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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Entre velhos amigos"

João-Afonso Machado, 03.05.18

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Foi um almoço marcado de véspera, um encontro de anciãos, digamos assim. E o abraço que recebi à conta de tanto desgosto recente. De todo o modo, falo de gente que já se conhece desde que os seus bisavós se conheceram e firmaram amizade; e de um companheirismo robustecido em muitas épocas de caça em que ninguém, creio, terá fugido às sempre convenientes regras de honra e fidelidade. Coisas raras, fenómenos a guardar no cofre das nossas vidas, aquele onde se fecham a sete chaves os tesouros perpétuos da existência, como a sabemos levar.

Se vier ao caso lembrar, enquanto caçadores, o primeiro episódio marcante, remontaria uma dúzia de anos atrás, quando o Alentejo começou a ser a tentação do pecado venatório. Já não recordo quem descobriu o filão da Salvada, perto de Beja, - mais precisamente, a terra de Catarina Eufémia - mas vejo-me claramente a descer a colina, o Guadiana ao fundo, uma codorniz a levantar voo e a aterrar logo de seguida, obrigada pelo chumbo, uma perdiz adiante com idêntica sorte, e não muito longe, as ruinas caladas de um monte. Ignoro a quem pertenceria depois do terramoto provocado pela sua ocupação por uma cooperativa, nos gloriosos tempos da Reforma Agrária. Ali jazia, somente paredes, sem sequer o soalho que nos permitisse satisfazer a nossa curiosidade.

Três anos volvidos, o Miguel, um desses dois amigos que veio cá almoçar e dar-me um abraço, era já o seu proprietário. A ruina ainda não fora atacada – hoje é um “turismo rural” esplendoroso, a Herdade do Vau – mas as vinhas muito alinhadas, ainda um pouco imberbes, iam deitando as suas folhitas e uma ou outra perdiz cá para fora.

De então para hoje o vinho criou-se marca – o Riso – sai branco e sai tinto, escorrega muito bem na garganta e Famalicão necessitava conhecê-lo. Mais a mais, o seu enólogo é “apenas” o responsável por um dos melhores rótulos portugueses. Também ele compareceuao almoço, realçando sempre a sua faceta que mais me encanta - a sua simplicidade, quase diria, o seu silêncio sobre si próprio. Inimitável Luís!

Banqueteamo-nos no já famoso Porta-Enxerto. Tinha de ser…

E comeu-se muito agradavelmente, os sempre variados pratos do dia, preparados com muita qualidade e camaradagem com os vinhos. Do mesmo modo se conversou até às tantas. Famalicão ainda pertence a esse peculiar lado do mundo em que as campainhas não se divertem a entontecer-nos a cabeça. O Sr. Hermenegildo Campos (outro conspirador da bandeira azul e branca e o patrão da wine house) recebeu umas garrafas dessa boa pinga alentejana e retribuiu com outras, nativas daqui do Baixo Ave.

Eu gosto disto. Assim que tornei à minha terra – mediante, aliás, a compreensão dos meus amigos, pois sendo famalicense, como não reabraçar Famalicão? – assim que regressei, dizia, os apelos vão somente no sentido de não esquecer a “irmandade”. A qual vem cá, mais talvez do que eu vá lá. E depois há um misto folgazão de idade e futuro a puxar-nos para a frente, quem não tem ideias nem planos estagna, esverdeia, torna-se impotável e seca os achigãs. Desses que povoam o Guadiana e as charcas vizinhas.

A alguns meses da próxima época de caça, os planos vão crescendo ainda em vasos. Chegará a altura do transplante. Entretanto subsiste esta massa ternurenta da minha terra e dos meus amigos, comigo a querer congregar uns e outros, em nome de todos. A propósito, gizei um esquema venatório cá para estes lados que, a resultar, será sempre um agradável sábadozinho matinal. Oxalá, tema para uma próxima crónica.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 03.MAI.2018)