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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Crónica de um massacre

João-Afonso Machado, 30.05.17

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Naquele ponto exacto do arrabalde de Resende atracaram dois autocarros, como se a coisa houvesse sido combinada, tão célere e mortífera foi a descida das hordas transportadas.

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O sol ia baixo. o lendário sardão, ainda entorpecido na humidade, muito a custo logrou esconder-se numa lura entre as pedras. Restava-lhe aguardar a malta ululante enfim se saciasse e voltasse para as suas naves. Deixando atrás de si... já não talvez cerejas, mas uma ou outra cerejeira.

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E, cerejal adentro, o desditoso proprietário suplicava não lhe esgaçassem os ramos das árvores porque sem eles a fruta não tem onde nascer. Algo que faz imenso sentido mas parecia apagar os lumes saqueadores da aguerrida agremiação. Foi necessário negociar o tributo da paz, e a cereja já encaixotada veio a preços de dumping.

Tudo isto ocorreu há muitos séculos, mas ainda hoje os nativos de Resende recordam a famigerada incursão, a razia praticada pelos dois autocarros do Médio Ave na estrada para Lamego. 

 

 

Apanhados (VIII)

João-Afonso Machado, 28.05.17

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Passeava-se em Lamego. Todo sorridente. A antítese dos velhos Mercedes verdes e negros, chiando por quanto eram parafusos, em outros tempos os reis dos táxis. Deslizava a ronronar do motor, e não se fez caro à fotografia.  O mundo mudou, os derradeiros dinossauros morreram. A vista de um, ainda cheio de movimento, é um retrocesso ao filme do King Kong.

Para que não se diga que o impossível existe. O 220 está aí, pacificamente, um herbívoro, uma manhã de domingo apenas mais engalanada. 

 

O smarthfone

João-Afonso Machado, 27.05.17

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Durante os últimos cinco anos não abdiquei dele, do meu Nokia, muito dos bolsos das calças de bombazina e um excelente companheiro de caça. Volta e meia caía ao chão, mas levantava-se sempre, ajeitava o vidro, já todo rachado, e siga para a próxima mensagem, a próxima chamada. Um teclado formidável, quase funcionando às escuras. Certo dia consegui até ele captasse o Facebook! Com imenso ruído, lentíssimo, umas letrinhas minúsculas, tudo a lembrar o tempo das rádios piratas. Foi sol de pouca dura, provavelmente terá caído outra vez e danificado a antena. Senão mal que lhe desse nas pilhas...

Mas para a conversa, para uma boa discussão telefónica, era danado o meu Nokia. Que teclas afinadas, argutas, as suas! Quem se lembrará de lhe quebrar o argumento?

Recentemente, a operadora presenteou-me com um vale de 100 euros, toda insinuante dos seus aparelhos mais sofisticados. Somente, eu não ganho para isso: juntei-lhe umas patacas e vim de lá com um quebra-cabeças desconcertante, o meu smarthfone. Só o nome... - smarthfone! Sem teclado, obrigando a passar nele a polpa do dedo, a picá-lo com as unhas, falhando a pontaria, insistindo até acertar com o ecrã, com o seu sebento e frágil ecrã...

Já aprendi a fazer chamadas. A recebê-las, nem tanto... Tive de voltar à assiduidade do blazer, aos únicos bolsos condignos para esta porcelana caríssima. E vislumbro um mundo inóspito de funcionalidades, ainda inseminarei de música o bluetooth virgem do meu carro, telefonarei com as duas mãos no volante e hei de gozar as delícias Uber. Apenas necessito umas aulinhas, para isso, do meu professor João Maria, 12 anos, meu sobrinho e meu afilhado.

 

Sob as luzes

João-Afonso Machado, 25.05.17

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Essas noites de calor fora de casa perdiam então todo o sentido. Eram uma cedência, um gesto apenas. O passado às vezes rasga de cima a baixo o presente e esvai em sangue o futuro. De tudo fica apenas a interrogação - Porquê?, porquê? - e a certeza de uma resposta demasiadamente tardia. Já sem préstimo algum. Apenas ecoando no lajedo, lenta como o arrastar dos pés, os únicos a perceber, talvez, o freio que não segura o Tempo.

