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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Na torreira dos dias de então"

João-Afonso Machado, 28.06.18

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Estamos em férias! – rejubilavam as maltas por esta altura, ainda em plena era dos calções no tempo do calor. Uns calções parecidos com os que agora usam 99% dos homens que encontramos às quartas-feiras em Famalicão, e antes arregaçavam as calças até aos joelhos para limpar as poças ou pisar as uvas. Enfim, a Humanidade rejuvenesce enquanto a gente se avelha nestas memórias. Mas o verão começara, cada qual se recolhia à sua freguesia – nessa altura todas elas muito periféricas e pintadas de verde e de poeira dos caminhos – e na Vila ficavam apenas os urbanos, uma minoria, afinal. Um estranho silêncio abatia-se sobre os nossos dias.

O milho fora semeado. O bago ainda não pintava, mas a bicicleta era já um direito adquirido. Sobrava-nos espaço. Mas, mais ainda, sobrava-nos calor. E era à volta desta problemática, carregada de padecimentos, que a nossa imaginação laborava. Sonhávamos com barcos, jangadas, navegações heroicas, mas os caixotes da mercearia não eram calafetados e o ambiente aquático disponível não comportava grandes obras de engenharia náutica. Não, construir uma embarcação era bastante mais complicado do que fazer um carrinho de rolamentos.

E aquilo a que pomposamente chamávamos “rios”… eram não mais do que modestíssimos ribeirecos, daqueles que levantam o ralo da pia e esvaziam, a cada estio. Ouvíamos falar no “rio de Pousada” – o Pelhe, feitas as contas – mas ainda não possuíamos passaporte para viajar até lá. Para estas bandas, apenas num determinado ponto o regato alargava, às vezes era represado para as regas, e podíamo-nos vangloriar de água pelo meio da coxa, contando já o lodo em que remexíamos os dedos dos pés. Calções de banho? – a cueca. Ou então, por norma muito mais branquinha, a nádega em toda a sua esfericidade.

Nadar era ainda uma ciência desconhecida. A sessão consistia, pois, em correr esse pedaço mais amplo do “rio” até ao ponto de maior profundidade, para onde, com gritos alvares, mergulhávamos à toa. Tinha esta arte, localmente, um nome – “dar uma fúria”, com certeza o mais apropriado a tanto espalhafato.

É claro, nem todos os pais enquadravam este refresco na boa disciplina da educação. Sobretudo os pais que usavam “correias” nas calças, isto é, uns cintos iguaizinhos aos outros mas com propriedades de cavalo-marinho. E então, detectada a marosca do banho, alertados pela barulheira das “fúrias”, as “correias” saíam das presilhas e era um súbito escaldão às tiras, nas costas, cuecas, nádegas, coxas dos banhistas.

Mas, por vezes, surgiam planos ousados de mergulhos nas profundidades das poças das quintas vizinhas. Algum mais velho alertava, só para assustar, os mais pequenos nem lá tinham pé. O sol, por essa altura, abrasava e castigava os expedicionários através de carreiros sufocantes e campos ressequidos. Com a atávica preocupação de alguma cobra a enroscar-se nas nossas pernas… Finalmente chegados, sobrevinha-nos uma certa prudência a que chamávamos frio. Diga-se em abono da verdade, a água das poças, oriunda de minas, sempre corrente, era gelada em qualquer altura do ano.

E revestia-a um tapete verde de plantas aquáticas onde repousavam e palravam as rãs. Levantado o mesmo, debaixo dele, limpidamente, via-se o lodo dormindo no maior sossego e uma bicharada imensa rabiando lá no fundo. A água afigurava-se-nos cada vez mais fria… E os minutos iam passando, connosco discorrendo em cuecas nos bordos graníticos da poça. Até um qualquer, mais ousado, se resolver a lançar a esse mar, para logo voltar à margem, atabalhoadamente, nadando “à cão”. Não havia como não imitá-lo, e pensar logo no regresso, porque também destas águas os proprietários, por regra, eram bastante ciosos. Não que utilizassem a “correia” – normalmente preferiam cativar as roupagens deixadas nas imediações. E, convenhamos, que humilhação voltar a casa em cuecas e descalços, para muitos com o bónus ainda do silvar da “correia” paternal.

