Por aí...
É com os olhos que devoramos o Tempo, sempre esguio e camuflado. A fugir-nos entre os dedos como as enguias, na duplicidade de cores dos camaleões. Somos, cada um, os únicos permanecendo estáticos a vida inteira.
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A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo
A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo
É com os olhos que devoramos o Tempo, sempre esguio e camuflado. A fugir-nos entre os dedos como as enguias, na duplicidade de cores dos camaleões. Somos, cada um, os únicos permanecendo estáticos a vida inteira.
publicado às 08:08
Quando um dia D. Sebastião não voltar,
desfeito o nó derradeiro da neblina
e a humidade das letras
sob um sol sem eco ou vontade,
nesse dia seco a desilusão
mole trejeito de saudade
há de tiranizar
uma terra pequenina,
o gasto coração
de quem só diz é maldade!,
de quem escreve a realidade
em palavras vis
como vagueia perdida a menina
que assinamos identidade.
(Mas onde estais, Majestade?)
publicado às 16:17
Quando o Liceu, aí por 1975, revolucionou – como estava então na moda… - os horários das aulas e determinou o seu início às oito e meia matinais, ensinou-me sobretudo o que era o frio. Um frio a sério, escorregadio do gelo e branco da geada que se perpetuava nos lugares sombrios até à madrugada seguinte; e das dores com que me castigava os pés, trespassando facilmente as botas e as peúgas, ou adormentava as mãos, incapazes de segurarem uma chávena, uma esferográfica, de voltarem a página do caderno.
O meu despertar era, por isso, solitário e enregelado. Num movimento titânico, quase instantâneo, em que despia o pijama e me entrapava com os condimentos todos, incluindo o cachecol e as luvas, debaixo de um casaco à época na moda, de gosto mais do que duvidoso, excessivo na sua gola de tecido sintético a imitar pele, dizíamos nós, de pele de um jac…, um bicho não nomeável aqui, aparentado com os jacarés. O passo seguinte era o pequeno-almoço – uma pratada de papas Nestum (as melhores eram as de mel ou de arroz), feitas na hora em leite frio, e um pão com manteiga ou, quando o rei fazia anos, o croissant preservado num tupperware. Muita substância acalentando uma manhã que se prolongaria até tarde…
E finalmente o contacto com o frio da escuridão. Tacteando para não cair nele, ainda mais refinado junto ao solo. Que o dissessem os pés… Por ali fora, rumo à caminheta e às aulas.
A caminheta é, justamente, a grande perda nacional. Desde logo porque já não passa naquelas bandas; depois porque, mesmo que passasse, se chamaria autocarro. Uma vulgaridade qualquer!
Não, até nesse tempo a caminheta era obsoleta. Numerada, cabia-lhe o “1” da frota do Abílio da Costa Moreira, por ser a mais antiga, logo a mais vocacionada para aqueles caminhos de cabras. Talvez ainda se lembrem dela: do seu longo, afocinhado, capot, do seu corpo curto, à medida do caudal de passageiros, que se contavam pelos dedos das mãos. Os assentos eram em verga e o cobrador desnecessário. Até à Vila o bilhete custava 25 tostões, mas se eu marchasse (acelerado, para aquecer) até Tarrio e a apanhasse lá, seriam já só 15, pouparia um quinto de um maço de cigarros. Devido ao horário altamente flutuante, subsistia sempre o risco da caminheta me apanhar durante essa travessia. Não que o motorista não parasse a um sinal meu; já não recordo é a fronteira a partir da qual os 25 passavam a 15 tostões – creio que também ela dependia muito dos dias…
Todavia, normalmente manietado pela preguiça, fazia o meu trajecto até casa da Idalina, logo ali, onde a vida nascia mais cedo e, no fora e dentro das lides com o gado, a lareira ardia já. Ao longe, avistável da porta da cozinha, o traçado do caminho municipal (ainda um profundo desconhecedor do alcatrão), Mouquim adiante até Lemenhe.
