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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A questão é de fé, discutivel não é

João-Afonso Machado, 30.03.18

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A procissão logo à noite será carregada de silêncio. Nas ruas o mesmo, por muita que seja a preocupação das mães com as asinhas dos seus anjinhos. Agora mesmo são três da tarde e o som lamuriento das sirenes dos bombeiros ouviu-se longamente, a furar a cortina de chuva caindo, o breu do céu. Digam lá o que disserem, hoje é um dia lutuoso.

E solene, diferente dos outros. Por cá é assim, e, por assim ser, mais me convenço de que Cristo subiu realmente o Calvário com uma cruz às costas, na qual foi depois pregado. Competirá, entretanto, ao mundo demonstrar que valeu a pena...

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 28.03.18

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Do lado de lá do granito esconde-se um segredo. De resto, é esse o sentido dos magmas, que não há erosão capaz de os levar, apenas de lhes cavar sulcos e formas enigmáticas. Sigilosas. E, se vagamente humanas, vem pela certa a caminho mais uma "moira encantada". É sempre assim.

 

 

 

Uma novela desconhecida de Camilo

João-Afonso Machado, 25.03.18

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Estacou no vento, pregado entre duas ameias, a cartola enfiada quase na nuca. E ficou assim minutos intermináveis de silêncio de palavras. O génio não é de comentar, muito menos censurável. Depois Camilo fez, enfim, meia volta, como um militar em solenes exéquias, e jurou Jacques de Molay vivo, ele e os outros cavaleiros templários que conseguiram iludir Filipe o Belo e alcançar refúgio nos castelos da Terra Fria transmontana.

Era uma novidade. Seria a realidade. Foi Camilo, dissertando.

A minha mão ainda lhe segurou o cotovelo, temerosa de que tudo acabasse ali. Camilo repeliu o amparo, como se a pena já riscasse o papel.

- E assim, para todo o sempre, os abnegados homens do Templo escaparam às fogueiras da cobiça, juntando as forças estafadas no calor da nossa Ordem do Hospital. Mas não convinha fosse público onde se refugiara o Mestre e os seus próximos. Os confins da Europa eram os limites do Mundo. Ora, na falta de limites deste, quem escapa à morte morre jamais.

Estávamos em Algoso. Demasiadamente alto para o atormentar com Templários, cavaleiros de Cristo e Hospitalários. Fiquei-me por El-Rei D. Dinis.

- Pois, não eram estes tempos em que a humidade nos tolhe os braços e os franceses deixaram a sua prudência ao lume das suas fogueiras e das dos seus condenados...

Camilo farejava em todo o espaço aquela momentânea liberdade no cimo de Algoso. Já não via, mas sabia-os, os castelos vizinhos. O vento assobiou com mais estridência como se fosse uma ordem. Profetizou muio ouro e outros minérios preciosos escondidos nas margens do Angueira. A descida seria morosa, arriscada, a ponta da bengala ia à frente como uma escolta. Aceitou o meu amparo do seu braço, e simplesmente deixou fugir:

- Estes meus olhos, já frios, amortalhados no hábito dos franciscanos...

O regresso foi a vida toda de Molay e dos outros cavaleiros do Templo em Algoso. Páginas e páginas de novela galopando entre o Mogadouro e Vimioso. Camilo escrevia com a sua voz cava, escrevia em almaço de memória, a bengala sempre espadachim com o chão, não fosse dar-se o impossível, algum erro de grafia.

 

 

 

"Anda cá o sarampo"

João-Afonso Machado, 22.03.18

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É sempre difícil comparar o Passado e o Presente. Dir-se-ia que falta um pesito – o Futuro – para que os pratos da balança se mexam e a gente veja qual desce, carregado de riqueza. Riqueza cientifica, moral, artística, entenda-se. Mas esse pequeno peso parece lá, constantemente, tanto quanto parece ainda faltar coloca-lo. O que acontece, claro, é que as massas gulosas do tempo (quase instantânea uma, a outra pesada, sempre engordando) absorvem avidamente o pobre Futuro, lambuzam-se com ele e chutam-lhe os ossos para a História.

