No meado dos Anos 60 do século passado, o velho Carocha já fora muitas vezes a Lisboa, mas continuava o seu serviço diário aqui na terra, onde não havia quem não o conhecesse. Estacionava-se com facilidade na Rua de Santo António, e C. Lopes, Lda., A. de Sousa Lopes, Lopes & Costa eram os alvos mais atingidos. Para não falar naquele armazém fundo e escuro, ao lado da Casa Freitas, a que se ia por sacos de adubo. Vão lá muitos anos, mas já então a Vila conhecia o condutor do Carocha pelo seu bigode e cabelo assaz agrisalhados. Não obstante, pôr às costas 50 quilos de um produto ensacado qualquer nem lhe ficava mal, nem mal algum lhe fazia. Com o seu Português Suave sem filtro na boca. Era um homem simples e fisicamente bem constituído.
Depois foram as levas dos muitos filhos aos estudos – com passagem pelo Ninho, depois pela telescola, liceu, INA… Já então o velho Carocha podia mal consigo mesmo. Os Anos 70 assistiam à passagem dos Toyotas, Dyane, e outras modernidades mais – isto para ficar pelas máquinas da gente remediada – e o velho Carocha dera-lhe a ferrugem e uma chinfrineira enorme de chapa menos polida. O liceu assistia à sua chegada e partida com um sorriso de troça e uma ou outra boca a condizer.
- Pai, mostre como o nosso carro ainda anda!...
E o Carocha fez uma arrancada fulgurante, a disparar areia para trás, os pneus a cavar a pedra da rua, e desapareceu na curva quase em três rodas.
- Que tal? – perguntou o Pai depois?
Mas o liceu nem reparara… Uma gargalhada serviu para perceber que o seu mundo era outro, dotado de outras riquezas e sonhos. O sonho de uma lavoura próspera e modelar, por exemplo. Assim foi sempre o meu Pai.
Em boa verdade, passámos parte substancial da vida em desacordo e discussão. Quase diria, apenas nunca nos questionámos sobre o respeito devido à Igreja Católica e à Coroa d’El-Rei. Bom, na verdade nunca nos indispusemos os dois por causa da política ou do futebol. Contrapunha-nos, essencialmente, divergentíssimas visões do futuro.
Assim, sobretudo, desde que findei os meus estudos universitários. O cabelo e o bigode do Pai tinham-se tornado de um alvura sem par, a Vila respondia-lhe devidamente à dedicação que ele demonstrava por ela, e eu próprio começava já a não esconder uns fiapos de barba branca… Não tardou, as vindas do Pai a Famalicão, todos os dias, visassem somente a compra do jornal e de um macito de cigarros para depois do café.
Quando o Pai, há cinco anos, partiu o fémur e deixou de guiar não faltou quem me perguntasse pelos motivos da sua ausência e, não raro, desenrolávamos a invocar memórias até ao velho Carocha, ingloriosamente caído em combate, em 1975, – num estúpido acidente em Vila do Conde.
O Pai não gostava de ver sangue. Mas um dia, no Verão de 2010, entrando no carro depois de comprar o jornal, foi abalroado por um louco desencartado qualquer, e esmagado contra o betão do pilar de um atravessadouro. O Pai tinha 85 anos e os bombeiros demoraram 45 minutos a desencarcerá-lo. Não desmaiou e manteve sempre uma conversa certinha com os operacionais. À hora do almoço, sentou-se à mesa como se nada tivesse acontecido.
Entre os seus sonhos, o da criação de uma grande cooperativa agrícola e a união dos lavradores minhotos em prol da defesa dos interesses comuns. Eu suponho o sonho não tenha ido muito longe. Mas, ainda agora, andando a fazer um estudo sobre a lavoura de Fradelos, porta a que batesse solicitando dados, era porta escancarada ao saber o anfitrião de quem eu era filho. - A palavra do seu Pai vale uma escritura! - ouvi de muitos. Todavia, esse estudo, que eu tanto gostava o Pai lesse, não chegará a tempo. O Boletim Municipal atrasou-se e a doença do Pai não – veio e levou-o há uma semana.
Somos muito diferentes. As nossas vidas estarão sempre nos antípodas uma da outra. Mas a verdade é que a saudade está cá, e uma tremenda sensação de vazio também. Creio que são momentos necessários para que bem avaliemos o mérito e a falta dos que partem.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 19.ABR.2018)