Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Um canil de investigação

João-Afonso Machado, 28.02.18

010.JPG

Por vezes frequentamos o mesmo gabinete, postos em frente de assustadores montes de papel velho. É duro investigar, trazer para casa, às costas, a férrea contrariedade de, nesse dia, os avanços serem nenhuns. Daí a mais do que perdoável tentação de dois dedos de conversa, volta e meia. Ela bonita, mesmo bonita, muito bem apresentada. Confesso, desaprendi de ler idades. Mas não será uma menina, a avaliar pelos desgostos que lhe vão fugindo pela boca em voz alta. Sofreu o bastante para dispensar a companhia geral, salvo a dos seus pinscher e pastor alemão. - Parece que tenho mais medo do pinscher do que do pastor - comentei, para sacudir o pasmo. Que não, o pinscher não faz mal a uma mosca, talvez seja um pouco ciumento, sim...

Não redargui. Nem ela me disse o nome dos cães. Sucede é que esses ciúmes às vezes levam-nos um pedaço de boca, ou de bochecha, ou de nariz... Sobretudo a quem sequer sabe o nome da fera... Estranha forma de manter as distâncias, conclui.

E fui-me perguntando em silêncio que alma não precisa de joelheiras e cotoveleiras nas suas roupas gastas pelas desilusões. Deixei-a às voltas com o cachecol, ia de regresso ao pinscher e ao pastor alemão. Sempre inominados. - Não se isole! - ainda recomendei. Ela olhou-me e não respondeu. Talvez um dia venha a saber porquê. Mas sozinha, sem uma caneta, papel, é como enfiar-se num frasco, arrolhá-lo e esperar que o oxigénio se extinga. Mesmo porque nada lhe sobra para contar ou cantar, nem até para discutir com os seus cães, fechados em casa. Se ela levar o pinscher para a banda oposta, eu promento aceitar o pastor aos meus pés. Contando que tenha um nome para lhe chamar, claro.

 

 

Apanhados (XI)

João-Afonso Machado, 25.02.18

HILLMAN HIMP.JPG

Nesse tempo, o modelo da Corgi Toys era azul e abria o postigo atrás, a grande novidade do Hillman Imp. Uns mais "artilhados", outros menos, foram concebidos para fazer frente aos Minis - mas invariavelmente perdiam a disputa, quer em velocidade, quer em rali. No entanto, não havia quem não gostasse deles e andaram por aí durante décadas. Em Vila do Conde, já a desfazer-se todo, Inverno Amaral apareceu uma série de anos seguidos com um, batendo-se sempre, honrosamente, ao último lugar. A gente continuava a gostar dele... Oxalá quem os tem os saiba preservar.

 

 

 

"A Praceta em Tebosa"

João-Afonso Machado, 22.02.18

IMG_2167.JPG

Fora nunca um hábito meu, o do encontro no café, ao fim da tarde, com os amigos. Para aquela conversa agradável em que se esgrimem favoritismos no futebol e se diz mal dos políticos. Entre muitas outras coisas, claro, as bastantes para ir sedimentando a confiança, a boa camaradagem, e, como se verá, idealizando saudáveis iniciativas.

Não vou lá todos os dias, ao café S. Paulo (para quem não sabe, na Rua Ana Plácido). E, porque não lhes pedi autorização, não nomearei os meus companheiros de mesa. Acrescentarei somente, não é costume sair de lá mal disposto com os debates. 

Feito o introito, revela-se essencial a identificação de um outro personagem: o Sr. Bruno Duarte, funcionário do S. Paulo, um jovem ainda, no estado civil de noivo, com quem todos os dias a dita tertúlia contactava – era atendida por ele. O Sr. Bruno Duarte, bravamente, como os portugueses de outrora, tomou uma decisão de muita coragem – estabeleceu-se agora por conta própria.