Isto tudo a propósito de um surto de sarampo no Hospital de Santo António (Porto), com direito a enormes parangonas nos jornais. Como se viesse aí qualquer peste medieva. Ora, todos nós tivemos sarampo e os periódicos da nossa meninice omitiram ao público, vergonhosamente, essa novidade. Tivemos (vou ver se não esqueço algum) sarampo, escarlatina, rubéola, varicela e papeira (aqui para estas bandas o trasorelho). Por norma, os invernos eram as épocas mais propícias a estes achaques. Mas, recordo na perfeição, apanhei sarampo e rubéola em simultâneo, ia Agosto a meio, em Vila do Conde. Eu e os meus irmãos todos. Corridos aqueles dias iniciais de febre e mal-estar, sucedia-lhes a quarentena. Isto é, a praia em absoluto isolamento, o que então nem era complicado, dado o deserto existente entre Vila do Conde e as Caxinas, muito, muito lá no fundo. Ofereceu-se ainda uma amiga mais velha, já adolescente, para tomar conta de nós. Queria à viva força apanhar a rubéola e ver-se livre desse empecilho (estas doenças são curiosas, nunca se repetem na mesma pessoa) que era considerado do maior risco para as senhoras de esperanças – hoje, grávidas – e para os seus bebés, sob o risco de nascerem cegos surdos e mudos.

Mas a rubéola não lhe fez a vontade e o destino também não – nunca casou.

Fora tal, pouco mais. A varicela proporcionava-nos o entretém de apertar as bolhinhas que se formavam pelo corpo todo e de levantar depois as casquinhas das feridas resultantes. O trasorelho era realmente incomodativo, mas célere nos inchaços e febrões. E tudo findava com esplêndidos períodos de quarentena em que só não se podia ir às aulas para não propagar o mal aos colegas. O bónus eram umas férias maiores do que as do Natal ou da Páscoa.

Não desconheço os números elevados da mortalidade infantil quando fui criança. Assisti até a casos compungentes de desconhecimento dos pais e leviandade dos médicos. Era os grandes males, esses. Não havia pediatras quase; e os pais ignoravam que convinha muito levar os miúdos ao pediatra, caso tivessem a sorte de topar algum disponível. Ao que acresce a ignorância em geral, a falta de higiene, a rudeza do quotidiano, as sopas de cavalo cansado

Mas com o sarampo, rubéola & Cª, isso todos podiam bem Eram doenças que faziam parte da família, mais supositório, menos termómetro – para «tirar o febre».

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 22.MAR.2018)

 

 

Preparativos - V - E agora?

João-Afonso Machado, 21.03.18

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Descendo, descendo o mapa, descendo sempre, alcancei o lugar prometido. Não o descreverei, é impossivel tal o que me vai na alma. Mas há um morro, o casario escorrendo por ele abaixo, um rio tresandando a peixe e uma planície alagadiça. Um mundo de aves pernaltas - cegonhas, garças, tarambolas, alfaiates - voando no ciclone de entusiasmo em que esta caneta rodopia de olhos no horizonte. (Os cães, de patas no murete, igualmente maravilhados. Fluem planos - umas botas de borracha novas, o suor de um caminheiro, a feijoada no termo da caminhada. Dionisio e Deus-Pai e o pedaço de descanso que Ele nos reserva para os anos derradeiros)

É um oásis mourisco em mundo luso. Mas estão lá outras famílias cristãs e o culto mariano é admitido e respeitado. Ali teria de ser assim, porque «símbolos aquáticos, símbolos cristãos, a história do Evangelho continua ao ritmo das ondas. E teve na Mãe de Jesus - água recriada donde pelo espírito brotou o mundo novo - outra simbolização maior, tantas vezes marinha» (D. Manuel Clemente, in Portugal e os Portugueses).

De modo que dei de caras com o Eden. É na nossa terra, afinal. E comecei - não esquecendo a samarra, nesta época do ano - a procurar as folhas de figueira a pendurar nos adequados sítios biblicos.

