a canjinha também.

Quando regresso? Nem sei, será dificil trazer o meu espírito para baixo, agarrado que ele anda aos cânticos dos repuxos de água. (Têm cá um alvarinho de estalo; então a dar de beber às trutas...) E depois o hotel acastanha-se com a ignorância da multidão, que é garrida e gosta de esplanadas com guarda-sois a publicitar gelados. As tardes são no terraço, espreitando Braga e os bunkers que a cercam. Pobre Braga, já não há canudo que lhe valha!... Na frescura da noite (quando a multidão já debandou, desiludida com o horário das esplanadas), é chegado o momento do passeio. Sem que a religiosidade do local impressione, confesso. O Bom Jesus é essencialmente lazer e repouso. A oração reside no Sameiro ao lado. Que me perdoem a minha eventual heresia, mas é mesmo assim.

De modo que ficarei. A quilómetros e quilómetros de onde realmente estou. E no hotel junto ao elevador. Entre escritas, releituras de Camilo - outro batido do Bom Jesus - canjas, cabritos, trutas e alvarinhos. Capaz mesmo de receber visitas. É claro, jamais uma multidão delas - eu não tenho grande finta, não sou o Ronaldo, e detesto currais.

 

 

Memórias vilacondenses (concl.)

João-Afonso Machado, 18.08.18

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Ólho em frente e não vejo o Carocha do meu Pai. Nem o grande Mercedes do Tio José Júlio. Nem o BMW ou o Imp dos Braga da Costa, o Peugeot 204 dos Pessoa Monteiro, o Volvo Pinto de Lima, o Renault 16 dos Lencastre. Nada vejo - a Bento de Freitas está vazia, repleta de carros estacionados sem história nem sentido.

Também já não lembro os vagares matinais daquelas bandas. Aonde as criadas saindo para as compras? As bicicletas mais espertinas? E as peixeiras, a Júlia e a Olivía? Com a Avó para sempre à espera delas, sentada no canapé da entrada,- Então o que traz você hoje? - Veja a senhora, minha Senhora, veja com os seus ricos olhinhos!

(Lá estava o capatão, o goraz, o robalão. E a ciência da Avó para avaliar as qualidades e os preços, aposto não havia na Praia quem a igualasse: em nossa casa, o negócio do peixe era directamente com a Avó, sem quaisquer intermediários.)

Agora tudo debandou.

O Sr. Mário morreu. A Sra. Ana também. O Bom Doce fechou. O Hotel é um ruína escandalosa. Deixou-nos ainda o Sr. Andrade, republicano e socialista, barbeiro até aos 80 anos, já a tremelicar, a quem eu confiava a minha jugular e lhe pedia me aparasse a barba. No baldio onde as gatas criavam as suas ninhadas, nasceram prédios, sombras e claustrofobias.

A GNR fechou o posto, deixando-nos indefesos perante a peonagem que tomou os passeios e repele as bicicletas neles. Na esquina da Estêvão Soares ainda se brada - Arraial, arraial! Sus! Sus! - ao jeito do heróico do alcaide de Faria. Ou da Feira... Santa Maria!, quão inúteis esforços.

Já não ouvimos o mar, afogado no ruído do trânsito. O próprio areal está de malas aviadas. Acabou o nevoeiro e a ronca da Póvoa, sempre ampliada por aquele ar denso e cinzento.

Nada! Vila do Conde caiu sobre o peso da usurpação.

Será agora, quando muito, uma reminiscência, um culto, até um rito, secreto, iniciático e exotérico. Mas onde descobrir uma salinha livre para o praticar?

Te Deum laudamus.

Finis.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 16.08.18

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Outra de alguém. Quem? O fio da estrada é apressado, o seu gume corta a história, para trás fica o merecimento. Tempos remotos de tão próximos e ignotos. Revolta! Porque o azulejo não é desculpa para o desconhecimento - sofrer, todos sofrem, e a memória é um direito sem excluidos.

