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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Hoje com uma alma por paisagem

João-Afonso Machado, 30.07.17

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O tradicional plantio das árvores é o aspecto mais maçador da liturgia destas irmanações. Reconheço, não é à toa pinto o episódio na mais inexpressiva cor do granito despido ao sol. Na sua absoluta distância do corpo secular e musguento de uma mulher, de uma sereia esculpida pelo cinzel, vá lá.

Mas não esqueço o registo: S. Cipriano (Resende) trouxera já as suas cerejeiras, Gavião (Famalicão) partiu a retribuir com romãzeiras. Tudo ornamentado com o simbolismo próprio destas plantas, cujo não me recordo, mas só pode carregar-se de fraternidade. Depois foi a música e tocou, em acordes de aleluia, a Tuma Sénior de Famalicão (TUSEFA). Conforme o precedente cerimonial, também este transmitiu a confortável ideia de que as árvores morrem de pé.

Poderá não parecer, mas acompanhei estes passos acalorada e solidariamente. É claro, o lanche soube melhor... Em finais de Julho, a quota de altitude de S. Cipriano sobe muitíssimo, o sol aproxima-se da gente perigosamente, fatalmente... E o lanche foi à sombra, bem mastigado, regado, conversado. Há perdizes para aquelas bandas, já prometi um cachorro meu da próxima ninhada.

Em si mesmo, nada isto seria inusual não fora as circunstâncias da geminação entre Gavião e S. Cipriano. A pequena gota e água que, desta última freguesia, um dia resolveu descer e chegar ao Douro; e depois passar o Ave; e, enfim, infiltrar-se num dos seus muitos afluentes. Durante mais de 40 anos da história da vida de um homem - que casou, teve filhos, é avô. Diz-se famalicense por adopção, mas não esquece o berço natal. E consegue este feito curioso de, desde 1982, anualmente,vir juntando duas terrinhas separadas por outras tantas horas de viagem.

A descoberta do ser humano é, em tudo o que nos oferecem aos sentidos, sem dúvida o mais intrigante.

 

 

"O Rali «Boas Férias»"

João-Afonso Machado, 27.07.17

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Há uns tantos anos surgiram os primeiros Audi com tracção às quatro rodas. Precisamente os Audi 4. E o então melhor rali do mundo, o de Portugal, engoliu o pó todo levantado por uma senhora francesa, ciclónica, vencedora, Michelle Mouton, de sua graça.

Impressionava ver a sua máquina, sobretudo nas classificativas em piso térreo. Depois dela, os outros carros iam passando, tropeçando e - talvez duas horas depois – muito a trote, solavancou um Honda Civic, evitando cuidadosamente os buracos cavados pelas águas das chuvas. Um meu amigo ensaiou uma corridinha a pé, a par com tal bólide, e, com toda a educação, pediu lume ao condutor para acender um cigarro. Que me lembre, este último não fumava…

Nada disto seria possível no recente Rali de Famalicão, a que assisti em parcela muito reduzida, no troço realizado entre Mouquim e Jesufrei. Um dos muitos que percorreram diversas freguesias do concelho.

À hora em que escrevo, ignoro quem foi o vencedor. Sei apenas, assisti a parte substancial da passagem dos concorrentes, alguns dos quais recordava de outras aventuras automobilísticas. Penso, essencialmente, em alguns clássicos insistindo em competir, cara a cara, com os mais modernos e acelerados modelos, como se os Anos 70 continuassem agora mesmo. Algo posicionado entre o revivalismo e o “velho” Monte Carlo, um lugar amplo capaz de a todos satisfazer.

Seja como for, tratou-se de uma novidade entre os milheirais, nesta altura já maiores que a gente. Também as vacas do estábulo defronte manifestaram o seu entusiasmo. Muito ouvido pelos circunstantes. Aliás, em bom número, pese embora não haja a certeza de as regras de segurança terem sido escrupulosamente cumpridas.

Mas foi um espectáculo condigno! Quem se desloca diariamente por esses caminhos municipais fora sente verdadeira dificuldade em entender como neles se pode andar tão depressa. Valeu a pena fotografar os participantes, mesmo de um local tão mal escolhido como aquele onde me estacionei.

E depois deste rali, de que faço votos haja mais edições, entramos num outro, mais livre, mais diversificado, a que chamo o das “Boas férias”.

São itinerários à escolha do freguês. Para uns, o mapa acaba já aqui; para outros irá mais longe – talvez mesmo extravasando fronteiras… Eu, este ano aposto no litoral. Nos complexos percursos da Região Centro, sem descurar uma descida ao Sul além Tejo. Porque não?

