"Na torreira dos dias de então"
Estamos em férias! – rejubilavam as maltas por esta altura, ainda em plena era dos calções no tempo do calor. Uns calções parecidos com os que agora usam 99% dos homens que encontramos às quartas-feiras em Famalicão, e antes arregaçavam as calças até aos joelhos para limpar as poças ou pisar as uvas. Enfim, a Humanidade rejuvenesce enquanto a gente se avelha nestas memórias. Mas o verão começara, cada qual se recolhia à sua freguesia – nessa altura todas elas muito periféricas e pintadas de verde e de poeira dos caminhos – e na Vila ficavam apenas os urbanos, uma minoria, afinal. Um estranho silêncio abatia-se sobre os nossos dias.
O milho fora semeado. O bago ainda não pintava, mas a bicicleta era já um direito adquirido. Sobrava-nos espaço. Mas, mais ainda, sobrava-nos calor. E era à volta desta problemática, carregada de padecimentos, que a nossa imaginação laborava. Sonhávamos com barcos, jangadas, navegações heroicas, mas os caixotes da mercearia não eram calafetados e o ambiente aquático disponível não comportava grandes obras de engenharia náutica. Não, construir uma embarcação era bastante mais complicado do que fazer um carrinho de rolamentos.
E aquilo a que pomposamente chamávamos “rios”… eram não mais do que modestíssimos ribeirecos, daqueles que levantam o ralo da pia e esvaziam, a cada estio. Ouvíamos falar no “rio de Pousada” – o Pelhe, feitas as contas – mas ainda não possuíamos passaporte para viajar até lá. Para estas bandas, apenas num determinado ponto o regato alargava, às vezes era represado para as regas, e podíamo-nos vangloriar de água pelo meio da coxa, contando já o lodo em que remexíamos os dedos dos pés. Calções de banho? – a cueca. Ou então, por norma muito mais branquinha, a nádega em toda a sua esfericidade.
Nadar era ainda uma ciência desconhecida. A sessão consistia, pois, em correr esse pedaço mais amplo do “rio” até ao ponto de maior profundidade, para onde, com gritos alvares, mergulhávamos à toa. Tinha esta arte, localmente, um nome – “dar uma fúria”, com certeza o mais apropriado a tanto espalhafato.
É claro, nem todos os pais enquadravam este refresco na boa disciplina da educação. Sobretudo os pais que usavam “correias” nas calças, isto é, uns cintos iguaizinhos aos outros mas com propriedades de cavalo-marinho. E então, detectada a marosca do banho, alertados pela barulheira das “fúrias”, as “correias” saíam das presilhas e era um súbito escaldão às tiras, nas costas, cuecas, nádegas, coxas dos banhistas.
Mas, por vezes, surgiam planos ousados de mergulhos nas profundidades das poças das quintas vizinhas. Algum mais velho alertava, só para assustar, os mais pequenos nem lá tinham pé. O sol, por essa altura, abrasava e castigava os expedicionários através de carreiros sufocantes e campos ressequidos. Com a atávica preocupação de alguma cobra a enroscar-se nas nossas pernas… Finalmente chegados, sobrevinha-nos uma certa prudência a que chamávamos frio. Diga-se em abono da verdade, a água das poças, oriunda de minas, sempre corrente, era gelada em qualquer altura do ano.
E revestia-a um tapete verde de plantas aquáticas onde repousavam e palravam as rãs. Levantado o mesmo, debaixo dele, limpidamente, via-se o lodo dormindo no maior sossego e uma bicharada imensa rabiando lá no fundo. A água afigurava-se-nos cada vez mais fria… E os minutos iam passando, connosco discorrendo em cuecas nos bordos graníticos da poça. Até um qualquer, mais ousado, se resolver a lançar a esse mar, para logo voltar à margem, atabalhoadamente, nadando “à cão”. Não havia como não imitá-lo, e pensar logo no regresso, porque também destas águas os proprietários, por regra, eram bastante ciosos. Não que utilizassem a “correia” – normalmente preferiam cativar as roupagens deixadas nas imediações. E, convenhamos, que humilhação voltar a casa em cuecas e descalços, para muitos com o bónus ainda do silvar da “correia” paternal.
Décadas depois, quando no fim dos estudos ou no início da vida profissional, percebemos que as férias só contabilizavam trinta dias, já a praia era um costume de todos e as piscinas regurgitavam de nadadores, espalhadas por todo o concelho, em nossa casa, até.
(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 28.JUN.2018)