Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A Berlenga

João-Afonso Machado, 30.08.17

ILHA.JPG

Vão lá 40 anos, era um lugar inóspito: havia um colector de águas pluviais e algumas barracas de pescadores. O faroleiro distribuia baldes para preparar os almoços e jantares, o mar se encarregaria da higiene. Anoto ainda um espaço para acampar e o barco que chegava de manhã, partia, e regressava ao fim da tarde. Vivi esse abandono durante uma semana, acampado, e lembro sobretudo a fome que rapei. O forte de S. João, uma ruína visitável como quaisquer termas romanas.

FORTE.JPG

Hoje creio ser uma espécie de pousada. As visitas centuplicaram, é um engarrafamento contínuo junto ao cais. Uma romaria. Aqueles milhões de coelhos que apanhávamos à noite (à mão) escapuliram-se. Só ficaram as gaivotas.

Dispondo de outros meios, dei a volta possivel ao ilhéu.

ELEFANTE.JPG

Andámos perto da rocha do "elefante", gozámos a transparência das águas. Tudo tem um preço, amigos, amigos, negócios à parte, chegámos aos cumes da Berlenga, ao farol, não muito longe as Estelas e os Farilhões. O todo do «arquipélago», como lhe chamava o guia...

GRUTAS.JPG

Finalmente, as grutas marinhas. Esse espectáculo calado que ficara por assistir desde que, há 40 anos, o único boteco da terra me levou 40$00 por uma coca-cola e me obrigou a regressar ao Norte à boleia... 

 

 

"Fim de tarde"

João-Afonso Machado, 28.08.17

PENSÃO AMERICANA.JPG

A janela do quarto duzentos e dois na pensão

abre-se ao tempo farto de maresia

 

- e o tempo avançaria

 

não fora ela em golfadas do passado,

nas portadas de lágrimas e coração

 

(- de lágrimas rugosas, áridas de emoção -),

 

escutar vozes tortuosas, ecos de um sol aluado.

 

Atrozes instantes de nada

senão a idade. Onde os secos retratos distantes,

cheios de vida, cheios de morte,

invocam os esquecidos anos gaiatos

e maldizem a sorte. 

 

 

Caderno de encargos

João-Afonso Machado, 27.08.17

ANDAR CIMEIRO.JPG

Quando ela definitivamente se desfizer não restará mais alguma. Fica sem história toda essa paciência de caninhas e tabuínhas sobrepostas que em tempos eu conheci porta sim, porta sim.

Foi já há muitos anos. As pessoas gostam da modernidade, às vezes duvido a modernidade goste das pessoas. A Praia da Leirosa alterou-se radicalmente, o conforto as casas há de ser outro, maior, e o que se vê de mais recente afina pelos padrões do bom gosto.

Mas estas ruínas, pudessem os meus bolsos, haviam de enverdecer em caninhas novas e ganhar depois na madeira o acastanhado zarcão. Também lhe mudaria as lentes dos óculos, o encastoado da bengala das escadas. E o chapéu, o chapéu teria de ser totalmente outro. No auge do entusiasmo talvez lhe colocasse no ouvido um aparelho auditivo - da televisão via satélite.

 

Um dia tra-los-ei maiores

João-Afonso Machado, 25.08.17

FLAMINGOS.JPG

Ainda assim, com boa vontade ou uma lupa, eles estão lá: flamingos!!! Não em África nem nos seus arredores taganos, mas numa ilha da Ria de Aveiro, algures entre a Murtosa e S. Jacinto.

Flamingos iguaizinhos aos outros, capazes de encher de cor o cinzento da maré baixa e do sol atrás das nuvens. Um bando longínquo e uma máquina fotográfica pêca, quase sem nariz, incapaz de revelar ao mundo a visão fantástica.

Abra-se uma subscrição já! - em nome da ciência, da arte e das minhas voltinhas.

 

Ilusões de um pobre no cais

João-Afonso Machado, 24.08.17

MOLICEIRO.JPG

Num repente a Ria estava toda ali. Chegara deslizando em sons de madeira reflectidos na água. A Ria içara o velame, foi o que foi. Coisa rara de se ver.

