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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Machado, Fm

João-Afonso Machado, 26.04.17

Naquele banho de assento em que para os mais novos consistiam os bailes do liceu, entre muita musiqueta da rádio, surgiram inopinadamente os Doors. Conhecia-os bem de outras paragens, de um mundo em absoluto diferente.

Nesse mesmo instante de magia, viu-a chegar do lado mais acalorado do baile, sabe-se lá a caminho de quê...

Pequenote, confrontado, ainda por cima, com os elevados saltos de então, vulgatas de dez centímetros de cortiça, mesmo assim não deixou o siso mandasse - Queres dançar?

Quis. Generosamente, o nariz poisado no cucuruto da cabeça dele. Foram onze minutos de slow no andamento de um carrocel razoavelmente desempenado. When the music's over. (And the life begins, fosse o inglês o seu forte...)

Em tal atrapalhação julgou-se pronto a morrer. Já vivera o bastante. Until the end dançara, ouvira  the scream of the butterfly. Um forte empurrão para o sonho e os simbolistas que vinham aí, no curriculo escolar.

 

 

A gare azul de um dia

João-Afonso Machado, 25.04.17

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Ouviste o silêncio do comboio? Sobe, toma o teu lugar. É assim, sempre. Sequer o relógio da estação tem mostrador ou ponteiros, é um comboio fora dos horários. Mas chega fatalmente, envolto em azul, para a viagem de cada um. De dia ou de noite, na quietude da madrugada. Enchendo toda a plataforma que foi a nossa vida, no despertar de uma luz só nossa entre a escuridão geral. 

Sei-te hesitante, estarei contigo na gare. Tens garantido um assento à janela e a eternidade de uma paisagem em que refrescarás a alma. Um bocadinho de sorte e reencontrar-nos-emos um dia em uma outra estação qualquer. A viagem prosseguirá sempre, chegará a minha vez de embarcar também. Entre tanta gente, talvez com lugar ao teu lado...

Por isso não aceno: não existem despedidas.

 

 

Domingueirices

João-Afonso Machado, 24.04.17

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Disciplinadamente pelo caminho que leva ao coração da freguesia, ao domingo. Sem trelas, claro, já familiarizados com o trânsito. Ele, todo pimpão, a saltitar de cauda erguida, respondendo ao ladrar dos congéneres na passagem. Elas duas mais tranquilas, somente apostadas em pintar de castanho as calças amareladas do presidente da Junta. A quem eu explicava, se há uma prima de Lisboa interessada em saber dos sepultados no jazigo dos meus antepassados (?!), pois não tem mais senão telefonar-me. Qual o mistério, qual a dificuldade?

É um par de quilómetros sobretudo íngreme e uma descida propícia ao trambolhão. Lá em cima, as varandas enchem-se de curiosos, trocam-se cumprimentos com conhecidos de sempre. Na bica do lavadouro público, todos se dessedentam e uma delas, mais afoita, experimenta um mergulho. Finalmente o regresso. Não digo a França, mas envolvendo também saudades, promessas, um lanche de despedida e adeuses. Que não venha tão longe uma próxima visita...

 

 

A pontinha de cinismo

João-Afonso Machado, 22.04.17

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A casa naquele alto, tinha vista para o rio e para o mar. Espreitava a capelinha, ficava perto da religião, e ouvia o trautear dos motores antigos, sempre simpáticos, nada metediços, quase sempre apontados aos mistérios do Sul. A casa era um posto avançado das gentes de cá, um fortim, e um eremitério, o paraíso.

Lembro-a assim, como se todos os dias saísse às compras à sombra das árvores na avenida. Até o Tempo dar nela como na camada de ozono.

Tudo se transformou. A casa viu-se cega e cavalgada por prédios maiores, asfixiantes, e definitivamente apartada do rio e do mar. Enlouqueceu. Deixou-se vender, conheceu muitas mãos no pouco asseio de sucessivos estabelecimentos comerciais. Até desistir e gozar hoje, com justificado cinismo, a atrapalhação dos homens em razão do seu destino naquele lugar que só o diabo quer.

