Cruzei-me o outro dia com o Hélder. Reconheci-o, tanto tempo depois. Muitas décadas depois da sua célebre barba “passa piolho”, da inconfundível poupinha que a calvicie levou. Está mais magro, grisalho. E já não tão alto, pela razão simples de eu ter crescido entretanto. Não falámos, porque iria ele lembrar-se de mim, se o normal é o contrário: serem os alunos, os mais novos, a lembrar-se dos mestres, dos mais velhos, das suas reguadas?
Acontece o Hélder não ter sido professor. Era então, na Escola Comercial, um discípulo do saudoso Dr. Mário Victor Oliveira, que lhe pedia colaboração nas actividades extracurriculares da rapaziada mais nova, in casu, os da Telescola. Incumbido certa vez, por altura do Natal ou da Páscoa, de nos acompanhar numa visita à cadeia de Famalicão para entrevistar um presidiário, fazer a manchete do próximo 1+4=5, o jornal de parede do nosso posto telescolar.
O Hélder não teve como dizer não. O que guardei na memória, estando iminente a partida para a cadeia foi, textualmente, este seu comentário – Não sei como vocês se sentem… Pessoalmente, sinto-me à rasca!
Hoje, no lugar dele, decerto estaria no mesmo aperto. Mas, na altura, sequer o percebi. Vivia uma curiosidade imensa de me confrontar com um recluso: jamais vira algum, nunca estivera perto de um criminoso, do seu olhar feroz, assassino. Por isso fomos nós, rapazes, alegre e impacientemente, empurrando o Hélder ladeira acima, para a cabeça do toiro.
Esclareça-se, a cadeia, com os seus altos e inacessíveis muros brancos, no topo do morro sobre a Telescola, há muito encerrou. Ali se instalou, entretanto – e assim morreu o seu mistério – o aquartelamento local da GNR.
Enfim, numa tarde qualquer, então, lá rebocámos o Hélder trepando o íngreme carreiro até ao espesso, quase inamovível, portão da cadeia. Ele, como tropeçando a cada pedra afiada do Gólgota; nós, em triunfal caminhada rumo à luz da Revelação.
Chegados e cumpridas as formalidades, entrámos. É onde se me turvam as águas quietas do passado e arrisco descrever alguma prisão extraída do cinema. Mas que o tal muro intransponível guardava um pátio para recreio dos reclusos, isso é verdade; e que, no interior, umas escadinhas com um corrimão de ferro levavam a um outro piso, também. Um outro piso, acrescente-se, repleto de celas, ia dizer, todas de porta aberta para um corredor, e uns homens de expressão preguiçosa, acomodada, e um cheiro pouco simpático, vagueando por ali em pijama.
Ocorreram conversações preliminares entre o Hélder e os guardas. Talvez avaliassem o encarcerado menos sanguinário e mais propício à nossa entrevista. Não sei, não fora eu o encarregado de tomar notas, e toda a minha atenção se centrava na pessoa dos criminosos, fossem quais fossem os seus crimes.
E creio nos tenha saído na rifa um desses famigerados ladrões de galinhas. Vá lá, para quebrar a monotonia, um perigoso devastador de galinheiros inteiros. Com uma camisola interior (isto agora há de ter outro nome, não me ocorre qual) sem mangas, um ar de indisfarçável consternação, um propósito de regeneração e um paliativo – já faltavam poucos meses para sair.
A conversa teve esse lado desconsolador: o malfeitor pouco tinha para contar da sua vida. (Pilhar galinhas até eu, nas férias…) E ficou-se por ali, estirado no catre, sem um livro, uma revista, um baralho de cartas (e também sem televisão, o que não era de admirar: ele não andava na telescola nem em sua casa, como na minha, haveria electricidade…); apenas com uma mesita de pinho, um banco, a latrina e o lavatório; e um calendário monumental acima do leito, com uma mota de alta cilindrada e, encarrapitada nela, em soutien, uma garota de cilindrada mais alta ainda.
O tal pormenor – a mota, a garota, as respectivas cilindradas – em que todos reparámos, muito mais do que nas monocórdicas historietas do presidiário – se a reportagem o mencionou foi censurado. Eram ainda os tempos do lápis azul… Quem sabe um dia volte a topar o Hélder na rua?! E me dirijo a ele e consigo mais dados sobre este importante capítulo do Direito Penitenciário famalicense…
(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 20.ABR.2017)