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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

As emoções fazêmo-las nós

João-Afonso Machado, 29.10.17

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As grandes viagens trazem, por regra, lugares inóspitos de qualquer recanto do planeta. E chegam a casa carregadas de souvenirs e alguma áurea de felicidade e bem-estar na vida. Não são é para todos...

Vamos nelas, partimos para o mundo dos outros, em geral sem antes conhecer o nosso. Este mesmo, aqui ao lado.

Muito em segredo, confessaria, durante 57 anos não visitei os confins do meu concelho. Mogege, Pedome, eram-me nomes tão longíquos como Tóquio, onde decerto nunca irei.

Mas, finalmente, investições em curso levaram-me a Pedome e a Mogege. O que fora monte e hoje são arrabaldes de Braga. Por acaso na extremidade poente de Famalicão, freguesias orientadas para Guimarães.

Assim atravessei a medieva ponte de Sevres, sobre o Ave, separando as duas municipalidades. Foi como se tivesse transposto o Canal da Mancha! Somente com menos ondulação e menos peixe.

O quotidiano é isto. No fundo, descobrirmo-nos. E gente que, 20 km adiante, já poderá ser tão diferente de nós. A questão está em, metro a metro, ir-mos tacteando as alterações. Fronteira após fronteira, até ao longo passe dos continentes. Ou até Marte. Quiçá, uns milénios volvidos, até ao último reduto do sistema solar. Mas antes da por ora ficção ciêntifica, a emoção - as emoções fazemo-las nós - de ir um concelho além. Chegando a Pedome, correndo a ponte de Sevres, entrando em Gondar, terras de Guimarães.

Outro dia será maior o arrojo.

 

 

Enquanto a seca persiste

João-Afonso Machado, 24.10.17

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O julgamento seguinte prometia: a "dama de companhia" (haverá aqui algum anacronismo!?...) tinha assassinado a idosa enfiando-lhe trapos garganta abaixo, até ao sufoco. O juiz-presidente, um homem muito considerado, severo, alto e magrinho, a cabeça completamente descabelada, grandes orelhas, esfregava as mãos, ávido de justiça. - Venha ela, venha ela!

E enquanto o oficial de diligências a buscava, nomeou-me (a mim, modesto estagiário então) seu defensor oficioso.

Sequer tive tempo para pensar a minha intervenção. A mulher entrou, respondeu ao interrogatório preliminar, e dispôs-se a contar a história. Com uma naturalidade que não era indiferença, apenas o reconhecimento da sua indignidade e da sua culpa. Presa preventivamente, já por duas vezes tentara o suicídio...

E foi tanto assim que o temido juiz do Porto, em definitivo amansado, já só pregava moral. - As pessoas não podem dispor da vida, nem da própria nem da dos outros - proclamava escandalizado. - Pois não, mas que hei de dizer ao Sr. Dr. Juiz? Eu queria era morrer...

O Colectivo aplicou por penitência à desgraçada uns bons anos de cadeia e um suplemento de terapia psiquiátrica. Já lá vão mais de três décadas. No presente da minha geração, a gente dá-se conta dos muitos, mais velhos, que entretanto desapareceram...

Mas estas recordações todas porquê? E onde?

Onde - no átrio do tribunal de Guimarães. Porquê - porque, uma vez mais, como em centenas de outras, mumificamos esperando pelo Meritíssimo. Para depois entrarmos numa sala onde se especa a sinistra bandeira rubro-verde. Ser advogado é isto.

Para amenizar o suplício, de dentro da toga sempre pode sair algo - um baralho de cartas, um coelho branco (e azul...) ou uma máquina fotográfica. Neste caso dadas as perspectivas do Paço ducal que não se devem perder...

 

"Outubro com os bofes de fora"

João-Afonso Machado, 19.10.17

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Acabo de chegar de Paredes de Coura. É praticamente noite já. Em camisa (diurna), mangas arregaçadas e uma dose farta de calor acumulado, entranhado. Outubro vai a meio.

A gente não percebe o que se passa. Ouve falar no «aquecimento global» e assiste ao drama dos incêndios na televisão. E conclui: isto não é modo de vida; isto só pode ser o Sahara a subir por aí a fora. As estações do ano em completa indisciplina, o mundo a virar-se ao contrário e uma saudade enorme do tempo em que à chuva e ao sol competia o tempo da chuva e do sol. Para quando o amarelado e o acastanhado das folhas das árvores? Um ar mais respirável, a vinda do frio? É com a maior nostalgia que recordo os outonos de outras eras.