 

 

"A entrevista ao presidiário"

João-Afonso Machado, 20.04.17

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Cruzei-me o outro dia com o Hélder. Reconheci-o, tanto tempo depois. Muitas décadas depois da sua célebre barba “passa piolho”, da inconfundível poupinha que a calvicie levou. Está mais magro, grisalho. E já não tão alto, pela razão simples de eu ter crescido entretanto. Não falámos, porque iria ele lembrar-se de mim, se o normal é o contrário: serem os alunos, os mais novos, a lembrar-se dos mestres, dos mais velhos, das suas reguadas?

Acontece o Hélder não ter sido professor. Era então, na Escola Comercial, um discípulo do saudoso Dr. Mário Victor Oliveira, que lhe pedia colaboração nas actividades extracurriculares da rapaziada mais nova, in casu, os da Telescola. Incumbido certa vez, por altura do Natal ou da Páscoa, de nos acompanhar numa visita à cadeia de Famalicão para entrevistar um presidiário, fazer a manchete do próximo 1+4=5, o jornal de parede do nosso posto telescolar.

O Hélder não teve como dizer não. O que guardei na memória, estando iminente a partida para a cadeia foi, textualmente, este seu comentário – Não sei como vocês se sentem… Pessoalmente, sinto-me à rasca!

Hoje, no lugar dele, decerto estaria no mesmo aperto. Mas, na altura, sequer o percebi. Vivia uma curiosidade imensa de me confrontar com um recluso: jamais vira algum, nunca estivera perto de um criminoso, do seu olhar feroz, assassino. Por isso fomos nós, rapazes, alegre e impacientemente, empurrando o Hélder ladeira acima, para a cabeça do toiro.

Esclareça-se, a cadeia, com os seus altos e inacessíveis muros brancos, no topo do morro sobre a Telescola, há muito encerrou. Ali se instalou, entretanto – e assim morreu o seu mistério – o aquartelamento local da GNR.

Enfim, numa tarde qualquer, então, lá rebocámos o Hélder trepando o íngreme carreiro até ao espesso, quase inamovível, portão da cadeia. Ele, como tropeçando a cada pedra afiada do Gólgota; nós, em triunfal caminhada rumo à luz da Revelação.

Chegados e cumpridas as formalidades, entrámos. É onde se me turvam as águas quietas do passado e arrisco descrever alguma prisão extraída do cinema. Mas que o tal muro intransponível guardava um pátio para recreio dos reclusos, isso é verdade; e que, no interior, umas escadinhas com um corrimão de ferro levavam a um outro piso, também. Um outro piso, acrescente-se, repleto de celas, ia dizer, todas de porta aberta para um corredor, e uns homens de expressão preguiçosa, acomodada, e um cheiro pouco simpático, vagueando por ali em pijama.

Ocorreram conversações preliminares entre o Hélder e os guardas. Talvez avaliassem o encarcerado menos sanguinário e mais propício à nossa entrevista. Não sei, não fora eu o encarregado de tomar notas, e toda a minha atenção se centrava na pessoa dos criminosos, fossem quais fossem os seus crimes.

E creio nos tenha saído na rifa um desses famigerados ladrões de galinhas. Vá lá, para quebrar a monotonia, um perigoso devastador de galinheiros inteiros. Com uma camisola interior (isto agora há de ter outro nome, não me ocorre qual) sem mangas, um ar de indisfarçável consternação, um propósito de regeneração e um paliativo – já faltavam poucos meses para sair.

A conversa teve esse lado desconsolador: o malfeitor pouco tinha para contar da sua vida. (Pilhar galinhas até eu, nas férias…) E ficou-se por ali, estirado no catre, sem um livro, uma revista, um baralho de cartas (e também sem televisão, o que não era de admirar: ele não andava na telescola nem em sua casa, como na minha, haveria electricidade…); apenas com uma mesita de pinho, um banco, a latrina e o lavatório; e um calendário monumental acima do leito, com uma mota de alta cilindrada e, encarrapitada nela, em soutien, uma garota de cilindrada mais alta ainda.

