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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Por aí...

João-Afonso Machado, 30.12.16

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Talvez não tenhas reparado no tamanho dos teus olhos. Também eu passei mais de cinquenta anos distraído, de tão atento à força dos teus remos.

 

"O Natal na rua"

João-Afonso Machado, 29.12.16

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A semana prossegue. Vem de longos anos e atravessa a “Vila” como antigamente a estrada nacional: com muito movimento, tanta animação.

Nesse tempo a estrada nacional quase cortava Famalicão em duas fatias que não eram de bolo-rei. O trânsito ia progredindo para o caos, os sinaleiros da R. Santo António endoidavam. Do que se tratava? Apenas do fluxo automóvel entre o Porto e Braga… Havia camiões monumentais subindo ou descendo a Adriano Pinto Basto. E sobrava então o espaço aéreo para umas armações de madeira colorida e iluminada, lá no alto, onde esses camiões mais carregados não chegassem e não estilhaçassem. Em volta da Fundação Cupertino, os transeuntes cruzavam-se uns com os outros, de um modo geral apressadamente – se calhar com a conversa tolhida pelo ruído dos motores! – enquanto à porta da Moderna, do Vieira de Castro, da Mouzinho, do Bezerra, se formavam longas filas para a doçaria natalícia.

Tantos anos volvidos, quão diferente o cenário! Sem pesados e a conter os ligeiros… Artérias quase pedonais, os prédios livres das cangas enfeitadas de lâmpadas, e os passeios onde há cameleiras ou laranjeiras com a novidade dos leds a serpentearem pelos troncos acima. Fazendo um conjunto mais acolhedor e mais próximo, menos frio.

(Muito se podia escrever sobre o frio do Natal, creio eu não mais do que um condimento do bacalhau da consoada, um aroma das suas rabanadas. Como imaginar – pelo menos entre nós, minhotos, - um Natal de mangas arregaçadas, a t-shirt em vez do cachecol?)

Menos frio, dizia, porque vivido em mais harmonia das gentes. Nas ruas, onde ainda se combate a impessoalidade da massificação do comércio, e todos os passos ganham outro sentido. (E os espaços também.) Onde triunfa a espontaneidade e quaisquer acenos ou sorrisos são inteiramente desprovidos do que não seja Natal. Esta, uma lição só para os mais desatentos a passar em claro.

Por isso me banqueteei os últimos dias entre o Mercado e o Jardim D. Maria II. Assisti à partida do comboio da criançada, ao vaivém das atrelagens do Sr. Ferreira, sempre carregadinhas delas. Depois fui ao artesanato, presenteei a posteridade com umas fotografias e aceitei a oferta e provei um magnífico licor de funcho que me organizou a digestão em menos de nada – até repeti a dose, já a prevenir a do jantar… Havia ainda a novidade da patinagem no gelo, um carrocel e, insisto, muita e muita gente que não se deixou ficar em casa. E os meus perdigueiros! Também aos meus perdigueiros chegou na rua a simpatia e o sorriso de quem passava.

Salutarmente, não já nos idos de uma vida tão pacata quanto assoberbada por longos carreiros de trânsito que lhe formigavam e maceravam a espinha dorsal, - sapientemente Famalicão vem reforçando o seu centro de vida, a praça, o lugar público de todos os famalicenses; desejavelmente - mantendo o ano inteiro o tal “espírito natalício”…

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 29.DEZ.2016)

 

 

Ali em baixo, o Sr. da Agonia

João-Afonso Machado, 26.12.16

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Teria sido uma rota da ladroagem, a sombra vitalícia das torres a caminho da minha casa. Os dias todos a mesma ameaça consumada a que vai valendo o Sr. da Agonia, o culto de algumas hortas esquecidas por ali. E todos nós, os de sub-condição, subitamente amaciados na sua imagem perdida. 

Talvez Unamuno explique: «Agonia quer dizer luta. Agoniza quem vive a lutar». De mãos limpas e memória magoada, o olhar cansado mas sempre orgulhoso, a vida vai ninguém sabe para onde. «A recordação é uma sombra do futuro, tanto quanto a esperança o é do passado» - para voltar a Unamuno.

A sobrevivência é o instinto, muito mais do que uma opção consciente. O resto fica para a justiça de que a História se encarrega: e as  provas? - apenas documentais; a decisão? - a cargo de um juri em que todos, sem excepção, serão jurados.