Dentro das potencialidades da máquina de cada concorrente, do seu conta-quilómetros de algibeira, da capacidade do seu depósito de combustível, a ideia é ir. Ir e descansar, alterar a rotina dos olhares. Sem pressas, sem cronómetro, sem vontade de ganhar mais do que um merecido repouso. O tempo – então em Agosto! – é um foguete. Cá estaremos em breve para trocar impressões sobre a prova. (E, para tantos, sob o desempenho do co-piloto). Até lá, - boas férias!!!

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 27.JUL.2017)

 

 

Reflexões de um cão de matilha

João-Afonso Machado, 26.07.17

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Na água nos refrescávamos e lavávamos. Em qualquer bocado de seiva aplacávamos a sede e, entre os matos e as silveiras, deixámos algumas gotas da nossa, manchas encarnadas que é a cor da vida e dos seus espinhos.

E os nossos dias eram isto. O mundo pertencia-nos aquém e além Tejo. Todos nascemos apontados aos javalis e aos veados, nada mais nos ensinaram senão a correr e enxotá-los... e quantos de nós não perdemos as tripas e os ossos, migados, anavalhados, pelos perseguidos no seu desespero, nesta vastidão e neste galope em que é a incerteza a maior certeza?

Agora nunca mais. Talvez os nossos filhos, se as nossas fémeas continuarem a ser nossas, e entre o instinto e o ensino a arte não se perca.

Agora nunca mais porque os homens, insaciados com a caça maior, resolveram aniquilar os seus refúgios. E nós, que em pó e cinzas nos havemos de transformar, não antes disso nelas queremos abafar. Como também os javardos e os cervídeos decerto galgaram à frente desta inquirição erguida em labaredas e alcançaram, a salvo, a fronteira.

Resta-nos, por isso, um testemunho a deixar ao futuro e aos seus dias. Há de ter sido assim a história do Messias.

 

 

Poeira, motores e a vaca a tossir

João-Afonso Machado, 23.07.17

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Há quanto tempo não se via disto! Seguramente desde o tempo dos bisavós da actual geração bovina. O rali embrenhou-se a altíssima rotação na ruralidade, como uma motosserra no tronco do eucalipto, às vezes soltando os estalos próprios de um morteiro. E o povo acorreu às bermas em magotes de curiosos, peritos de ocasião.

Passaram dezenas de máquinas sob o calor de Julho, algumas com o ar façanhudo de quem ambiciona vencer. Uma tarde quase toda de calão minhoto e muito combustível. Quero dizer: de cerveja.

Uma romaria, afinal, apenas vagamente diferente das tradicionais. 

 

Ruínas ou um "obrigado!"

João-Afonso Machado, 20.07.17

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O Minho corre de fantasmagorias. Vêmo-los ou ouvimo-los, aos fantasmas, descendo as escadas, o cavalo em baixo, à espera, e o lacaio no seu libré, a segurar-lhe o estribo ainda afeito a nem uma palavra de agradecimento. Aliás, o silêncio predomina, somente alguém, costas curvadas, escanzeladas, se encarrega de aparar os buxos.

É muito isto, o Minho, é a história das antigas torres medievais e dos - assim chamados - solares expandidos em torno delas. De gente que se trata - e bem - como parentes. Que mais dizer? Varandas de chão empedrado, economias à espera de milagres, dias ansiando por melhores dias...

E o mais importante: o Minho continua a sê-lo. A História à espera do Futuro para prosseguir. Tudo sempre na fé de uma reconstrução capaz. Mas capaz em tudo, nas obras que os Avós merecem e no "obrigado" aos servidores também.

Muita gente não percebeu, mas foi assim - a tentar explicar isto - que El-Rei D. Carlos perdeu o seu tempo, o seu reinado e a sua própria vida.

 

Em demanda da honra perdida

João-Afonso Machado, 17.07.17

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Duas vezes fomos a Quintiães, Barcelos. Duas vezes ouvimos de muitas bocas nada saberem das ruínas de Aborim, nem onde eram, nem onde tinham sido. Quase sentiamos nos nossos interlocutores medo, desconfiança.

E a cartografia indicava-as ali, naqueles impenetráveis matagais.

Tudo passou a fazer um pouco mais de sentido quando, à segunda tentativa, sob os efeito do calor do meio-dia, um passante nos explicou que o dono de Aborim fazia finca-pé no segredo, impunha-o, tinha "espiões", já lhe haviam roubado a pedra do brazão da torre, ai de quem se aproximasse das suas ruínas! Mas nós, se era só para umas fotografiazinhas, que fossemos por ali, descessemos o carreiro tal, iriamos lá dar com toda a certeza.