E o presente capítulo, na forma esquálida de um parágrafo, leva-nos às arábias para onde partiu o Sr. Bruno Duarte. Enfim, não vou dizer que tenha sido para muito, muito longe; mas foi para fora deste condado, o Sr. Bruno Duarte instalou-se em Tebosa, já no termo da capital do nosso distrito. Sem querer prolongar a lição de geografia, em terras onde ordena Sua Ex.cia Rev.ma o Senhor Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, enquanto as nossas se regem pelos ditames do foral concedido por Sua Majestade a Rainha D. Maria II. Tebosa, com o Sr. Bruno Duarte, transformou-se num local de paragem, em vez de apenas passagem. Aliás, muito gratificante: a gente deixa a EN14 por um bem tratado caminho municipal, faz duas ou três curvas adiante, e sobe até ao silêncio de outras eras, mesmo ao pé da igreja paroquial. Toda ela em granito despido, oxalá ninguém – nem alanos, nem sarracenos - se lembre de a arrasar em outra qualquer invasão. Estamos perto, pois. Naquela calmaria, um pouco abaixo, ergueu-se um prédio civilizadíssimo, sobre o comprido mas dividido em fracções de rés-o-chão e primeiro andar apenas. Na ponta de cá A Praceta, o estabelecimento do Sr. Bruno Duarte. Um poiso excelente para uma cerveja à tardinha e dois dedos de filosofia.

O certo é que o atrás referido grupo de académicos resolveu abençoar honoris causa A Praceta. Combinou-se tudo, os carros que rumariam os domínios arcebispais, o dia e a hora de partida. Assim aconteceu, em conformidade com o planeado. E estava a cabeça da comitiva a chegar a Tebosa ainda a sua cauda rabiava em Famalicão. Tantos os nossos epicuristas!... Com eles, em vez de ouro, incenso e mirra – espumante do bom.

Fomos recebidos com uns petiscos. Fizeram-se as indispensáveis saúdes, souberam-se pormenores. Além de padaria e pastelaria, servem-se também refeições ligeiras e assiste-se à bola no Sport TV.

As felicidades que todos desejámos ao Sr. Bruno Duarte, então, são as que eu, aproveitando este espaço, agora renovo, cheio de esperança no sucesso do seu negócio. Tem-me lá, nas minhas deambulações minhotas!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 22.FEV.2018)

 

 

 

Machado, Fm

João-Afonso Machado, 21.02.18

Intemporal. Anos depois, muitos anos depois, continuava a tocar na telefonia e nas ditas "festas de garagem". Sempre ao serviço da dança e do romance. Um dos grandes motores da aventura de um beijo e do arranque dos namoros. Francês, ainda por cima. Como seria possível hoje tal? Felizes os que viveram estes tempos! Que será feito dos slows e das férias que criavam raízes violentas e fundas na nossa memória? Tout c'est fini, c'est la vie... De Alain Barrière. Est-ce qu'il serà maintenant vivre?

 

 

Preparativos - III - Os perigos

João-Afonso Machado, 19.02.18

ESTAÇÃO CF.JPG

No mundo de hoje, em cada esquina pode surgir uma má surpresa. Ou em cada carruagem... Foi o que me explicaram a propósito de uma ida a Sintra de comboio - fosse de dia, evitasse os ajuntamentos de índios.

De modo que parti a meio da manhã, cuidando de ocultar a minha carga mais preciosa, as máquinas fotográficas. Na gare, muitos outros viandantes, a maioria estrangeiros. Como eu - ou ignorantemente - dispostos a atravessar regiões inóspitas e implacáveis como a Damaia, a Reboleira, a Porcalhota, Monte Abraão ou Rio de Mouros. Em algumas, devo confessar, pasmei pela densidade de churrasqueiras ou pela altitude das construções, tal qual as mesetas do Arizona (de arvoredo, nada), dessas todas esburacadas pelas populações Pima, com escadinhas de mão para subir os patamares. Mas, enfim, enquanto eles se entretém  a cavar os seus habitáculos na rocha não chateiam cá em baixo.

Apenas uma vez a viagem foi perturbada pela passagem de um hominídeo notoriamente mal disposto, aos urros e murros nos varões da carruagem. Depois soubemos o sucedido - comprara o bilhete para Neanderthal mas enganara-se no comboio.

E a chegada a Sintra (Sintra, uma estaçãozinha pacata, florida, acolhedora...) foi como a visão feliz do Pacífico pelos colonos da California. Perto de mim, uma família alemã, do patriarca às duas filhas adolescentes, rejubilava e dava graças. Os perigos, concluo, são sempre relativos. Quem escapa às tribos guerreiras deste percurso bem pode programar a sua volta ao mundo.

 

 

Sintra

João-Afonso Machado, 17.02.18

São muitas Sintras e o Atlântico e Mafra no horizonte. E Colares, Monserrate, a serra, a multiplicação das quintas... Não é preciso menos de um livro, no curso de uma estadia prolongada, para contar tudo. A gente aterra num ponto qualquer e, lá no topo, dá logo com o Castelo dos Mouros. E sua, banha-se no suor, só de pensar na escalada das armaduras monte arriba.