Enquanto isso, o espírito entrou a atazanar-me. Então vai ser aqui a transformação das economias de uma vida de trabalho na casinha sonhada? Mesmo que de janelas abertas para as aves pernaltas?

E duvidei, perdi subitamente a fé. Resolvi retroceder a Lisboa e explorar a Brandoa, o Bairro da Serafina. Pode por lá haver, sem especial disturbio financeiro, algum barraco com pátio, um coberto de chapa ondulada. Em tijolo vivo para eu me dedicar à bricolage. E com uma antena parabólica, evidentemente.

 

 

Moscoso (serra da Cabreira)

João-Afonso Machado, 18.03.18

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Chamam-lhe o Nariz do Mundo. Bom, talvez seja excessivo, haverá no Mundo uma ou outra serra mais nariguda, mais acutilante. Mas a neve na Cabreira vê-se cá de baixo, de Cabeceiras, a sede do concelho.

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É um fartar de subir. As manchas de neve cada vez maiores. O gado não parece queixar-se, vai comendo e suportando o muito frio que lhe sopra nas orelhas.

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Moscoso, uma aldeia compostinha. Com dois restaurantes de onde saimos atulhados de calorias para enfrentar aquelas baixíssimas temperaturas. Há pouca gente por tais caminhos e o gorro de lã é de uso frequente. Menos do que as pessoas, só os cães.

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Cães esses onde se misturam todas as raças menos as de guarda, e sobressai uma expressão pacífica e resignada a uns restinhos de sol que volta e meia surgem do nada. A conclusão é a de que os lobos não regressaram à serra da Cabreira.

 

 

 

Para a semana há horácios

João-Afonso Machado, 17.03.18

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Com uma pitada de sorte nevará até nas terras baixas do Norte. O resto é o costume: vento, muita chuva, mar levantado. Umas estufas e uns telhados pelo ar, outras tantas inundações e, não é impossível, qualquer fatal imprevidência. Mas, se o Mundo baptiza os seus tufões, porque não havemos nós de levar também à pia as nossas mais caseirinhas tempestades?

Aliás, já nos devíamos ter lembrado mais cedo - o inverno vai para o fim e dificilmente sofreremos este ano as molhas do Zózimo. Coitado, ele que até metera uma cunha para ser temporal e lá lhe ofereceram o distintivo amarelo...

Mas identificar as tempestades faz mais do que sentido. Deviam era escolher nomes truculentos, ou, pelo menos, bonifrates: Fabião, Raimundo, Brás, Judas, Hermógenes, Expedito. De modo a que os afectos presidenciais produzissem resultados duplicados nos seus contactos com os locais (eu ia a escrever "indígenas" mas não quero ser depreciativo...). - Então, portugueses, o que se passou? - Foi o Gedeão, esse mafarrico, que veio por estas bandas... - E logo Marcelo uniria os lesados todos num prolongado abraço (- O Gedeão, quem diria! Mas ele voa sempre fora dos limites! -) jurando voltar para o ano a festejar o aniversário da senhora mais idosa, sem esquecer uma vassoura para lhe varrer a casa.

Atrás de Marcelo, não abdicando da sua vez, Costa e Cabrita, com a entusiasmante promessa de que no próximo inverno já não haverá tempestades, sequer.

Assim vamos vivendo. Mas original, original, seria baptizarmos os incêndios. Com nomes estrangeiros, para fazer de conta que eles vieram de fora. Enquanto não, chegará a vez dos horácios. Estão aí a estoirar e oxalá eles não se esqueçam da neve entre o  Cávado e o Ave. Aguardemos. Como dizia um deles - carpe diem!

 

 

 

Gisele, a chefe dos bombeiros (interina)

João-Afonso Machado, 14.03.18

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O Comandante claudicara à conta do reumático. E a tempestade fora previamente anunciada, sinal vermelho ao longo de toda a costa. Em tal aflição, o batalhão reuniu e chamou Gisele para a frente das tropas. Ela veio.

Veio possante como um levantador de halteres, contudo de voz mais sonante. Sem frio e de mangas arregaçadas. Gisele nada sem se despir e não cabe num bote salva-vidas. Mas o mar tem-lhe medo.