Décadas depois, quando no fim dos estudos ou no início da vida profissional, percebemos que as férias só contabilizavam trinta dias, já a praia era um costume de todos e as piscinas regurgitavam de nadadores, espalhadas por todo o concelho, em nossa casa, até.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 28.JUN.2018)

 

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 27.06.18

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O carro seguia em velocidade demasiada, as pontes tremiam à sua passagem e as localidades fugiam espavoridas à nossa frente, recusando identificar-se. Na verdade, Duncan nem ligara a sirene, e a sua expressão era a de um assaltante de bancos. Incrivelmente, as margens dos rios não tinham pescadores, apenas relva, rogando fosse pisada, servisse a alguém de tarde de meditação.

Com tudo isto, entreolhamo-nos e concluimos em silêncio - ainda não chegáramos ao Céu.

 

 

A exumação

João-Afonso Machado, 24.06.18

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O mochinho, ainda muito de penugem amarela, vivia o seu terror fora do ninho, no jardim junto às escadas. De onde veio e como foi lá parar, é o que ninguém soube explicar. Mas chegou logo uma caixa de sapatos, qual ambulância, e um lugar nos Cuidados Intensivos no terraço, mais pedaços de um hamburguer para o confortar. Não demorou, piava, piava, e, sobretudo, comia. Óptimo sinal! O mochinho transitou então para Observações.

Todavia, ao anoitecer, o seu estado piorou. Metiam dó os seus olhos semicerrados, muito titubeante, já num silêncio agónico. Esfumavam-se fundadamente as esperanças. E o mochinho faleceu durante a madrugada, sendo sepultado ao amanhecer.

Mas surge inopinadamente a ordem telefónica - havia que exumá-lo. De novo se voltou aos secos comentários da enxada contra a terra seca... Sequíssima, ríspida, sem vislumbre de piedade. Imposições do Ministério Público? Não, não subsistiam quaisquer suspeitas de crime. Simplesmente, o mochinho doara o seu corpo à Ciência. Está agora no Museu de História Natural da Faculdade de Ciências do Porto.

 

 

Oscar Wilde enganou-nos

João-Afonso Machado, 22.06.18

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É verdade, ele era o Princípe Feliz. Tinha sido... Não há também que duvidar da sua bondade, nem da riqueza da sua estátua. Mas Oscar Wilde nada percebia de ornitologia. Na minha ideia, baralhou-se com Dickens, muito em busca do drama existencialista e de um final infeliz: acabou matando, sem utilidade, o que nunca é alvo dos caçadores - as andorinhas. Nem dos caçadores, nem mesmo do acaso.

Confundiu-as, decerto, com as gralhas, os estorninhos, as pêgas da sua terra (outras aves inócuas para o tiro). Aves dessa terra que os britânicos gostam cinzenta, para nos verões melhor gozarem as do sul.

A andorinha de Wilde - para bem se perceber - é uma historieta. Um pretexto migratório oferecido à generosidade do Princípe, aliás, um poeta inominado. As andorinhas chegam cá mais depressa do que os apressados ingleses.

Por isso a andorinha do conto não morreu. Voltou ao ninho. Proliferou. Não é passarinho que se toque, nem liberdade que se macule.

São - as andorinhas e os seu ninhos nas beiradas - o máximo cuidado que o meu Avô tinha quando se caiava a fachada da casa. Ou quando os genros se entusiasmavam com a espingarda. O Avô queria-as de volta, protestando zangado contra o pseudo-romantismo de Oscar Wilde e contra os genros também. 

 

 

Do fundo do lago

João-Afonso Machado, 20.06.18

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Vieram escoceses com a incumbência de escavar o lago e torná-lo o desejável mistério, algures entre o convidativo e o assustador. Vieram de kilt e picareta e gaita de foles, vieram do frio carregados de histórias antigas para semear nestas bandas. Isso contou-me o meu Bisavô, um certa noite em que nos avistámos no futuro e conversamos sobre inovações de então. Era necessária a lenda, o drama submerso no breu de águas profundas.

Foi como chegou a temível Barbadão, a todos arranhando o coração, por alguém jamais visto. E uma mão cheia de serpentes, sobretudo depois dos nenúfares e dos jacintos, os tritões trepando as espirogiras para respirarem, logo voltando ao fim dos infernos, e as rãs coaxando nas margens, nas folhas poisadas na água. E os peixes e o silêncio das libelinhas. Mais o fantasma do velho texugo que uma noite se afogou de cansaço, incapaz de saltar cá para fora.

Mas, ainda assim, atravessa-o a força dos remos da miudagem, em botes de borracha, um mais recente toque tropical, amazónico, do grande lago do lodo insondável.