CASTELOS.JPG

Depois confunde-se com os altos e baixos de Seteais, a aceleradae acidentada história desde o holandês Gildemeester até às garras de Salazar e ao actual luxuoso hotel. Recorda Eça, ouve os ecos de um romantismo a que nem ele escapou.

SETEAIS.JPG

O Monteiro dos Milhões. Outro mirabolante percurso entre a aventura e sabe-se lá o que mais. Na entrada, a assustadora fila de turistas, mesmo em Fevereiro, imposições da nossa balança comercial. Para quando um dia só nosso?

MONTEIRO DOS MILHÕES.JPG

Mas são muitos os recantos. Nesgas de bom gosto e instantes de paz...

ÁGUAS FURTADAS.JPG

E o centro de Sintra, finalmente. Já com duas Piriquitas a aviar queijadas e travesseiros a japoneses e quejandos - Piriquitas inacessiveis, incompreensíveis - e outros casas despachando, até, vinho fino do Douro

VINHO DO PORTO.JPG

ou mesmo o galo de Barcelos, mantendo sempre aquele hábito estremenho de gozar com o sotaque do Norte que tanto lhes dá a ganhar.  

 

 

Nova Lisboa (à Metrópole)

João-Afonso Machado, 13.02.18

IMG_2113.JPG

À passagem pelo Campo das Cebolas, o taxista transfigurou-se - era agora o elenco completo do Jornal de Negócios. Ele que vivia lá para cima, em Alfama ou na Mouraria, onde, a semana passada, uns franceses tinham pago um milhão de euros por três ou quatro assoalhadas com vista para o rio!... E pela Rua da Prata, no Rossio, Restauradores, até à Fontes Pereira de Melo, naquele jeito próprio dos taxistas e dos redactores - de guiar e escrever sem mãos - não mais deixou de apontar futuros hoteis e apartamentos de luxo. Prédios antigos, enormes, desdentados, tolhidos de reumatismo, a recuperarem da boca e dos ossos, entregues à ciência dos estrangeiros... - Este compraram-no os chineses - informava o expert, uma vez mais esquecendo o volante. E aquele os brasileiros, o outro os russos...

Estávamos a entrar na hora de ponta. Tudo acontecera porque me lembrei em voz alta há 40 anos apanhava no Campo das Cebolas as célebres camionetas-pirata, estudante, nas vindas ao Norte, aos fins de semana. E também por razões de fiscalidade - o cunhado do taxista engenhara um tuk-tuk e tuk-tukava o dia inteiro sem pagar impostos.

- Olhe - ansiava eu - e nas Avenidas Novas também é assim?

- Não - retorquiu o mestre - aí a vida está mais calma.

Te Deo laudamos!

 

Do Golfo do Seixalinho

João-Afonso Machado, 11.02.18

T. PAÇO E CASTELO.JPG

Por uma gélida manhã de inverno a nau avistou terra. Não há modo diferente de assinalar o acontecimento. Trazia-a um vento de antigamente, logo inaudível, soprando velas que não estavam lá. Nos porões, a carga inacreditavelmente desprovida de turistas; mas rica em berbigão, ameijoa e outras especiarias, em conversa fiada. A tripulação, indigena toda ela, - constituída por nativos de Lisboa, logo indígenas lisboetas - firme  nos seus postos, mas comovida. Era, pois, o regresso.

Longos anos tinham corrido desde a derradeira visão do Terreiro do Paço e do castelo assim de caras para o Tejo. Em crescendo, sempre em crescendo, até ao desembarque dessa miscelânea de gente, quer os de fortuna feita, quer os outros, trazendo na bolsa não mais do que saudades. As tais não transaccionáveis saudades, um saco de viagem com que as almas atravessam os mil orientes. Pelo menos, assim se lia no diário do comandante, de quem não há memória tenha proferido, durante toda a navegação, uma palavra sequer. 

 

 

"Manifesto"

João-Afonso Machado, 08.02.18

MÁQUINAS FOTOGRÁFICAS.JPG

Era um ritual, o das fotografias “tipo passe”. Todos os anos, antes do início das aulas, lá corríamos ao artista para meia dúzia de “selos” com a nossa carantonha. Encaminhados à sala própria, entre a máquina e as muitas sombrinhas, a cabeleira previamente penteada frente ao espelho, sentávamo-nos na banqueta e seguíamos as instruções do fotógrafo – a cara mais para ali, o queixo levantado, um sorriso “natural”… Finalmente o click. Faz o favor, vir na próxima semana – para a semana estão prontas… - e não restava alternativa senão esperar vermos como eramos, como as pequenas, feitas as contas, nos viam.