De quando as aulas no liceu estavam agora a começar e já demandavam uma camisola de lã. Longe vinha a maré da preocupação com os estudos, às vezes ainda não todos os professores haviam sido colocados, os “furos” eram festejados ribombantemente, e surgia sempre uma bola para os preencher. Mais uma horita de futebol, bem suado, no recreio, portanto.

E suavizámo-la em jogos renhidos. Mas, decerto, não o bastante para tirar a camisola. Em Outubro, o mês do regresso às aulas e a algum agasalho mais.

O mesmo com as pequenas, que já botavam meias e casaquinhos a amenizar o decote. Quando não, chovia e os blusões entravam ao serviço. Chovia às vezes a semana toda, a seguinte também, o mês a entrar na sua segunda metade e a conversa – confiante, rotinada - suspirava pelo Verão de S. Martinho. Não sei se recordam, esses dias solarengos de Novembro em que se comiam castanhas e se saltava a fogueira. Era, consabidamente, o derradeiro adeus à complacência do clima, antes dos rigores da invernia.

Mas, também, sem o Inverno pouco sentido faria o Natal. E as botas novas, a moda nova para o frio, em que as meninas depositavam tanta esperança de sucesso. Não! O mundo estava milimetricamente bem pensado, ora acumulava lenha para o fogão, ora floria na altura certa, pela Primavera, quando o cuco cantava, com os dias já tamanhões e o regresso a casa mais tardio.

Agora é isto. Há semanas que sonho com um lamaçal qualquer para me atolar. Fui caçar ao Alentejo e suportei – eram 11 da manhã! – com 33º em cima. Nem cheguei a perceber para que praia fugiram as perdizes todas – a água da charca (ou melhor: o que restava dela) era tão verde que até o cão teve náuseas e recusou o licor. Lá em cima, no Alto Minho, o Coura em definitivo adormeceu; consta que também as trutas emigraram, ou morreram de over-dose.

Em suma, saem frustradas as minhas expectativas de deixar a aridez do planeta como herança para os meus bisnetos. Seria, afinal, um belo capitalzinho, um estímulo para a aquisição de alguma moradia lunar. Ou para que investissem no “arrefecimento global”, na patinagem no gelo de Marte, e ganhassem uma pipa de massa. Assim não! Assim estorricamos todos neste braseiro infernal e não se queixem os bisnetos de não o serem porque o bisavô ou os avós pereceram de língua de fora, arquejando e rogando por uma garrafinha de água no trânsito imobilizado na auto-estrada. No regresso de Paredes de Coura onde, outrora, diz-se, pululavam os mamutes e outras espécies da saudosa era glaciar.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 19.OUT.2017)

 

 

"Tempestade litoral"

João-Afonso Machado, 14.10.17

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Palavras imaculadas morrendo (em odor de santidade)

quando a voz se erguendo,

 atroz esgar de insanidade,

 

as esfarrapou

e denunciou os contornos da verdade.

 

Chorou então o almoço magistral,

caíram mil adornos

(não ao mar, mas num poço…)

 

e nada mais, nada mais

restaria

 

senão o efeito do vendaval

nas bancas da peixaria.

 

 

 

Longe, muito perto da alma

João-Afonso Machado, 09.10.17

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És muito grande, Alentejo! Tão grande como uma alma benfazeja, e também humilde e silencioso como ela. Talvez por isso, difícil de conhecer, surpreendente, absolutamente imprevisível no tempo e nas distâncias.

Madrugador, fresco e embaciado, depressa um braseiro. Então exigente, impondo a marcha. Severo, severíssimo, quando pisamos os torrões das lavradas ou nos embrenhamos nos estevais sobre a pedra solta. 

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Depois compensador nas perdizes, às vezes prodigalizando uma lebrezita...

Encontro de amigos, congresso de cães de caça. Uma alegria quase terna quando constatamos que as pernas ainda estão para o que servem. O sol vai alto, o corpo sofre mas segue em frente. Egas e eu bebemos água da mesma garrafa, como dois vitelos à mesma teta.

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Olhando em frente, alcança-se o futuro. Arfa-se crendo na sua extensão. Quase cedendo às lágrimas lá longe: é o Guadiana...

E na hora do jantar não há desconhecidos. Para os outros, americanos ou nepaleses, talvez alguns excêntricos esfalfando o corpo de espingarda na mão.

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A noite do Alentejo é dos grilos. E de quantos predadores se movem no drama dos seus fundos e cabeços. Ou das estrelas e dos desejos. Do esquecimento dos dias tristes. Imensamente ao longe, os luzeiros de outros quaisquer montes onde estarão assim sentindo também e conversando do mesmo modo baixinho.

Até breve, terra prometida!

