Em véspera de eleições autárquicas, três ditos sobre o acontecimento, recuando no tempo até antes da partida destas terras: quando o sufrágio directo e universal era uma novidade. E, de modo algum, sem profilaxia ou apanágios partidários, porque essa não é a função de quem anda por aqui rememorando ou observando o mundo antigo ou a contemporaneidade famalicenses.
A ideia é, apenas, contextualizar a vivência dos estudantes liceais que eramos então, após não sei quantos anos em que a política nunca foi tema. E, de repente, passou a sê-lo, com uma voracidade que engoliu o desporto em geral e o futebol em particular. Tudo era política e as greves uma espécie de raquetes de badmington com que se zupavam os penosos hábitos escolares em todos os intervalos, senão mesmo em quase todas as aulas.
Logo após o 25 de Abril, saneado o Reitor, não tardou se organizasse, no átrio principal, a primeira «reunião geral de alunos» (as inesquecíveis RGA’s). Convocador e perorante um professor ainda jovem, mas já suficientemente barbudo (mais tarde, na Faculdade, Lucas Pires, que leccionava Ciência Política, explicar-nos-ia a distinção entre “barbudos” e “barbados”…), um professor desengravatado, ocorrência ainda rara, muito gesticulador, por alcunha “o Soviético”, que do púlpito propôs, para chefiar a nóvel Associação de Estudantes, uma série de colegas, todos eles razoavelmente ligados ao MRPP. Quem estava com atenção ao discurso, sem outros “mas” erguia o braço em sinal de concordância. Assim se formatavam as coisas, no meio da ingenuidade e da ignorância da esmagadora maioria. Logo nesse dia foi deliberada uma greve. Porquê? Não sei. Nem me interessava. Uma greve significava ausência de aulas e isso bastava. Longa vida à greve!, era o que os nossos 14 anos proclamavam.
Então a conversa e os hábitos transmudaram-se em absolutamente políticos. Desde as aulas de Fisico-Quimica às de Canto Coral. Discutia-se. Ou dormia-se, já na senda do absentismo. A Esquerda, muito mais argumentativa, parecia imensamente superior aos contraditores da Direita. A maioria – esmagadora – era pouco silenciosa e aproveitava para cabular. Chamar “fascista” ao parceiro do lado era um insulto fácil, multiplicado até à exaustão. Frequentemente havia porrada. As faltas às aulas foram abolidas, muitos professores perguntavam delicadamente a Nossas Excelências que nota pretendíamos para o final do trimestre. Nos mesmos moldes, institucionalizado o consumo do cigarro durante a lição, alguns mestres, mais afoitos, sugeriam se abrisse um pouco a janela para desanuviar a fumarada.
Pelo meio, alguns deliciosos pormenores: o que fora sapatos masculinos de tacão alto eram agora botas de lona com sola de borracha, à campista de antigamente; as calças de terylene, jeans de boca-de-sino e bainha revirada para fora. Só as longas cabeleiras à “beatle” se mantiveram, crescendo mais ainda. No campeonato dos docentes, o grosso e quadriculado camisão dos pescadores substituiu o fato e as gravatas foram arreadas como bandeiras de vencidos.
Somente em 1976 a tempestade acalmaria. Como lhe poderíamos chamar? O tufão Karl? O furacão Mao? Na nossa inconsequência de miúdos, a época foi memorável, inolvidável. Mas não topámos as sequelas: a indisciplina, a falta de método e concentração, o laxismo que tanto nos prejudicaria depois, já na Universidade.
Hoje em dia, já ninguém se chateia por causa das eleições. A não ser, entre si, os políticos. E a bulha passa-nos tanto ao lado que os índices abstencionistas estão aí a demonstrá-lo. O que significa, tão-só, deixar o País longe outra vez do mando popular. Algo sempre mau (é a República, na minha humilde opinião).
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 21 de Setembro de 2017)