Foi assim, também, com o bilhete de identidade, com a licença de velocípedes, com a carta de caçador… Sempre ao mesmo ritmo de uma semana de espera.

Já no ingresso da Faculdade surgiram as máquinas dos centros comerciais. A entrega era instantânea, às quatro fotografias de uma penada, mas o número de delinquentes aumentava exponencialmente. Quero dizer: era difícil sair dessa operação sem cara de cadastrado, presidiário, feições esbatidas, um autêntico palmarés dos gloriosos tempos da tortura pidesca. Mas ninguém se importava, o verbo acelerar imperava sobre todos os adjectivos que o know how da fotografia proporcionava.

Mais recentemente ainda, - e já a cores – os profissionais destas necessidades ofereciam-nos quatro fotografias em cinco minutos, todas enfiadas em carteirinha, simpática e publicitária, fossem elas precisas para as entidades oficiais, fossem para uso das colectividades. Sempre a preços módicos. Pensei eu, tinha-se atingido o estado útil e mais avançado da tecnologia.

Também com as fotografias da nossa autoria – essas que nos punham de umbigo ao léu, no fim de semana, - a coisa funcionava às mil maravilhas. Pelo acabar das tardes, aos domingos, antes da missa, a gente levava o rolo a uma de tantas lojas espalhadas pela cidade. - Que voltasse depois do jantar, estavam abertos até às onze, e a revelação, pronta, seria entregue. Com um rolo grátis, a “picar” o fim de semana seguinte.

Sobrevieram as máquinas digitais, avassaladoramente, uma autêntica blietzkierg. E a hecatombe dos estados fotográficos. Já não há rolos-revelação, apenas computadores e alguma impressão. É tudo, em casa e nas redes sociais.

A vida funciona assim disparatadamente. Se pensarmos na música, lembramo-nos do vinil e dos CD’s, do YouTube e, completo o ciclo, da melomania inicial. Como dizia um amigo meu, tirar uma fotografia é dar um tiro; se ele foi certeiro ou não, ver-se-á depois.

Trocando por miúdos, há muitos anos utilizo regularmente uma máquina digital. Mas a analógica dá-nos outro prazer, é sempre uma surpresa. Recentemente, fui buscar a minha Cannon e gastei um rolo com ela, em fotografias para mim importantes. Levei-o (o rolo) a uma casa da arte para a revelação onde me impuseram – que esperasse uma semana, o tempo indispensável para, no Porto, se tratar tão complexo trabalho e ele estar apto a ser-me entregue. Ponto final, com as devidas reticências, o desejo de que a malaposta não seja assaltada nem entre em greve, e algumas palavras de ordem:

. Abaixo a espera!

- Abaixo o modernismo!

- Viva a independência!

- As nossas fotos já!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 08.FEV.2018)

 

 

 

Como se fosse marfim

João-Afonso Machado, 05.02.18

IMG_2075.JPG

A viagem de regresso foi angustiante. A carga, preciosíssima, atrás, oculta, e o seu destino absolutamente incerto. Faisões! Havia ainda o perigo da pirataria das estradas, nessa mauritânea toda até casa. Mas a preocupação maior era saber em que mãos de fada depositar os faisões. Nas da cunhada?

A cunhada bem poderia - era menina para isso... - desandar a barafustar por causa da depilação dos bichos. Tremenda injustiça, se o fizesse, pensando só na trabalheira que eles tinham dado - as centenas de quilómetros percorridos sob uma tempestade de pórticos e portagens, os cartuchos. o carregar a arma, o zelo empregue na pontaria, o almoço comedido de quem vai guiar a seguir, ninguém, sequer, que lhe limpasse no fim oa canos da espingarda... E, vendo bem as coisas, os faisões já seguiam muito depenados, o corpo carregadinho de chumbos que a gente, ao comê-los, põe discretamente na borda do prato.

Mas não, tratou-se apenas de um falso alarme. Nem o chapéu branco dos piratas, nem a cunhada furibunda. Os faisões ficaram em mãos fiáveis, e até parece que a Senhora Cunhada ainda receberá umas lições da Senhora sua Mãe e, a seguir, estamos para o regabofe. Oxalá estufado...

 

 

 

Pág. 1/2