Assim, com os olhos nele e as mãos em cima do fogo, me prevenia da passagem da caminheta para cima, para a Costa, destinada à Senhora do Carmo. Não porque a visse, antes por lhe detectar os seus inusitados faróis acesos bruxuleando vagarosamente, ao ritmo das covas naquela rota de almocreves. Depois, lição da experiência, era dar-lhe um quarto de hora e começar a descer para a paragem na Castanheira. Acaso ocorresse algum cataclismo, alguma erupção vulcânica, e a caminheta se adiantasse – denunciando-se sempre pelos faróis lá em cima, junto à fundição, pois que remédio!, - senão uma corridinha na escuridão. Pequeno seria sempre o tombo, quando comparado com o abalo telúrico causador de tal descompasso.
Ainda tentei repescar o nome do motorista, sempre o mesmo, recatado, paciente (a porta da caminheta era perra, à vezes o trinco custava abrir…), de poucas palavras. Mas não consegui, a memória escondeu-o. Ficou somente a sonoridade das molas da caminheta naquele piso escalavrado, a sua marcha lenta. Três ou quatro caras, sempre as mesmas, da Senhora do Carmo até à Vila. Os cromados gelados por toda a parte onde puséssemos as mãos, o desconforto dos assentos…
Depois a vida guinou para outras bandas, ainda dei com a “1” do Abílio, já em adiantado estado de decomposição, nas suas oficinas à Avenida agora 25 de Abril: espreitava-a, cheio de nostalgia, do muro para baixo, onde ela jazia, e tornava lá, a verter uma lágrima por essa saudosa companhia dos meus 15 anos.
Longe vai o tempo. O que me causa uma espantosa impressão é o frio ser então todos os dias dos invernos, mas não haver alertas “amarelos” e “laranjas”, nem brigadas espalhadas pelo País em socorro dos necessitados. Seria por inexistência de sem-abrigos ou, tão-só, por desconhecimento nosso de que se sofria e morria de hipotermia?
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 26.JAN.2017)
publicado às 00:41
Quando li, de Mia Couto, «pescar é um verbo muito longo. Tão longo e fundo como um rio», ouvi finalmente, em palavras assim simples, o segredo fascinante das águas. Tudo o que somos nós mesmos, a nossa fonte e a nossa natureza. Não há como não explicar deste modo a minha cana de pesca aos dez anos, um olhar sempre curioso da margem para o mistério de onde vimos e onde não sobrevivemos. O enigma da massa líquida, o ânimo de não ressequirmos, «verbo muito longo», muito, pouco ou nada em movimento.
A expressão da acção. A sua distância e profundidade, a descoberta do berço - «tão longo e tão fundo como um rio» - e da nossa identidade.
Por isso, o mar, os lagos, os deltas e os riachos. Com toda a relatividade que pode equivaler um atum a uma truta. Por isso, também. o justo temor das albufeiras, precipícios de sinal contrário em que vagueiam restos antigos de vida, talvez o fantasma do arvoredo de outrora, ávidos da ignorância ou da ingenuidade dos que neles imergem. A enrodilhar-se-lhes nas vestes.. Desorientando o peixe que é o sustento da carne. Matando aldeias e os seus mortos e hortas e culturas, sejam estas o pão para que forem.
«Pescar é um verbo muito longo». Decerto como "espelhar", na infinidade dos seus reflexos.
publicado às 17:42
Das naves terrestres construidas para transportar famílias, esta seria, no seu tempo, a maior. Talvez proporcional às infindas rotas americanas, blindada contra a neve nórdica, por cá simplesmente espantosa.
Por isso talvez a Volvo tenha pensado duas vezes e hoje os seus modelos sejam menos exuberantes. Mas é sempre curioso assistir ao trânsito de um "960" pelas nossas vielas fora. A gritar: - Arreda! Arreda! - para a História.
publicado às 17:15
O Julho tórrido trazia uma corrente lenta mas andante e um burro na margem a pastar, absolutamente incompatibilizado com os canideos. Deu um fim de tarde de algumas bogas, passeio à parte, andar por terras de Bragança é sempre o que é. Isto no rio Igrejas, Gimonde.