O tal pormenor – a mota, a garota, as respectivas cilindradas – em que todos reparámos, muito mais do que nas monocórdicas historietas do presidiário – se a reportagem o mencionou foi censurado. Eram ainda os tempos do lápis azul… Quem sabe um dia volte a topar o Hélder na rua?! E me dirijo a ele e consigo mais dados sobre este importante capítulo do Direito Penitenciário famalicense…

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 20.ABR.2017)

 

 

 

Vicissitudes

João-Afonso Machado, 17.04.17

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- Chega mais para lá, Cátia, anda lá, chega. (...) Não, não estou a chamar-te gorda, estou simplesmente a dizer para chegares para lá o rabo, é o teu vestido, essa roda toda, deixa a Carolina ajeitar-te a cauda, não vá ela ficar entalada na porta. (...) Isso mesmo, Carolina, cuidado, atenção ao colchete, senão temos decote até à cinta... Isso, isso, enrola tudo, dobra aí aos pés da Cátia. Anda! (...) Claro, Carolina, também vindes connosco, tu e o Martim seguem à frente, ao lado do chofer. Pronto! Parece que podemos partir, caramba! Ah!, se o meu tio tem emprestado o BM antigo íamos mais à larga, Mas, diz-me ele, - ó Fábio, isto não está em condições, era preciso uma pintura nova... - E assim vamos de limusine tamanho mini, a viagem também não é grande, daqui à boda. (...) Tens os braços nus, tens frio? Porra Cátia, também hás de estar sempre a queixar-te! Olha lá se começasses já a suar, o vestido todo molhado!? E tu toda pegajosa no assento!? Dá-me só tempo de fechar o vidro, deixa a malta amiga formar o cortejo... (...) O quê?, nem te oiço com esta gaitada toda! Ó sr. chofer, ande lá com isso, faz o favor! Deixa Cátia, tem calma, ainda tens muito tempo para sentir calor. Martim! Não te descalces, olha-me as tuas meias brancas! (...) É, eu por mim, quando chegar ao restaurante, vai tudo fora: o smoke, o laço, estes colarinhos que se me espetam nos queixos, tudo! Também estou que não me aguento por me ver de mangas arregaçadas. Ok, Carolina, segue quietinha para não estragares o teu penteado.

 

 

Gente de mangas arregaçadas

João-Afonso Machado, 13.04.17

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Ainda não abrirei hoje os portões. Por ora, sentemo-nos nos banquinhos de pedra à entrada, a coberto do sol e do zumbido dos zangões nas glicínias. A gozar uns bocados de pausa pascal.

O trabalho está feito. Éo trabalho de todos os dias no amanho da terra, na lide do gado. Oscilando entre a certeza no futuro (a felicidade da História cumprida) e a estreiteza do horizonte porque os elos da cadeia cedem, é forte a tentação de outros ofícios, outras facilidades.

E é um trabalho a procurar fixar, decerto, a viragem da época a que nos habituámos. Daqui para a frente tudo serão interrogações - esses sinais retorcidos e dolorosos como anzois espetados. Haja esperança... Ficará, pelo menos, o registo escrito dos derradeiros grandes lavradores de Fradelos, a maior freguesia do concelho de V. N. de Famalicão.

 

 

Um desejo chamado cegonhas

João-Afonso Machado, 10.04.17

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Um dia a minha há de ser a terra das cegonhas. Como se, asas abertas, alguém gritasse ensurdecedoramente por essas palmas matraqueadas nos fins de tarde. Pela sua quietude hirta nos ninhos, pelas horas seguidas, sempre iguais, gravadas a preto e branco circulando o céu, petiscando o empastelado verde dos prados e sapais.

Também cá lhes proporcionaremos postes de alta tensão e gravetos para a sua construção civil. Árvores ramalhudas e rios e margens alagadiças rente às auto-estradas. E minhocas, larvas, bichinhos. Em que somos diferentes? Também nós olharemos todos os dias o olhar esquivo, a um tempo assustadiço e confiante, das cegonhas. Aviões franceses, como nos ensinaram, em voos só nossos, caseiros e familiares.

Exactamente como a gente vai carecendo.