Certa vez, conta-se, atirou-se à água. Eram uns tantos embrulhados num remoínho, a gritar por socorro. Gisele, num rompante, mergulhou, as mangas arregaçadas, ela nunca se despe, e nadou, nadou, o mar temeroso a deixá-la passar, até alcançar os naufragos. Vendo-os tantos, fez uma careta, contrariada, rasgou a camisa e ordenou - Segurem-se. Vamos!

E eles vieram, agarrados às raízes que despontavam debaixo das suas axilas.
Por isso a autoridade de Gisele neste capítulo dos salvamentos. Agora mesmo, com o litoral português sob alarme total, a heroína está lá. Semelhando ao lado das carroças do sargaço, a bradar como um carroceiro. E a norte da demais companhia, porque o vento está de sul e Gisele não pára de dar ordens e de transpirar.

 

 

Félix, o capitão-do-porto

João-Afonso Machado, 12.03.18

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Nascera talhado para olhar o oceano, ouvi-lo ou adivinhá-lo, mas sempre a uma distância prudente, como lhe recomendou toda a vida a sua mãe. Nascera perto da foz, o pai andara nas obras do cais, e ele nunca fora à pesca, tal o medo de cair à água e morrer afogado.

Na praia, quando, num rasgo de audácia, a visitava, não sabia do que fugir mais depressa: se do mar (a não ser das pocinhas da maré baixa), se do cabo-do-mar e do seu cassetete.

Mas Felix gostava realmente de olhar o oceano. De o ouvir e adivinhar, de pressentir a aproximação da tempestade para logo fugir dela, no calorzinho da braseira da sala. Felix nunca se aventuraria além deste lado tranquilo da barreira, mas recusaria sempre ir para longe do litoral. Onde, fizesse sol ou chovesse, envergava todos os dias o seu ar macambúzio, assustadiço, caminhando ordeiramente para a escola. Era um aluno exemplar, disciplinado, posto em cima da braseira da sala a fazer contas. Onde estudou para capitão-do-porto sem nunca ter aprendido a nadar, muito menos a navegar.

Mas ei-lo um dia em frente a sua casa, no outro lado da rua, à porta da capitania. Em pleno cais. Um dia de mar chãozinho, felizmente, e de muito desvanecimento familiar. Tomava posse do cargo e o boné branco, cheio de dourados, ficava-lhe como a um almirante. Sorriu, momento raríssimo. Por instantes convenceu-se que, com ele, não voltariam as intempéries. Estava calmo.

Ontem surgiu na televisão. Enfiado num blusão que lhe escondia o queixo tremelicante. Macambuzio e assustadiço. Infeliz, perigosamente posto na marginal, a desfiar o pesado rosário dos cuidados com a borrasca que vinha aí. E a falar imperceptivelmente (o queixo tão tremelicante!...) de caudais, correntes, marés, de toda a traiçoeira violência dos elementos.

Não determinou o recolher obrigatório mas nem por isso deixou de avisar, quase ameaçar, um grupo que por ali fotogafava as ondas bravas - que não esquecessem, em caso de desgraça não disporia de meios aéreos ou marítimos para os salvar!

E dito isto, transido de frio e de medo, atravessou o jardim público em passinhos rápidos e refugiou-se no seu observatório, na sala, com os pés na braseira. 

 

 

 

Apanhados (XIII)

João-Afonso Machado, 10.03.18

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Um jovem promissor, uma desilusão. Era o pai do 206, de tanta glória dos ralis. O Peugeot 104 veio ao mundo entre as Décadas de 70 e 80 do passado século. Quem dirá - não tinha umas lindíssimas linhas? E surgia preparado para as intensas lides urbanas, com pouco consumo e menor facilidade no estacionamento.

incompreensivelmente, não vingou. Desapareceu da circulação.

Para os entusiastas da Peugeot (como eu), revê-lo é quase um momento fatimista. Tive essa felicidade recentemente. Espero ainda a graça de poder adquirir um, para minha utilização pessoal. E para, enfim, me arrogar a condição de coleccionador de "clássicos".

 

 

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