Janeiro de 2017. Temperaturas recorde de frio - oito graus negativos. Não há notícia de mortes nem de vítimas de hipotermia. Simplesmente, o Igrejas congelou, são imagens da televisão: o rio não anda, quedou-se, a sua travessia sai-se como um carreiro entre o tojo.
A ponte românica e os seus pilares são agora faraónicos. Porque também o Tempo (vendo bem), como as águas, parou. Cronos embatucou finalmente, quase uma vulgar carripana ante a passagem-de-nível de cancelas fechadas!
Vitória!!!
(Ainda que impossibilitado de fotografar o Igrejas solidificado e Cronos à espera do comboio...)
publicado às 00:35
Há dias assim. Dias escritos a tinta negra, nunca sei bem se de tristeza se por saudade daqueles bancos duros da escola, a carteira com um buraco para o tinteiro e a professora armada de régua a premiar os erros no ditado. Dias que lentamente convergiam, anos depois, para Agosto e um mundo novo, longe de casa, sem horas para chegar a casa, povoados de barcos e redes trazidas à praia pelos bois, a chapinhar de carapaus e sardinhas.
E repletos de amendoins na esplanada do café, de uns finos já maduros, uns cigarritos pelo meio, à noite a música do clube - Doors, Otis Redding, Leonard Cohen, Pink Floyd... - o despontar dos namoricos e, àquela velocidade, o macabro aproximar do fim de Agosto. De um novo ciclo principiando até ao Agosto seguinte.
Como superávamos essa espera entre Agosto e Agosto? Com a telefonia a pilhas, à luz dos candeeiros a petróleo. E com muitas cartas, duas e três e quatro cartas semanais, escritas e recebidas, avidamente lidas, descontando sempre os meses já vencidos, traçados na agenda com pausinhos de presidiário na parede da cela, soprando prá frente os meses em falta e sonhando com algum momento mágico do Quando o telefone toca. Como daquela vez única em que alguém pediu o Riders on the Storm (tempestade, prenúncio de morte? Até assustava ouvir...) dos Doors, lágrimas quase, a carta eufórica, emocionada, do dia seguinte, quase uma pauta, pelo menos um poema em inglês macarrónico; as idas correntes à discoteca da vila, a ver se surgira algo mais do que os singles do costume, musica foleira, fados, folclore e assim.
O Tempo demorava-se o que agora gostaríamos demorasse. Janeiro era menos de metade do percurso ainda. Hoje é já um pé nas festividades pascais... E a tinta negra desta escrita bem pode ser o rasto fininho das gravatas lutuosas das Sextas-feiras Santas de antigamente.
publicado às 00:34
Muito à distância das sempre dispensáveis lições de moral, ou de catastróficas visões do mundo, absolutamente desprovido de qualquer sintomatologia profética, eu olho para as (ou “os”?) SMS’s e para o Facebook e pergunto-me pelo português. Pelo léxico português, pela gramática portuguesa. Por Portugal. Alguém escreveu um dia, «a nossa Pátria é a nossa Língua» e por tudo me sinto perdido no mapa, às voltas com estes pensares de jarreta que conquistam toda a minha concordância.
De algum modo, penso eu, as palavras escritas, assim como as faladas, servem para exprimir as nossas ideias, emoções, estados de alma. Sejam elas então contundentes, ásperas ou macias e sorridentes, consoante o que nos vai cá dentro. Que os telegramas, só em situações de urgência.
Todo este longo introito para explicar uma minha descoberta recente, um punhado generoso de cartas inéditas de Camilo Castelo Branco. Cartas que permaneceram guardadas no silêncio de uma arca durante mais de um século e, assim respiraram a luz do dia, logo revelaram os bons e os maus momentos do seu signatário. Como ele sabia troçar, criticar, chorar, como o grande escritor, através das suas missivas, pode em qualquer tempo surgir diante de nós – exactamente: como se estivesse diante de nós! – e, num instante de bom humor, rematar a conversa dizendo - «não sei se V. Ex.cia faz colecção de caras feias. Aí vai uma com que pode abrir a sua galeria» - que é um bocado de ironia incapaz de caber num (numa?) SMS, insisto, ou como ninguém hoje redigiria um comentário no Facebook, a propósito de um tormento qualquer, na elegância com que a sua pena marcou no papel - «a dor sincera primeiro que as cerimónias da convenção» - ou, mais indignadamente, - «dir-se-ia que eu pretendo saldar contas com frases» - outro meio de deixar claro não gostar lhe chamassem caloteiro.
