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Vivíamos muito longe do mar. Quaisquer quinze quilómetros de esquecimento no curso do ano inteiro. Talvez não fosse assim com um ou outro, desses já motorizados e frequentadores das delícias e requebros femininos – gulosos! – porventura existentes lá para as bandas da Póvoa. Será o que escrevo pura imaginação, ou ingenuidade minha… Mas é a memória que trago dos invernos antigos e dos verões na aldeia, de todo o vagar das estações navegando bem ao largo da palavra “praia”.
O mar parecia então da mais absoluta inutilidade. Era improdutivo, bravio e indomesticável, assustador e cheio de água salgada. Bom para permanecer distante das desgraças que as suas ondas ameaçavam. Daí, com certeza, o aspecto desolado da EN 206, se calhar não mais do que um ocasional regresso a casa dos residentes em Outiz, Cavalões ou Gondifelos. Ocorre-me o dia de um Março de antanho em que desafiei o Manel para uma pescaria na Azurara. Os preparativos, meticulosamente levados a cabo de véspera, incluíam, além das canas e demais material, o farnel, os agasalhos e uma partida à boleia ainda antes do despontar do dia. Estão ao ver toda essa tralha e os dois pescadores de dedo esticado para a estrada junto da antiga Lavoura… O olhar incrédulo dos condutores dos raríssimos automóveis e camionetas em trânsito… E o adiantado da hora em que começámos a espetar lascas de sardinha (também parte integrante da nossa bagagem) na pontinha dos anzois.
É, o mar não atraía os famalicenses. Havia outros chamarizes. Mesmo no tempo quente, as romarias, – gostosamente suadas – a incontornável peregrinação ao S. Bento da Porta Aberta, a fresca sob as ramadas de americano, com um valente caneco do dito a ajudar. Todavia, o mar de Agosto dispunha sempre de um dia de atenção por parte da generalidade das famílias de cá e arredores.
Um dia especial, de aventura e excentricidade. Também ele precedido do maior planeamento, como agora se traçam aos sábados as linhas de ataque a um hipermercado.
Porque à cabeça de todas as preocupações, a subsistência alimentar: uma vez mais a azáfama culinária, os bolinhos de bacalhau, o arroz de frango ou as coxas dele, uma broa fresca e chouriço em fartura. Tudo acomodado numa seira firme, de onde emergia a cabeça do garrafão. E a saída madrugadora, a interminável viagem – a EN 206 transfigurava-se esses domingos estivais – numa caminheta do João Carlos Soares, as que faziam a carreira para a Póvoa. Com alguma fortuna, ninguém padeceria de enjoos o percurso inteiro. E no seu termo, a Póvoa do Mar, muito mais do que a “de Varzim”. Do “Mar” exclamado numa sílaba arrastada, deslizante como as ondas no areal. Assim os domingos poveiros se tornaram lendários e arqueológicos, tal a quantidade de ossos chuchados na pré-história dos sacos do lixo e de alguns outros salutares costumes. Um vasto território de dinossauros penosos, dirão os paleontólogos de amanhã.
Era, pois, uma Póvoa campesina, essa Póvoa dominical. Cheia de viúvas de negro, do lenço da cabeça às saias abaixo do joelho, e de camisas brancas masculinas, as mangas arregaçadas e o chapéu de abas a proteger do sol. Deixando às vezes escapar um pedacinho de pele leitosa, dessa que nem a dormir se despia… A ganhar coragem para descer à beira-mar, molhar os pés entre gritinhos de frio e excitação, de algum medo, havia de ser o Adamastor a rosnar sob aquela espuma da água na rebentação. E a fugir numa corridinha cá para cima, nada como uma talhada de melancia para refrescar do calor.
Não valerá a pena esmiuçar contrastes com a praia dos nossos dias e os seus biquínis que mesmo as viúvas já adoptaram. E onde já não ficam para o dia seguinte ossitos, espinhas ou cascas, mas o espaço disponível para a gente estender a tolha não cessa de decrescer. Importa é assinalar a nossa aproximação à costa em momentos tão inauditos como os das tempestades de inverno. Gente do interior que se desloca para gozar o espectáculo do mar em fúria!
A mobilidade é maior, as vias de comunicação céleres e convidativas, a informação constante (as ondas galgam já o pontão da foz, alerta vermelho…). Afinal há beleza nas águas encabritadas, no uivo do vento! E a máquina fotográfica (o telemóvel) ajuda a prolongar, a trazer para casa, a sua força e os seus efeitos.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 09.FEV.2017)