"Revivalismo"
Com muita ansiedade, aguardávamos o percurso final da feira, depois da maçada das hortaliças e das flores e da inacreditabilidade dos móveis e das roupas. Com pena, miúdos ainda, despediamos-nos das galinheiras, no fim de infrutíferas tentativas para comprar um patinho ou mais um coelho. Mas agora estávamos no limiar das bugigangas e dos barros de Barcelos. Tudo coisas de encher o olho, expostas em montras improvisadas sob um coberto de lona, cheias de cor e prateados e dourados.
Onde quer que as mulheres apresentassem as suas cerâmicas, reinava lá o galo, em tamanhos diversos, conquanto não na variedade com que se intrometem com ele agora, inclusive nos seus momentos mais íntimos com as galinhas barcelenses. Não, nessa época o galo ocultava as suas galações e tinha apenas uma vestimenta, aquela mesma do galo de Lisboa e do galo de Faro ou de qualquer outra loja de souvenirs, transformado em saca-rolhas made in China. E, acolitando-o, a banda de música toda, fardada em uníssono, só homens de bigodes de pontas retorcidas e olhar arregalado, tocando cada um o seu instrumento. Mais os mealheiros, uma escolha inteira entre o gado suíno e o ovino, o primeiro entusiasmo de umas moedas pela ranhura abaixo, mais adiante a impaciência de o contar e, finalmente, um pretexto, disfarçado de distracção, o animal no chão, em cacos, e o capital depositado reinvestido em chocolates.
Menos toscas, mais lisas, cobertas de uma camada qualquer de não sei que verniz, algumas espécies selvagens ou, pelo menos, quase assustadoras: um dálmata em tamanho natural, por exemplo; ou os elefantes de tromba erguida, bramindo desde os fornos de Barcelos, como dois que ainda mantenho.
O melhor estava para vir: as tendinhas de canivetes, bonés, cintos, porta-moedas ou carteiras, isqueiros, esferográficas, espelhinhos com jogos no verso, chaveiros, harmónicas, eu sei lá que mais. Aí comprei o meu primeiro cinto à cáboi, em napa pura, um fivelão com duas pistolas cruzadas. A lembrar vagamente os dos primos em Lisboa, do antigo correame dos bombeiros, geralmente oriundos da Feira da Ladra.
Era impossível não passar ali sem descobrir algo que necessariamente nos fazia falta. Tutelados por adultos, nunca poderíamos aspirar àquelas canetas com uma bolha de ar em que uma menina ora surgia em maiô ora já despidinha, no banho. Mas as navalhinhas com o toureiro em pose, um isqueiro dito Ronson de pedreiro (não para acender cigarros, somente para alguma emergência – para ter…), desses isqueiros com um depósito cheio de algodão onde se escapulia a gasolina e um pavio imenso, uma labareda monumental debaixo de uma fumarada negra, quase uma fábrica a arder…
Por regra saíamos dessa zona de tentação e pecado um bocado aos safanões para a frente. Passávamos ao lado das vendedeiras de bolos e pastéis sem transes, porque já nessa altura concluíramos uma vareja não era propriamente uma uva passa. Os derradeiros casinhotos, junto às grades do mercado, em madeira, eram os dos ourives. Desses intrépidos feirantes que vendiam o seu metal precioso de terra em terra. Então na maré em que os emigrantes vinham de vacances aquilo era mel à porta do formigueiro.
Cordões, pulseiras, medalhinhas com santinhos, uma hagiografia inteira deles, cruzes e até relógios. Plaquinhas com os signos do horóscopo é que ainda não… Mas nada disto seria já possível nos nossos dias, sem pistolas, forças especiais anti-motim, sangue e prenúncios de guerra civil em cada feira.
De tudo ficam memórias. E um ou outro objecto nas antiqualhas das Festas de Maio. Um cinzeiro com uma bailarina no bordo, um tamborzito, um livro do Vilhena, vá lá.
(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 17.MAI.2018)