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De resto, o lago rotinou-se neste ciclo, como viver sem um segredo por descobrir, bom ou mau seja ele? As gerações sucedem-se umas às outras e os episódios de antanho, morrendo, levam-nos para o sepulcro consigo. A obstar a tal crueldade, lá está o lago, ou não se desse o caso de a Vida ter emergido da água há milhões e milhões de anos. Talvez tivesse sido de algum antepassado deste, numa primavera pré-câmbrica, logo depois do jardim, cinzento de calhaus e poeira, vermelho da insuportável temperatura onde voava o fogo dos ventos.

 

 

Conhecer o adeus

João-Afonso Machado, 18.06.18

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Essa palavra que nos está na boca toda e vem cá fora pelos mais ínfimos motivos - adeus! - afinal é um voto de bondade: que Deus te acompanhe! Naturalmente (ou nem por isso), guardada sobretudo para os momentos de despedida. Ou do fim, acrescentam os dicionários.

Ando matutando nela. Na quantidade de adeuses, com ou sem letra maiúscula, a despachar a gente ou resignados, lacrimejados.

Adeuses ditos por dizer, adeus que valem um "até já", adeuses a quem parte realmente para Deus... O termo tem peso e envergadura, traduz alívio, expressa tristeza, é todo ele de uma bipolaridade tremenda.

Escrevo-o a medo. Mas, neste momento, crendo-sinceramente-num-certo-adeus-que-deixou-saudade-e-eu-pressinto-derradeiro. Um daqueles adeuses de braço erguido, a mão acenando, acenando, e o comboio a sumir na curva, deslizando como as cobras entre as pedras.

(Vendo melhor, as cobras andam por aí, a gente se voltar ao sítio onde as topou faz-lhes uma surpresa e ainda as apanha - lembras-te? Já com os comboios, tantos são eles, os adeuses são muito definitivos, como uma multidão, uma praça repleta e simultaneamente ninguém. Sim, eu elegeria o comboio o logotipo do Adeus.)

 

 

Apanhados (XV)

João-Afonso Machado, 17.06.18

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Encontro improvável: em pleno Minho, enchendo-o até aos limites da provincia, um Chevrolet Bel Air. Mais americano do que nunca, nas cores, no rolar do motor, nos rabos de peixe da traseira ainda emergindo do Douro.

E, lá dentro, quatro ou cinco cilindros de alimento e um tonel sempre ávido de gasolina. Nos States, a coisa não se faz por menos.

Aqui faz-se. As ruas são estreitas, o combustível está caríssimo, não é costume embandeirar os carros. Um Chevrolet com duas garridas bandeirolas sobre os farois, ou fugiu de Cuba ou nele viaja incógnito o Presidente Marcelo...

Seja como for, grande e alegre surpresa, um pedaço de exotismo transatlântico a visitar-nos e a contar qualquer coisinha do estranho mundo de lá.

 

 

"O Ignacio que renasce"

João-Afonso Machado, 14.06.18

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Nos Anos 60 do século transacto, a catequese em S. Tiago da Cruz era uma instituição. Capitaneava-a um grupo de senhoras da terra que buscavam em Braga contingentes, mais ou menos empenhados, de jesuítas noviços, a ajudar à festa. Todos de batina e cabeção ainda… Quem, na freguesia, não se lembra do moçambicano Irmão (hoje Padre) Ezequiel? Ignoro ao certo porquê, a catequese dava-se melhor com o frio do inverno do que com um clima mais aliviado, e era a manhã toda de domingo, depois da missa das nove e meia. Lá comparecia a miudagem oriunda dos quatro cantos de S. Tiago da Cruz, sem hipótese de dispensa, praticando ainda o uso da roupinha de ir ver o Senhor, o manual exegético e uma sebenta para apontamentos debaixo dos braços, estes muito coladinhos ao corpo para que a papelada não caísse, e as mãos a refugiarem-se nos bolsos das calças daquelas terríveis temperaturas matinais. Em boa verdade vos digo: o início dos domingos, essa época, não eram particularmente divertidos.

Mas tanta conversa para quê? Apenas porque entre tanta criançada, tantas existências depois dispersas pelo planeta, em busca de dias melhores, uma se destacava, a Paula, também ela chamada, mais tarde, ao cumprimento do dever moral de catequizar.

Catequizou na medida que entendeu a razoável e deixou S. Tiago da Cruz. Haverá aqui uma lacuna de quase trinta anos, sobre a qual omito palpites. Reencontrei-a um dia no Facebook. Era a Sra. Peliteiro. Tinha então um pequeno estabelecimento – uma pastelaria – em Fão. Não muito depois, um restaurante na Quinta da Barca, em Esposende. Eis, então, encontro ocasionalmente em Famalicão o seu Pai, o Sr. Amadeu Peliteiro, e o amável convite surge pronto – que comparecesse (no passado dia 6) em Braga para a inauguração do Ignacio, agora debaixo da batuta da Paula.