Há ofertas inegáveis, ou doendo muito se negadas. Também há imagens. Relances dentro de nós. Um dia havemos de descobrir a plateia, os camarotes, o primeiro e o segundo balcões, - este espectáculo onde somos actores -  um jeito anímico e animado de tudo ser o que tinha necessariamente de ser. Outra ciência, enfim, a dimensão enorme da alma e do espírito. O númeno, chamava-lhe Kant.

 

 

Gostaria fossemos

João-Afonso Machado, 23.05.17

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Meu caro Amigo: então é certo irmos? Mapa além o dia todo de minudências um concelho inteiro?

Estive lá, recentemente. Quem ia comigo irá também, esta vez, sempre risonha no meu coração. Tal seria até desnecessário alertar, do jeito que o sabes e participas nas minhas usuais horas de recordações.

Mas falemos da viagem. Eu passaria ao lado de Salamonde, demoraria apenas o tempo de alguma fotografia que valesse a pena. E depois prosseguiria logo. Terra adentro, cheiricando freguesias, uma após outra, recanto após recanto, alvoroçando bizarrias como quem enxota galinhas.

Oxalá vamos, meu caro Amigo. Nessa data aguda a que chamamos o trigésimo dia e a tristeza se cura com saudades e um caldo, o que houver para comer e uma caneca de vinho, mais o eterno terceiro lugar à mesa.

Comprenderás eu seja talvez um pouco repetitivo. Ou não... E por isso o sou e insisto, meu caro Amigo: então é certo irmos?

 

 

Remansos da memória

João-Afonso Machado, 21.05.17

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O pasto deu lugar a uma casa de hamburgueres onde as madames saciam os filhos e sobrinhos. Três anos é muito tempo, o poldro fez-se cavalo e partiu. Como também se ignora se a mãe, estimável égua, ainda é viva. O mundo burguês tem coisas destas, rouba-nos o quotidiano enquanto faz salamaleques. Restam-nos, bonitas ou nem tanto, as formas e as imagens onde navegavam então a realidade e os sítios.

 

"Um curto circuito"

João-Afonso Machado, 18.05.17

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Foi uma conversa sentada à mesa do seu restaurante, o Páteo das Figueiras. Tema: um circuito automóvel famalicense. Em uma só palavra: la revolucion. Ou, em quantas mais possamos sonhar, em quantas mais possamos dar uma achega a uma ideia grandiosa, - Famalicão, o polo do desporto automóvel, versão velocidade.

O bate-papo decorreu com o meu amigo Rogério Ferreira, uma autoridade nesta matéria. Houve rotas traçadas, planos plausíveis, a convicção de um maná barato, pronto a consumir.

Entre algumas dicas figurei um futuro de aceleração e o mundo a convergir para cá. Em traços muito amplos: temos a variante poente, temos Antas e as suas tentadoras avenidas novas, por altura do Parque da Devesa, temos a Humberto Delgado e, junto à rotunda do velho Bernardino, será de seguir pela Carlos Bacelar ou em direcção a Moço Morto (salvo seja)? Isto tudo sem complicar itinerários. Como se as possibilidades oscilassem entre o saudoso traçado de Vila do Conde e o mítico e urbano Mónaco.

Há, efectivamente, um vazio a preencher. A Princesa do Ave claudicou. Vila Real é uma pálida imagem do passado. O Estoril – nem sei bem, mas é distante, caro, diria inacessível aos nortenhos. E rampas são rampas. Onde é que a Falperra ultrapassará as emoções dos nossos circuitos de antigamente? Aquelas disputadíssimas competições de automóveis de Turismo e Sport, de Protótipos e monolugares?

Entre o medíocre e o óptimo há um lugar amplo para o bom e uma promessa do excelente. Ganha Famalicão. Na promoção do seu honorável nome, nos benefícios assegurados à economia adjacente: a restauração, a hotelaria, o artesanato e a industria renascente, desde logo a dos bonés da Ferrari. Ganham os famalicenses, por isso. Insisto: quimera ou realidade concretizável?

