"Cá também há sável"
Eu compreendo muito bem o sável. Estou a vê-lo subir o Douro, os pescadores de uma margem e outra a fisga-lo, mas antes esse curso do que outras sujidades. Imaginem o sável, por exemplo, a tentar o Ave. De faróis de nevoeiro rio acima, as águas negras, e aí por alturas de Lousado a curvar à esquerda, no Pelhe, um caminho escalavrado, porco, cheio de buracos tapados por entulho, onde é que ele conseguiria chegar de barco a Famalicão? Com as margens bordejadas de pneus e plásticos, como nas bouças mal afamadas? O sável gosta de auto-estradas. E as populações ribeirinhas do Grande Porto gostam do sável. Canibalescamente. Por isso a sua chegada em Fevereiro é uma festa em Valongo, Gondomar, Gaia e por aí afora.
Nesta época, os restaurantes anunciam, em letras gordas, a fritadura do sável. Para mim, foram três décadas de abastança. Com os meus filhos, mais dados ao bife, mas não dispensando o parlapier do Sr. Manuel, o funcionário de um certo restaurante que frequentávamos, valonguense nato de resposta pronta e tão bem frita como o famoso clupeídio.
(Lembro aquela voz roufenha, dona das piadas, o bigode inconfundível e o seu sempre – Ora diga lá, jovem, o que vai ser hoje?! – Por onde andará ele, reformado há meia dúzia de anos?)
Também me banqueteei com o sável fumado, em inolvidáveis incursões em Arnelas (Gaia). Fumado, logo seco e salgado, a pedir encarecidamente mais branco fresquinho. Era só uma vez por temporada – uma vez líquida, torrencial, de onde o grupo de amigos – portuenses, trofenses e famalicenses – saíam a arejar para o Douro. Ondulavam canoas umas atrás das outras, em competição, e nós, sem pressa, ali ficávamos à espera da última, que já tinha chegado, e a juntar forças para a travessia da ponte sem afrontas policiais.
Tudo isto é o passado. Tão longínquo que eu diria já o sável uma espécie extinta, não fora a notícia recente – há sável em Famalicão!!!
Anuncia-o o amigo, Sr. José Carlos Azevedo. Explicando melhor: um antigo funcionário da casa C. Lopes & Cª, Lda., na Rua de Santo António, onde o meu Pai se abastecia de produtos agrícolas. Vão lá uns tantos decénios. Reencontrámo-nos agora no âmbito de pesquisas que vou fazendo em Requião, em que prepondera o seu restaurante D. José.
Logo para reatar amizades, a ementa incluía javali. O Sr. Azevedo foi como se me acertasse com zagalotes… E depois o sável… Com gente desta cepa, não há argumentos contra. Mais a mais, a flâmula azul e branca (dos vencidos eternamente vencedores) também se hasteia por ali…
O restaurante D. José nasceu em 1993. Já foi visitado por Sua Ex.cia Rev.ma o Arcebispo D. Jorge Ortiga. Esta minha insignificância também por lá se passeia. A semana transacta para o sável de escabeche; a próxima para o frito. Com grande desilusão, nesta altura do ano, se, à míngua do pitéu, tiver de optar pela especialidade da casa, o bacalhau…
Mas não, creio que o sável não deixará de comparecer ao encontro. Trocando, é claro, o acidentado percurso Ave/Pelhe pela comodidade da fragonete.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 09.MAR.2018)