E complicada de se descrever. A Ria esquecera o moliço e carregara-se da paz dos ocupantes do moliceiro. Por isso, havia algumas vozes brandas sobre o silêncio do fim de tarde. Uma lenta rapidez no manobrar, o precioso retoque dos reflexos na água. Felizmente a máquina fotográfica não lhe deu para emperrar. Estava gente no cais, um breve diálogo com os recém-chegados do moliceiro, tudo dentro do adequado àquele sol poente.

Dos donos severos, acrescente-se, a quem às vezes repugna o barulho dos motores.

E naquele instante foi assim. O moliceiro chegou num sulco cauteloso de pirata à noite, era madeira contra madeira e o pano sacudido pela brisa, atracou e, afora umas ordens muito imperiosas, a tripulação desembarcou feminina. Sem dúvida alguma, a Ria concentrara-se ali, o mais era estrangeiro.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 10.08.17

MARÉ BAIXA.JPG

São carreiros ao lado da inconsistência da água. Tal qual a fraqueza do nosso corpo. Porque a perpetuidade da pedra está-nos no espírito.

Às vezes, que saudades dos futuros efeitos da erosão!

 

 

Memórias vilacondenses (XXVI)

João-Afonso Machado, 05.08.17

PB.JPG

De tudo o que mais gravado ficou no andar dos tempos foi o incansável palrar do silêncio da Bento de Freitas, naquelas manhãs de nevoeiro sem fim à vista. Não chegariam tão cedo ordens superiores para levantar da cama e comparecer ao pequeno-almoço. Mas é como tudo na vida: o fruto consentido é o menos apetecido. E a rua, calada, húmida, cinzenta, falava pelos cotovelos. A gente vinha para a janela ouvi-la.

Era o ziguezague das peixeiras a trupar às portas todas de um lado e do outro. Naquela ampla zona de mercado franco, o preço vencedor pertenceria à garganta mais audaz, mais falaz, mais convincente. Era já alguém, madrugador, a caminho do mercado. Era mesmo, em tempos remotos, a leiteira com a bilha e as suas medidas. Sem burburinho, todos falavam, todos se ouviam. Mesmo aproximando-se o ruído desengonçado das carretas do lixo.

Vinham geralmente às duas e às três, verdes, atulhadas de papel e folhedo, o vassourame de lado, empurradas por mulheres já de idade, avantajadas e bigodentas. Não sei o que me deu, nesse ano em que aprendi a andar de bicicleta, vi-as desfilando a par no empedrado da rua. E foi tal a minha preocupação em passar ao lado que acabei esbarrando a bicicleta nas pernas da do meio. - Aqui d'El-Rei que o moço é maluco! Pois não é que me esfolou a canela toda?!

A coisa pôs-se feia, vi umas mãos aproximando-se perigosamente do arsenal de vassouras. E volvi em retirada. Pedalei com quanta força tinha. Não mais cismei em colisões. A velhota cá atrás insultava o silêncio da Bento de Freitas. Mas eu aprendera a sprintar.

 

Quarta-feira na praia

João-Afonso Machado, 02.08.17

TOALHAS.JPG

A "Vila" toda em fato-de-banho. Dos mais novos aos mais velhos, meninas e senhoras, a bem dizer, incluidas. Excepcionalmente, um ou outro ancião apresentava-se vestido, muito acelerado nas suas sandálias novas... Não era caso para menos, faltando a nortada!

E a praia um amplo complexo de barracas onde se penduravam roupas, loiça, alguns móveis (!?), ferramentas agrícolas (seria para a apanha do sargaço?), hortaliças e frutas mornas, sedentas, e patos e galinhas, mais os coelhitos, as codornizes. Tudo ainda com as respectivas camadas de penas e pêlo, petiscos genuinamente do dia.

Afogueados, os veraneantes procuravam a sombra das barracas. Aquela sombra aquecida em que apenas o solo transmitirá alguma frescura. A suar em bica, apercebi-me esquecera a toalha de banho. Também as havia à venda na praia. Urgia adquirir uma, o areal pega-se à gente, cheio de alcatrão. Apeteceu-me jogar o prego... E depois de muito hesitar entre o CR7 e a República, optei pelo mapa de Portugal. Quase do tamanho do País, suficentemente capaz de me indicar onde escolher umas férias recatadas. Frescas, com a sua pitadinha de nortada.

Talvez lá para os lados do coração ou da memória, continua a apetecer-me jogar ao prego.