 

 

 

"Da metafísica do recreio"

João-Afonso Machado, 06.04.17

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Regresso à Telescola da minha meninice. Às longas tardes de emissões televisivas intervaladas pelas aulas em que a matéria transmitida era desenvolvida no contacto pessoal entre professores e alunos. Já agora, com a grande vantagem em que depois nos apresentávamos no liceu, por exemplo na disciplina de Francês… Mas isso são pormenores… Coisinhas de nada quando comparadas com os – hoje meteóricos – então demorados momentos da nossa vivência dia após dia. Como disse, - longas tardes carregadas de manuais, cadernos e outros acessórios – e um lanche no saco de cada um. Latas de refrigerante, pacotes de leite achocolatado, croissants? Não, apenas pão com (ou sem…) manteiga. Literalmente, a “bucha”. Para que não faltassem as forças no recreio maior, o dos jogos.

Era, muitas vezes, o futebol. Uns vinte minutos em que a claque feminina exultava, revelava-se a peça fundamental da engrenagem. Eu aprendera o lugar espertalhão da proximidade da baliza adversária, à coca de qualquer ressalto de bola e do chuto fulminante, o golo fatal. Como daquela vez, em prélio marcado para uma manhã de sábado, íamos jogar contra os do 1º Ciclo da escola pública, uns sabidões, isto no pelado do F. C. Famalicão, a páginas tantas o Zé Carlos capitaneou a avançada, rematou à figura do Ulisses, o guarda-redes deles, a bola veio para mim, o Ulisses (a jogar descalço) sozinho pela minha frente, a baliza enorme, a emoção também, a perna e o pé parecendo tolhidos, paralisados, tínhamos ido para perder, estava ali a oportunidade única, aquela baliza toda à minha frente, a perna sem sair do sítio, eu podia empatar o jogo, a eternidade dos segundos, o frenesim, força, força…, um pontapé nervosíssimo e a bola, enfim, lá no fundo das redes! Era golo! Goollooooo!

E a corrida, campo fora, de braços abertos, a proeza jamais esquecida. Goolloooo! Resultado final: 1-1. Um brilharete.

(Meses volvidos, em jornada idêntica, regressámos do Seminário comboniano sob uns pesados 18-0. Tudo porque um defesa seminarista resolveu cortar in extremis um centro inteiramente destinado à minha pessoa, posta diante do guarda-redes deles. Não fora assim, o resultado modificar-se-ia para um tangencial 18-1, isso é certo).

Mas o futebol indiscutivelmente perdia para o “mata”. O antepassado português do baseboll americano. Será que ainda se joga hoje, nas nossas escolas, o “mata”? Sem ser na playstation ou no Ipod? Essa disputa mista (masculina e feminina) em dois rectângulos geminados, de área ampla, traçados a calcanhar na terra dos campos que rodeavam o Posto 145 telescolar. Com os “atiradores” postos nas suas extremidades e a bola a cirandar por alto, de uns para os outros (cuidando de que não caísse nas mãos da equipa rival), até ao momento do disparo a matar sobre aquela multidão aquartelada no rectângulo das vítimas a abater. Membro (do team contrário) acertado, membro afastado – morto). Por norma, é óbvio, ficavam para o fim os mais ágeis. Aliás – por norma, também, as mais ágeis. E a beleza do jogo residia muito nisso – em vê-las pulando, encolhendo-se, esquivando-se, tropeçando a fugir às mortais boladas. O “mata” entusiasmava, piscava o olho, despontava cumplicidades, descobria belezas ignoradas, adubava corações amorosos.

Como tantas outras tardes vividas para sempre comigo. Como se agora mesmo mastigasse o meu pão com manteiga, com alguma sorte umas bolachas Maria também. Na espera ansiosa de ser selecionado para mais uma equipa de “mata” e participar naquela balburdia de fugitivos, sempre a fazer figas para aguentar, aguentar, elástico como o Super-Homem (ou o Bip-Bip, vá lá…), eu e ela, os dois resistentes finais…

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 06.ABR.2017)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 03.04.17

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Em um ninho de ano após ano são sempre presentes o pai e a mãe. Não é visivel, mas está lá o álbum de família, a obra tricotada dela, a mãe, o guardião das memórias das crianças. E não há mentiras, porque as fotografias não mentem.

Argumentos em contrário são apenas guiões de peças de teatro...