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Exceptuando o pormenor de as silvas terem comido o carreiro todo, e o calor me ter dispensado as meias, foi assim mesmo. Depois do eucaliptos, dos pinheiros e dos carvalhos e sobreiros, mimetizado no todo verde circundante, a capela, a seguir a torre, ao lado as sobras do velho solar. O «castelo» de Aborim, como o intitulou o nosso informador!

Para que se saiba, foi uma "honra". Quer dizer, uma terra com tanta importância que a justiça criminal era exercida pelo seu Senhor. 

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A história começa na Idade Média. Não sei se acabou ou se estamos no intervalo do filme. Mas o meu fascínio recaiu todo sobre aquelas sobras de um solar português, envolto em vegetação a modos que tropical, de onde só poderiam saír salteadores ou selvagens e pagãos, marca Indiana Jones. 

 

 

Contra o pessimismo

João-Afonso Machado, 14.07.17

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Seis anos depois, o regresso ao Clube de Caçadores de Matosinhos! Tanta contrariedade pelo meio! Seis anos sem atirar aos pratos, uma quase iniciação na modalidade.

Foi uma "alhada". Com chumbo grosso, à bala, mais certo seria acertar nos aviões.  Sejamos precisos, ao menos no discurso, - em  40 pratos, 4 partidos. O mais, encarregou-se o chão deles.

Já faltam os olhos. Cavalgam as dióptrias. Também a Camilo, no essencial da sua vida. O que  abundou foi a companhia dos velhos amigos - Luís de Sottomayor, Miguel de Sousa Otto, Carlos de Sottomayor (neto). Era o fundamental, eles e o prego no pão a rematar a desgraça.

Breve seja o a nova faena. Se não por mais, pelo meu bravo Jardel que, há seis anos, ainda me acompanhava. A dizer sim, com a cabeça, a cada prato partido. E para conseguir melhor, sob risco de arrumar de vez as espingardas todas. Ou, pelo menos, quase todas.

Eis-me assim nas santas mãos de Deus!

 

 

"De um escriba inconformado"

João-Afonso Machado, 13.07.17

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O outro dia, um amigo antigo, cumprimentando-me, dirigiu ditos elogiosos a quem chamou «escriba de Famalicão». Coitado, na melhor das intenções, decerto, mas talvez ignorando que os escribas, segundo os dicionários, não sendo «doutores da lei, entre os judeus», eram «escrivães», «copistas» ou, simplesmente, «maus escritores».

Ora, não leccionando eu em parte alguma, muito menos no Médio Oriente, e não me dedicando também ao tabelionato, nesta era de fotocópias e digitalizações – como é público e notório – esse velho amigo, simpaticamente, só podia ir colando nas minhas costas o rótulo de «mau escritor».

Se calhar tem razão, é verdade o que diz. Uma verdade com os espinhos da coroa de Cristo, eventualmente explicável. Se ele me estiver a ler, vai conhecer uma história triste.

E remota. Oriunda dos tempos do Ensino Primário. Ao colégio Ninhos do Pequeninos, que eu frequentava e ao omnipresente borrão escuro a sujar o bolso da minha bata azul. O efeito da temível caneta de tinta permanente, quando a esferográfica não era autorizada por amor à arte de copista – de escriba – em que então nos iniciávamos. Somente para as contas, quero dizer, para a lição de aritmética, nos consentiam a utilização de um lápis; e de vários, coloridos, para a de desenho.

Mas o meu prezado amigo aquilatará o grande bico-de-obra em que se traduzia a caneta e o eterno tinteiro a seu lado nessa longínqua 2ª classe.

Explanando mais: a Meluxa, muito mais expedita, traçava os “pês” com a perninha convexa; a professora ralhava-lhe, queria-a bem esticada, em ângulo agudo com a perna grande; e os “émes” (os “mês”) dela haviam de elevar as suas malotas, jamais encolhê-las. Pois eu cumpria estas regras. Mas infinitamente devagar, sempre com um ou outro grosso pingo de tinta a borratar-me a cópia. Até que lá fui aprendendo aquela ciência e ainda hoje transcrevo dos calhamaços talmúdicos em caneta de tinta permanente. Informe-se o meu preclaro amigo mediante a leitura da Tora…

Mas não desmereço o meritório esforço das minhas empenhadas professoras primárias. A da primeira e segunda classes parecia cavalgada por um portentoso par de óculos, era magra, magríssima, e eu creio, justamente por razões de saúde não chegou a concluir o último destes anos, e foi substituída. Tinha todo o aspecto tísico da Santa Alexandrina de Balazar!