Do Ignacio? O santuário bracarense do bacalhau? A catedral gastronómica da cidade dos Arcebispos?

Esse mesmo. Parece que o culto atravessara momentos difíceis, de descrença, e a Sra. Peliteiro entrou em negociações, ficando com o restaurante. A reabrir muito em breve.

Evidentemente, fui. Agradecido, curioso e orgulhoso. Ainda por cima, o Campo das Hortas é de acesso facílimo, estaciona-se bem, e eu queria saber daquele velho prédio granítico de esquina, que uma minha conterrânea acabara de conquistar de faca e garfo em riste, a impor a marca da gente de cá na sede do distrito. Assim fui espreitando e tomando notas de memória.

Do antigo, a arquitectura mais característica fora preservada. A novidade estava em outra luz, outra cor que parecia movimentar-se com outra alegria. A ideia é a da cozinha tradicional minhota, com o toque pessoal da Sra. Peliteiro. Explorando subtis diferenças como, por exemplo, as que opõem as papas de sarrabulho bracarenses às famalicenses. E, servidas as ditas papas, todos percebemos muito melhor esse apuro, senão à primeira, à segunda ou à terceira tentativa…

Mas – frisando sempre a excelência do lanche servido – sensibilizou-me particularmente o momento em que a Paula subiu uns degraus da escada de acesso ao andar superior e, rodeada do seu staff, anunciou o renascido Ignacio. Explicou os seus objectivos, agradeceu a quem lhe era merecedor de agradecimentos, cumprimentou o Presidente da Câmara de Braga, os demais presentes. Sempre sorridente, com a maior simplicidade, com graça, à-vontade e muita afabilidade. A cativar ali, fatalmente, o carinho da assistência. Por isso lhe prometi uma visita para breve, com amigos de fora, de longe. Ainda El-Rei de Portugal jantará um dia no Ignacio!

Muitos parabéns, as maiores felicidades a este empreendimento da Sra. Peliteiro!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 14.JUN.2018)

 

 

 

 

Santo António comissário celestial

João-Afonso Machado, 12.06.18

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Segundo a Hagiologia, o grande responsável, o Santo em toda a sua santidade, foi Santo António. Era português e dos influentes junto do Senhor. Mais ninguém conseguiria convencer S. João e S. Pedro a, todos juntos, patrocinarem estes nossos festejos em honra da sardinha. Está por apurar qual deles impôs o manjerico como desodorizante, nessas madrugadas tremendas de fumo e suor.

As comemorações são antigas, vêm de não sei quando. Há sempre quem goste de as apreciar da varanda, o papo já bem assardinhado e um copo de tinto na mão, regaladamente.

Falta, no entanto, a outra mão - aquela que se dá a alguém, não aconteça perderem-se na multidão, essa mão que parece proteger os ouvidos apaixonados, isolando-os do cagarim em redor, uma mão que nem a gordura da sardinha, apertada contra o naco de broa, impede de uma festa na cara, na camisola, no cabelo; e que aponta a dança no bailarico, e às vezes faz risinhos e é marota.

Será talvez a mão do Santo. Se é, então ele um dia emprestou-ma para agarrar tantas memórias boas, jamais esquecidas.

 

 

Em Braga, cá entre nós

João-Afonso Machado, 07.06.18

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E Nossa Senhora de Fátima disse sim. Explica a montra, era uma dívida. Ah! bracarenses! Também ninguém se doutorou em S. João ou em S. Cristóvão. Ou noutro da vasta hagiologia. Simplesmente, deram o mal por consumado. Por trás, o Galo de Barcelos cocoricava - ele há de pagar, senão cantarei na hora da forca. Rezavam figuras menores, talvez os pastorinhos. Não creio, o galo desta feita acertasse o alvo... As gentes corrriam a rua, indiferentes perante a montra. Mas, afinal, que Arcebispado é este?

Tocam os sinos, no cimo da igreja» - Augusto Gil....)

Não sei em que tudo ficou. Apenas percebi, um cidadão, enraivecido, bradou - Queres fiado? Toma! -  E virou porcelana nesse gesticular. Eu acho, apenas a Senhora permaneceu, orando, a acreditar na bondade dos homens.

Há muitas gerações Portugal é isto. Dado o peso da tradição, o melhor é nem mudar. Perdiamos a graça e - não me levem como herege - a Graça de Nossa Senhora.

 

 

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