O triunfo dos fantasmas
Nessa noite, na metade anterior da minha vida, tinhamos chegado ao Vidago. Quem comigo? - Já não recordo bem, era como nos filmes de terror, talvez algo esguio, sanguíneo, corresse sarjeta abaixo. Chovia. O hotel, monumental, em pedra eterna, estava envolto no silêncio cósmico das casas vazias.
Mas com o Palace em obras e os meus bolsos a precisarem delas, fustigados pela intempérie, não restavam alternativas. Ficámos. Repito-me - como nos filmes de terror.
As lampâdas interiores amareleciam de tristeza ou saudade. Nada retive da recepção, talvez a voz balconista fosse só isso, a ausência de corpo. Todo o meu espírito se guardou para o infindo salão do jantar, de que eramos a única mesa falante. Ou ridente, escarninha (o filme era de terror...), os caninos bem cravados numa excelente posta de vitela. O empregado, de casaco branco e lacinho no pescoço, perfilado diante nós, acompanhava impávido o regabofe. Eu não deixei de apreciar os grelos e a batata a murro também. Hoje já não jantaria assim ou então mentalizava-me logo para uma noite em branco. Mastigava-se com avidez ao meu lado, e uma garrafa de vinho trouxe àquele fim do mundo a esperança em viver.
Porque o funcionário era, inegavelmente, um cadáver em pé. Apostaria, nas outras mesas, o festim atingira já a euforia, numa dimensão a que nos poupavam. Talvez por respeito a El-Rei D. Carlos - em destaque na parede, a placa sinalizando a passagem de Sua Magestade pelo hotel, em 1906, o período áureo das férias termais.
E ainda então Ele velava por este seu português...
Depois do pudim, levantámo-nos sem resposta audível aos nossos «boas-noites». Digo eu, porque junto a mim garantia-se tudo ser evidente, tão natural como o sobrenatural.
Estranhos armários de amanueneses forravam os quartos. Ou seria uma decoração art-deco? Seja como for, os fantasmas da madrugada foram educadamente discretos. Logo ao amanhecer, os melros entraram a trinar nos jardins. O sol voltara e foi como se um ogre se abrigasse no meu carro para prosseguir viagem comigo.
Um quarto de século depois regressei. Alguém de lá, junto à ruina absoluta do hotel, comentava revoltadamente o congresso de fantasmas ali sediado. Sim, doía, assustava, não oferecia soluções. Nem mesmo para salvar de entre tanta lenha a placa evocativa do Senhor D. Carlos.