Já a da 3ª classe era brava e rápida como um corisco. Provinha de Vinhais - uma terra então muito mais distante de nós do que Londres ou Paris – e aqui dera à costa, em Famalicão, novinha, loira, adelgada. Bonita, sem dúvida, mas geniosa. Uma distinta jurista de cá, um pouco mais velha do que nós, volta e meia visitava-a no correr das aulas. E se a professora de Vinhais necessitasse se ausentar da sala, confiava-lhe a cana e recomendava – Se fizerem barulho, “rocada” neles, Olga! – De cana em riste, sorrindo, a Olga deixava-nos conversar à vontade e não rocava coisa alguma.

Provavelmente ainda vive, a professora de Vinhais. Talvez na terra dela, decerto reformada, distribuindo “rocadas” pelos seus netos.

O mesmo não direi da mestra da 4ª classe, já então uma senhora idosa, viúva, mãe de sete filhos. Trabalhando arduamente para a sobrevivência da família. Era uma excelente professora. Lembro um dia chegar à aula e vê-la colada ao Jornal de Notícias, então uma folha monumental, – vinha lá, descrito com pormenores mórbidos, fotografia e tudo, o acidente de viação em que, na véspera, morrera um seu irmão! E ela ali, com um dia inteiro de crianças pela frente, e só depois a camioneta do regresso ao Porto…

Histórias assim não nos tornam insensíveis, erráticos ou toldados perante a memória. Claro, falta-me o dom da escrita. Mas ao pé destas desgraças, caro amigo, Oliver Twist era um nababo e Dickens um principiante. Em boa verdade, só alguns anitos depois me chegaria o conhecimento das Letras. Pincelar um poema, condensar um conto, dar coerência a um romance… E resumir tanta coisa, meu considerado amigo, no esparso tempo de uma crónica jornalística. Talvez por isso, amicíssimo, o escriba volte um dia a prolongar este tema.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 13.JUL.2017)

 

 

Nada menos do que um horizonte

João-Afonso Machado, 11.07.17

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Era o capítulo do Jardim Zoológico que interessava menos, o laguinho e os barquinhos. Eram, aqueles passeios, excessivamente infantis. Muito mais havia para visitar, aprender, admirar. Coisas que não tinham lugar nos nossos roteiros quotidianos.

Assim também Aveiro se prendeu ao vaivém dos moliceiros - pelos canais da cidade. De onde não saem, esquecida a Ria e as velas enfunadas de outrora. O cliente? - Ainda a criancinha, a necessitar ser entretida um quarto de hora, e o benquisto turista, nacional-domingueiro ou estrangeiro.

Inquiri sobre navegações maiores, de olhos postos nos longos braços da Ria, na sua vastidão, na beleza sem fim das suas margens, na minha máquina fotográfica. Não, a volta era citadina, havia o canal de S. Roque e mais um ou outro rego onde "bolinar". Deixei-me ficar em terra, que é um modo de dizer...

Porque fiquei onde o que é, é. Já era, continuará a ser, sem mistificações. Em bom rigor, os pacóvios dos moliceiros nos canais de Aveiro não visitam - são visitados por quantos, nos passeios das margens, espreitam esses intrépidos aventureiros e assim entretém a tarde, anzolando as turistas engraçadotas.

Mesmo sonhando com a tal travessia até à Torreira ou Salreu, os dias têm outro sabor. E - quem sabe? O que fazer para alcançar senão esperar? No fundo, a busca é a do silêncio ondulado das águas e do ar, onde outras palavras, outras vozes, cumprirão à verdade e o seu sentido.

 

 

Gente realmente importante

João-Afonso Machado, 09.07.17

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Não se fale mal da escuridão das ruas do Porto. Das suas paredes sem brilho, daquelas casas tristes de falar mudo. Há figuras a colori-las nos mais diversos tons. Por exemplo, o cor-de-rosa. De cima a baixo, da cartola aos sapatos brancos, com flor na lapela a condizer. A gente pensa e nada conclui.

Gigolo? Não, não dominava a pose. Pink Panther? Também não. Friz Freleng não a animaria assim. O tal dia do "orgulho gay"? Não fora divulgado e eles são pródigos em publicidade...

Quem seria? Não sei. Sei-o apenas nada incomodado com o espanto causado entre os transeuntes. Parecia esperar uma boleia. A seus pés uma saquinha de cartão carregada imagine-se lá com quê. Impávido. Honra lhe seja feita, era o sol que girava em torno de si, contrariando todas as certezas estabelecidas por Copérnico.

 

 

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