 

 

Sofia, o raro momento de um cais

João-Afonso Machado, 13.08.18

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Se te chamasses Sofia (porquê Sofia? Ora, decerto por sentir talvez fosses da arte da sabedoria...), ouvirias essa tarde todos os segundos da ondulação. E nada mais. Entrarias no bote a deitar as mãos às cordas do velame. Foi, Sofia, o teu único ui!, um passageiro contacto com a sua aspereza. Depois, ninguém mais te arrancou uma palavra. A força do vento, como a das águas, encheu o entardecer de energia fisica e de um imenso torpor mental. Reflexos, o poder dos braços e o pairar do espírito. Tal como no cais. 

O cais calara-se entre ordens e contraordens vizinhas e mesmo o ruído de motores. Transformara-se num momento em forma de passadeira de tábuas. Já algo sorumbático, aguardando, Sofia, a sua morte logo que o sol se pusesse. Mas reagindo, de máquina fotográfica em punho e rajadas. A fuzilar a tua fugacidade, Sofia.

 

Dos nautas

João-Afonso Machado, 11.08.18

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No instante mais pacífico da praia, quando as ondas prometem repetir sempre o que não dizem mas marulham, surge o gigante, Em silêncio, a tentar passar despercebido na ondulação. Espíritos memoriais evocam bacalhoeiros. Há-os por ali, mas não é o caso, nem o tempo, de tais epopeias. Simplesmente, um portento qualquer já vai ao largo a distribuir carga no mundo. (Em fato-de-banho, duas pernas imaginam o percurso do mastodonte, saído quase dos seus pés. É inútil para uma visão tão míope dos oceanos.)

O Homem quer o céu desconhecendo os mares. Esta é outra cidade flutuante que se faz ao planeta com a experiência de que há de retornar. Talvez sob os cantos terrenos entoados a tantas Nossas Senhoras.

As águas são profundas. Lá para alé, insondáveis. Partir deve doer sempre. A única novidade é que esta prática não tem novidade alguma. Daqui do areal, por isso, ausência total de adeuses.

(JAM in Canaveral Aveiro)

 

 

Oh Sra. D. Viana?!

João-Afonso Machado, 07.08.18

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A imagem cinzenta de um saque. Longínqua, sem deixar perceber os contornos malévolos do carniceiro. Um pouco de pânico, talvez. Os séculos de alarme são muitos, aqui d' El-Rei velame à vista! E os da terra tremem e as trompas soam ante o cenário. É assim porque Portugal continua a ser. Um alvo do Destino.

Afinal, um veleirozito apenas. Afastando o medo dos vikings e dos normandos. Simplesmente, gente pacífica a passar a foz do rio. Na Viana da Foz do Lima.

Via-mo-lo do restaurante secreto (aliás, um segredo que me foi imposto), a caminho - marítimo-fluvial - da Viana da Foz do Lima. Esse era o sigilo da invasão, carregado de contracções de proposições: Viana-da-Foz-do-Lima. Com todo o vagar de antigamente. Eu jurei a bandeira que o meu Bisavô jurou - a bandeira do falar livre. Por isso lamento a determinação de Sua Magestade a Rainha D. Maria II - Viana do Castelo? Porque a terra lhe foi fiel?

Não há homenagens com diminuitivos. À parte sugestões alternativas, Viana da Foz do Lima, sempre!

 

 

 

Agro-rosária

João-Afonso Machado, 04.08.18

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Meteu-se-lhe na cabeça, havia de ter a maior manada de rosas das redondezas. E de terra, realmente, dispunha, um fértil regadio bruado a buxo. De modo que, num desses dias de mercado, viajou até ao horto, a ver a bicharada à venda. Não as queria pequenas, bolbos, mas já de pinta sonante, engaioladas em vaso, fecundas, prontas a parir.

A escolha foi difícil. Acabou trazendo duas cabeças, digo, dois pés, e lançou-os ao campo, na cerca que lhes estava destinada. Alimentou-os e deu-lhes convenientemente de beber. Viria o tempo da tosquia, da inseminação artificial, talvez... De lhes tirar o leite, conforme uma expresão que frequentemente ouvia.

A coisa parece estar bem encaminhada. As bichinhas vicejam e cheiram sempre bem. Vão longe as pocilgas... Está agora a pensar em diversificar as raças. Brancas e amareladas claras são as que tem em vista. Charolesas.

 

 

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