À partida, o “espeleólogo” Fernando Pessoa descobriu que se o homem sonha, a obra nasce. Uma obra, de resto, sequer indutora de despesas avultadas. Fazer o percurso e ajeitar a segurança de um circuito famalicense há de custar menos do que – terraplanar, expropriar, converter, construir, desconstruir, ou tocar a varinha de condão sobre quantos terrenos viram sapos por aí… Não, a obra não parece mesmo difícil, parece absolutamente alcançável e, num passo à frente, só teria de se firmar entre cópias possíveis e concorrenciais.

Quem recorda Vila do Conde conhece a nostalgia que o seu velho circuito deixou. Há movimentações revivalistas… E, para Vila do Conde, - para a Vila do Conde a sério – há necessariamente a castração resultante da tolice realizada no que chamávamos a “recta do Castelo”, onde hoje não cabe nem uma corrida de skates.

Aqui não seria assim.

Nem seria lugar para a Formula 1… Bastavam as máquinas ao dispor em quantas provas “contra-relógio” se vão realizando nas redondezas. Depois há a arregimentação segundo os grupos e classes próprios. Pairam no meu espírito várias dezenas de veículos, dos mais rápidos àqueles de escape furado e poluente. Com espaço para se ultrapassarem, derraparem, fugirem das mãos dos condutores, capotarem uma ou outra vez. E para uma bancada com lugar cativo dos que fazem a reportagem…

Com o destaque final para os Clássicos: os Escorts, Capris, Minis, Datsuns, Porsches, Autobianchis, Commodors, Simcas, todos sempre preferíveis aos troféus monomarca…

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 18.MAI.2017)

 

 

Ciudad Rodrigo

João-Afonso Machado, 16.05.17

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É quase o princípio das terras sem fim. E não precisa ser enorme para se mostrar cheia de história, amuralhada, posta num morro sempre à cautela. A visita será demorada, são imensos os pormenores.

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Além do castelo, destaca-se a catedral de Santa Maria, um nome sonante de outras eras, de outra solenidade daquele lugar hoje quieto, a espreitar quem passa. Como se as tropas de Napoleão nunca tivessem chacinado por ali.

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Em todo ele, a diferença do ocre a contrastar com o verde em que nascemos e vivemos. Das pedras ilustres aos mais timidos recantos, é a marca de Ciudad Rodrigo - o ocre da sede e dos cercos, do sangue e da resistência.

 

 

Santa Joana Princesa

João-Afonso Machado, 15.05.17

De repente percebe-se o caminho entre a devoção e a vocação. Além de crer, a irmã d' El-Rei D. João II sentiu-se chamada. Assim se tornou dedicada. Tomou o hábito e recolheu-se ao mosteiro de Jesus, em Aveiro.

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Uma vila, aliás, que lhe fora doada pelo seu régio irmão. Mas os frios da clausura prevaleceram sobre o conforto palaciano. A beleza e o esplendor em que repousam os seus restos mortais são o princípio vital da arte oferecida aos olhos do Passado, do Presente e do Futuro.

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E ainda hoje Aveiro lhe pertence. É a sua padroeira. A Princesa sai todos os anos no seu andor, dá uma volta à cidade, escoltada pelos bombeiros locais, ouvem-se as fanfarras (eu gosto de procissões), marcham as confrarias e as ordens religiosas, vislumbra-se o pálio, o Senhor Bispo sob os seus panos, atrás as mais representativas individualidades da terra. E o povo e os foguetes. Em um dia de feriado municipal. Santa Joana (ainda só beatificada) terá dito: «Estimai sobre todas as coisas por andar com a consciência limpa, sempre olhando o fim desta carreira tão incerta».

Provavelmente será uma das mais atinadas ponderações que a História já escutou. Há de vir daí a simplicidade e a serenidade da Princesa no seu andor, entre as gentes da sua terra. 

 

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 13.05.17

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É apenas a ilusão das luzes.No dia seguinte a pedra será outra, dotada de voz, contadora da História. Vai-se-lhe o mistério e os restos  chamam-se a realidade do Passado.

Quantos insucessos nela?

 

 

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