Depois, num breve bosquejo pelo Camilo desalentado, a gente lê - «quando D. Ana Plácido agradecer aos generosos e caritativos cavalheiros que rodearam o leito do seu filho moribundo, enviará o seu cartão aos médicos; e as suas lágrimas aos amigos» - e não demora a perceber a diferença entre o fraseado de circunstância e a beleza com que mesmo durante as maiores dores justamente as poderemos manifestar. Assim também no tocante à revolta (Camilo escrevia de profissão, o seu contrato era com os leitores dos seus livros…), ao desabafo, afinal, por trás da chalaça, - «quando escrevi essa futilidade que o fez rir tinha a cabeça amparada na mão esquerda enquanto a outra traçava as imortais asneiras»…
O que muito ajuda a perceber, Camilo na vida essencialmente sofreu, muito cedo foi aprendendo a lidar com o sofrimento. Baixou os braços cansado, reconheceu o seu peso - «há apenas uma coisa que chega a ser perfeita nesta vida – é a desgraça». E, face a face com a desgraça, - «enquanto puder chorar, fuja de quem queira estancar-lhe as lágrimas. Olhe que não tem outro desafogo».
Gritava-lhe bem alto a sua experiência, mesmo a sua solidão. Por isso se despediu na carta que escrevia a alguém da sua confiança - «abraça-o com o coração o seu velho amigo» - ficando nós a pensar, hoje em dia como é possível abraçar-se com o coração, quem se lembraria de se abraçar assim, quando agora vai tudo corrido a “abrç’s” e “bjnhos”.
«São os bigodes da alma a tingir-se» - constatou Camilo de si mesmo. Pois também sejam comigo talvez assim. Só nunca me ocorreria a imagem do genial mestre das palavras. Esta e tantas outras estampadas na sua obra, na sua correspondência, o reflexo da sua tristeza e causticidade. E esses documentos, o eco fiel dos seus sentimentos, coligi-os num livrito recente que intitulei Memórias Redivivas. Publicidade e modéstia à parte, diz quem leu, gostou. Eu gostei sobretudo de confirmar, é pela sua obra que os homens se imortalizam. Qual Camilo, cinco quartos de século depois.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 12.JAN.2013)
publicado às 00:31
O Tempo agora é um instante. Chegámos quase na mesma altura, talvez em muito nos tenhamos precipitado. Mas as intenções eram as melhores, saibamos defendê-las, o Tempo, sempre imprevisível, arde em fogo lento de desencontros e reencontros, não há como aceitar a sua realidade e sobreviver. Quero dizer, indo acima do simples viver.
Assim te aventuraste a saltá-lo mesmo sem antes experimentares nadar.
Quatro anos depois voltámos a essa fogueira inicial. Num pulo imensamente maior. Voando acima das águas e do granito, chegando outra vez ao lado de lá.
Entretanto, encharcados, arranhados, chamuscados, seja como for, conseguimos. Aqui estás, tu e a tua parelha. Ainda não estamos todos, até um dia que virá. E virá - virá sim! - enquanto arder o fogo do Tempo nas águas frias ou ferventes onde calejam as mãos que são a nossa vontade.
publicado às 18:26
Foi um relâmpago a iluminar-me a ignorância. O Mercedes 450SL são estas linhas, um retrato elegante dos Anos 70 e uma conversa em que nunca participei. Como será o seu interior, o seu pensar? Decerto requintado, conhecedor, provido de uma arte muito avante da retórica pura. Talvez um dia possa comprová-lo pessoalmente...
publicado às 12:11