Reflexões de um cão de matilha
Na água nos refrescávamos e lavávamos. Em qualquer bocado de seiva aplacávamos a sede e, entre os matos e as silveiras, deixámos algumas gotas da nossa, manchas encarnadas que é a cor da vida e dos seus espinhos.
E os nossos dias eram isto. O mundo pertencia-nos aquém e além Tejo. Todos nascemos apontados aos javalis e aos veados, nada mais nos ensinaram senão a correr e enxotá-los... e quantos de nós não perdemos as tripas e os ossos, migados, anavalhados, pelos perseguidos no seu desespero, nesta vastidão e neste galope em que é a incerteza a maior certeza?
Agora nunca mais. Talvez os nossos filhos, se as nossas fémeas continuarem a ser nossas, e entre o instinto e o ensino a arte não se perca.
Agora nunca mais porque os homens, insaciados com a caça maior, resolveram aniquilar os seus refúgios. E nós, que em pó e cinzas nos havemos de transformar, não antes disso nelas queremos abafar. Como também os javardos e os cervídeos decerto galgaram à frente desta inquirição erguida em labaredas e alcançaram, a salvo, a fronteira.
Resta-nos, por isso, um testemunho a deixar ao futuro e aos seus dias. Há de ter sido assim a história do Messias.