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É muito o reflexo dominical das manhãs da nossa infância, na recuada era das famílias numerosas. Ocorrem-me agora umas tantas, superlotadas com seis, sete, às vezes oito filhos, mas não as identifico, não vá alguém dessa gente toda não achar graça. O facto residia no seu avultado contributo para o preenchimento de bancos e bancos, na sempre concorrida missa do meio-dia da velha Matriz famalicense.
Precediam-na as das dez e onze e havia ainda a das sete da tarde. Uma cadência hoje impossível de manter, à míngua de sacerdotes e mesmo de fieis. Mas, nesses idos, os horários eram para todos os gostos e o Senhor Arcipreste – felizmente connosco, já centenário, – e os Reverendos Padres Rego e Guimarães, além de esporádicos outros “colegas” (como eles então se referiam entre si e para com terceiros), revezavam-se na celebração da Eucaristia. No conjunto das quais se destacava a do meio-dia, a que afluíam as mais representativas individualidades da Vila.
Nós abancávamos junto à divisória entre a nave e o altar-mor. Por razões óbvias: para não gastarmos a nossa atenção em mais do que o ofício religioso; e porque, habitualmente pouco pontuais (o carro estacionado de qualquer modo, a correria atrás do preceito, as portas fechadas com fé e sem uma volta à chave…), notoriamente pouco pontuais, deparávamos sempre com os bancos da frente, os de mais cobiça, já totalmente ocupados. Ao que acresceria o “estranho” costume de então, a cedência do assento às senhoras ou a cavalheiros idosos. Por isso simplificávamos, de olho nas almofadinhas sobre o degrau de pedra e, com a cabeça encostada às colunas da dita divisória, em quem tinha direito a ocupar o balcão ao lado da porta para a sacristia.
A missa do meio-dia tem um vasto repertório de ocorrências extraordinárias. De uma vez foi um anónimo revoltado, entrando na igreja de supetão a atingir uma imagem de Nossa Senhora com uma moeda de cinco escudos e um linguajar blasfemo, sonoríssimo, de manifestos propósitos delapidadores. Os circunstantes mais próximos petrificados de terror, a liturgia suspendendo a palavra, a Senhora de Fátima sorrindo sempre, não obstante o baque monetário nas suas vestes, e a saída do herege, tão fulgurante quanto a sua chegada. Aquilo fora qualquer mal-entendido de promessas…
De outra vez, o desmaio da velhinha oitocentista (talvez mesmo setecentista) em maré de particular canícula. Toda a assembleia guinou o olhar para a esquerda, de onde veio o estrondo da sua queda provocada pelo delíquio. Achegaram-se os voluntários, estou a vê-la na horizontal, levada em braços, de negro vestida desde os tornozelos à golinha branca, folhada, que lhe escondia o pescoço. Era Verão, os termómetros quase inchavam, o meu missal para crianças principiou a fugir-me das mãos, íamos no Padre-Nosso, eu alagado em suores frios, seria “sugestão”? – decerto era, segredei por auxílio, acabei também cá fora, numa sombra improvisada, a respirar ar quente mas não enclausurado.
E enfim, a coerente saga materialista de um colega de liceu, revolucionário do MRPP, cumprindo a sua “luta de classes” com o burguesismo do próprio pai, que o obrigava a ir à missa. – Qual foi a epístola de hoje? – perguntava-me ele, no termo de três quartos de hora de clandestinidade no Largo 9 de Abril, antes de enfrentar o interrogatório paternal, implacável. Mas, não raro, eu esquecia, já não lembrava, talvez nem tivesse ouvido, em nada lhe podia valer para suavizar esse temido padecimento.
A Matriz da nossa meninice e juventude foi muito mais do que estes salpicos. Erigida no coração da Vila, durante décadas e décadas com os famalicenses se encheu de lágrimas, ora de júbilo, ora de dor. Depois tornou-se pequena, soturna, vinha de longe o propósito de um novo templo mais consentâneo com a modernidade. Simplesmente, a Matriz Antiga – assim agora crismada – jamais poderia vir abaixo ou conhecer a ruína. Daí o entusiasmo com esta sua – digamos… - “ressurreição”.
Não me alongarei sobre o resultado estético final. Deixo um comentário somente: o mármore é-me excessivamente sepulcral, há por ali pormenores de madeira que não esqueci nem revejo… Mas são coisinhas de somenos importância.
Porque importante, sim, é o seu silêncio a falar-nos baixinho. Cada um reza como sabe e pode, e ninguém quererá sopesar a minha ignorância. Mas sentado naqueles bancos, contemplando o Tempo, muita gente boa regressa ali comigo. Gente de paz que como tal gostará de ser lembrada e trazida ao nosso coração. Irmãos nossos, rostos a avivarem-se, Cristo na Cruz, Cristo, sobretudo, de mãos estendidas para que nos aproximemos, todos em Si. É, é preciso ouvir o silêncio da matriz Antiga a falar-nos baixinho.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 09.MAR.2017)