 

 

 

 

"Novidades do mercado"

João-Afonso Machado, 04.10.17

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Há uns meses atrás, naquela curva do passeio junto ao mercado, sob o reclame da Taxitel, dei com um estabelecimento novo, algo tímido, ainda a despertar, nas últimas pinceladas da obra. Não lhe prestei grande atenção. Segui o meu caminho.

Fora, salvo erro, o espaço de uma drogaria. Agora aparecia com uma montra de bons vinhos, lá dentro um balcão, umas mesas e as respectivas cadeiras e um empresário que – pensei comigo – só podia ser um aventureiro.

E finalmente, certo dia, porque a porta ainda se mantivesse aberta, entrei e fui fazendo perguntas. Bebi o meu copinho de branco, ouvi a história, o projecto, mas, devo confessar, mantive o meu cepticismo.

A dita história, o dito projecto, consistiam basicamente numa casa a servir refeições simples, conquanto criteriosamente preparadas, e vinhos diversos, a copo ou em garrafa, originários sobretudo do Douro e do Alentejo. Com um alerta ainda para os melhores verdes da região de Famalicão.

O tempo foi passando e eu também, de quando em vez, por essas bandas. Curioso de ver como a coisa evoluía. Até me aventurar ao primeiro almoço e - para usar expressões de agora – tomar no palato todo o conteúdo daqueles sólidos e líquidos.

Enquanto esperava a vinda do prato, fui servido de um pratinho de um azeite de primeiríssima estirpe e um cesto com fatias de pão a embeber nele. Algo a que, em outras circunstâncias, eu preferiria um pacotinho de manteiga ou de paté de sardinha… Mas não, esse azeite fazia todo o sentido nas suas sopinhas de pão; tal como o branco fresquinho, duriense, com uma carne de porco em que o assado trocava a batata por maçã e se fazia acompanhar de uma salada excelente, variada, e muito bem “apimentada” por uma série infinda de ervas aromáticas.

Perante tudo isto, fui voltando. De início sem problemas de arranjar mesa para o almoço.

Mas só de início. Num instante a casa começou a encher e, se não quisesse comer pendurado num assento de perna alta, ao balcão, melhor seria fazer a minha reserva. Assim procedo actualmente. Porque o Porta Enxerto veleja já com vento muito forte à popa.

Porta Enxerto, pois, o novo baptizado famalicense. De seu apelido, Garrafeira – Wine Bar – Tapas. A enfeitar a entrada, uma vide que cresce por ali fora e já bota parreira que se veja; e um estradosito para umas refeições ao ar livre. Tomei o hábito de por lá passar com amigos. Os vinhos (sigo sempre as recomendações do patrão), primorosos e quase todos invisíveis no mercado. Isto é, nas grandes superfícies. O Porta Enxerto busca o Portugal vinhateiro de lés-a-lés atrás de produções de muita qualidade e pouca quantidade. A fugir às marcas comerciais, apostando no engenho desconhecido dos nossos enólogos. Com menos enfase, mais discretamente, a mesma política para os azeites gourmet também à disposição dos clientes.

Em vésperas da tão propalada remodelação do mercado municipal, eis, portanto, um estabelecimento pioneiro a modernizar o conjunto. O mérito vai por inteiro para o seu proprietário, o Sr. Hermenegildo Campos, por acaso mais um crente na ancestral e portuguesíssima bandeira nacional – a azul e branca.

Apostou… e ganhou! Está de parabéns e Famalicão deve-lhe essa casa ímpar no seu género.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 04.OUT.2017)

 

 

 

Tempo de hibernação ou quase

João-Afonso Machado, 01.10.17

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É, o blog tem de desacelerar. A caneta precisa arriscar trilhos mais longos sem se perder nos matagais da incoerência. Tudo está em ir à varanda, espreitar o mundo e escolher e animar o enredo. Persistindo sempre na sua construção.

Trazem os meus sentidos sons e imagens e o tacto recentes que talvez me permitam fechar o círculo desse trama. Os anos são os bastantes para haver espaço para a saudade e a dor, o cru e a sátira.

Se MACHADO, JA vai entrar em período sabático? Não creio. Subsistem as crónicas nos jornais e outras publicações, nele facilmente reproduziveis. Além de, se tudo correr bem, a imagem. (Ainda não perdi a esperança de voltar breve a Alcácer do Sal e fotografar a ponte dos exércitos napoleónicos que a seca destapou.)

Entretanto saberemos ainda hoje os resultados eleitorais autárquicos. Isto assim dito só para lembrar que a política se escreve no CORTA-FITAS. Menos, também, mas ainda e sempre pela nossa bandeira azul e branca.