"De um escriba inconformado"
O outro dia, um amigo antigo, cumprimentando-me, dirigiu ditos elogiosos a quem chamou «escriba de Famalicão». Coitado, na melhor das intenções, decerto, mas talvez ignorando que os escribas, segundo os dicionários, não sendo «doutores da lei, entre os judeus», eram «escrivães», «copistas» ou, simplesmente, «maus escritores».
Ora, não leccionando eu em parte alguma, muito menos no Médio Oriente, e não me dedicando também ao tabelionato, nesta era de fotocópias e digitalizações – como é público e notório – esse velho amigo, simpaticamente, só podia ir colando nas minhas costas o rótulo de «mau escritor».
Se calhar tem razão, é verdade o que diz. Uma verdade com os espinhos da coroa de Cristo, eventualmente explicável. Se ele me estiver a ler, vai conhecer uma história triste.
E remota. Oriunda dos tempos do Ensino Primário. Ao colégio Ninhos do Pequeninos, que eu frequentava e ao omnipresente borrão escuro a sujar o bolso da minha bata azul. O efeito da temível caneta de tinta permanente, quando a esferográfica não era autorizada por amor à arte de copista – de escriba – em que então nos iniciávamos. Somente para as contas, quero dizer, para a lição de aritmética, nos consentiam a utilização de um lápis; e de vários, coloridos, para a de desenho.
Mas o meu prezado amigo aquilatará o grande bico-de-obra em que se traduzia a caneta e o eterno tinteiro a seu lado nessa longínqua 2ª classe.
Explanando mais: a Meluxa, muito mais expedita, traçava os “pês” com a perninha convexa; a professora ralhava-lhe, queria-a bem esticada, em ângulo agudo com a perna grande; e os “émes” (os “mês”) dela haviam de elevar as suas malotas, jamais encolhê-las. Pois eu cumpria estas regras. Mas infinitamente devagar, sempre com um ou outro grosso pingo de tinta a borratar-me a cópia. Até que lá fui aprendendo aquela ciência e ainda hoje transcrevo dos calhamaços talmúdicos em caneta de tinta permanente. Informe-se o meu preclaro amigo mediante a leitura da Tora…
Mas não desmereço o meritório esforço das minhas empenhadas professoras primárias. A da primeira e segunda classes parecia cavalgada por um portentoso par de óculos, era magra, magríssima, e eu creio, justamente por razões de saúde não chegou a concluir o último destes anos, e foi substituída. Tinha todo o aspecto tísico da Santa Alexandrina de Balazar!
Já a da 3ª classe era brava e rápida como um corisco. Provinha de Vinhais - uma terra então muito mais distante de nós do que Londres ou Paris – e aqui dera à costa, em Famalicão, novinha, loira, adelgada. Bonita, sem dúvida, mas geniosa. Uma distinta jurista de cá, um pouco mais velha do que nós, volta e meia visitava-a no correr das aulas. E se a professora de Vinhais necessitasse se ausentar da sala, confiava-lhe a cana e recomendava – Se fizerem barulho, “rocada” neles, Olga! – De cana em riste, sorrindo, a Olga deixava-nos conversar à vontade e não rocava coisa alguma.
Provavelmente ainda vive, a professora de Vinhais. Talvez na terra dela, decerto reformada, distribuindo “rocadas” pelos seus netos.
O mesmo não direi da mestra da 4ª classe, já então uma senhora idosa, viúva, mãe de sete filhos. Trabalhando arduamente para a sobrevivência da família. Era uma excelente professora. Lembro um dia chegar à aula e vê-la colada ao Jornal de Notícias, então uma folha monumental, – vinha lá, descrito com pormenores mórbidos, fotografia e tudo, o acidente de viação em que, na véspera, morrera um seu irmão! E ela ali, com um dia inteiro de crianças pela frente, e só depois a camioneta do regresso ao Porto…
Histórias assim não nos tornam insensíveis, erráticos ou toldados perante a memória. Claro, falta-me o dom da escrita. Mas ao pé destas desgraças, caro amigo, Oliver Twist era um nababo e Dickens um principiante. Em boa verdade, só alguns anitos depois me chegaria o conhecimento das Letras. Pincelar um poema, condensar um conto, dar coerência a um romance… E resumir tanta coisa, meu considerado amigo, no esparso tempo de uma crónica jornalística. Talvez por isso, amicíssimo, o escriba volte um dia a prolongar este tema.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 13.JUL.2017)