 

 

Contornando a aldeia

João-Afonso Machado, 23.12.16

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Dois minutos! A esta hora, o dia há de estar dois minutos maior. A sua grandeza primaveril ainda não se vê na ecografia mas já nasceu. Caminhamos, inverno que seja, crescemos de novo no rumo de outra vez horizontes mais amplos.

Não tardará avistaremos luz. Vem. Sei do que não falo nem vislumbro no meu percurso. Contornei a aldeia em festa, esse era um momento alheio. Não me sai da cabeça a reconciliação no silêncio. Há ainda muito frio pela frente mas, garanto, a próxima ecografia revelará um dia de força e vida. A Biblia chamou-lhe Homem.

 

 

Mixomatose no Parque

João-Afonso Machado, 19.12.16

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Passava um pouco do meio-dia e o sol com o céu todo por sua conta. O movimento no Parque da Devesa, animadíssimo: adultos e crianças, muita gente a correr, bicicletas, cães, brincadeiras... O costume, num domingo bem disposto.

E junto ao carreiro pavimentado, da parte de cima, o coelhito, criação deste ano. Aninhado, depois lento, depois desorientado. Porque estava cego.

A cadela não teve dificuldade em apanhá-lo. E, ao perto, a confirmação do que ao longe parecia evidente: a moléstia já lhe atacava os olhos; as pálpebras avermelhadas, inchadas, uma película lentamente a cobrir-lhe a vista... É a mixomatose.

Deixará de comer, definhará e nem forças terá para se mexer. E, o que é pior: a doença é terrivelmente contagiosa entre os demais da espécie. Estão muito em risco, os coelhos do Parque.

Peguei no desgraçado bicho e avistei-me com um vigilante. Expliquei tudo. Disse-me que falaria com os seus colegas e elaborariam «um relatório». Depois seria com os «engenheiros »... Oxalá estes se lembrem de auscultar os veterinários!

 

 

O cruzeiro ainda no adeus ao porto

João-Afonso Machado, 18.12.16

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Transformou-se numa ideia fixa - aparar a barba no barbeiro a bordo. Outras acorrem, enchem a maré: a ida às compras, a bebida no bar (em qual deles não sei), o galo de Barcelos infalível na lojinha (uma entre tantas...) de souvenirs... E a velha mochila da tropa holandesa a descompassar com o malório geral.

Será o meu cruzeiro, o meu baptismo de paquetes, a designação a fugir-me para "vapor", e eu comigo às cotoveladas na antiguidade dos termos. Para não destoar na fileira dos meninos de branco vestidos e velinha contrita nas mãos.

Entrará a máquina fotográfica em incandescência? Não digo não. De Milão e Génova a Corfu é o mundo inteiro. Até Veneza, aportando na Croácia e no Montenegro, canetas todas da minha vida!, shopping mareante, águas quietas, quais águas quietas?, afã de oito dias de tempestuosos sentidos!

Ponto final. Assim cavalgaria a horda inteira para a carnificina. Vamos por partes, o cavalo a resfolegar ainda sequer foi montado. A ideia é de ontem.

 

 

"A Casa das Bolachas"

João-Afonso Machado, 15.12.16

ORGÃOS DE ESTALINE.JPGQuando a manápula entrava boião adentro, os nossos olhos arregalavam. Como se esperassem o fatal desfecho de um “Órgão de Estaline”. Duas fieiras de quatro bocas oblíquas. História política à parte – chega de a esbranquiçar… – era na mesma uma bateria, mas desses obuses só explodiam rebuçados e bombons. E explodiam sempre poucos, muito aquém da sonhada montanha (dos ditos rebuçados e bombons), que paria apenas ratinhos. Era assim em lugares múltiplos, no Lopes & Costa também.

Essa memorável instituição – o Lopes & Costa – está bastante próxima no tempo, ainda, para que ora se avance mais no seu memorial. Facto é – encerrou. E, três anos volvidos, vamos dar com um rebento dela no Shopping Town – a Casa das Bolachas.

Derivemos um pouco. Até aos idos da minha geração na Telescola. Quando uma certa menina, sobre o bastante moreno, se apresentou ao serviço envergando uma bata com o fatal bordado - «CO», de Conceição Oliveira, as iniciais no bolso da lapela. O seu irremediável passaporte para um nome só – Có – que ultrapassou as fronteiras da Vila e se instalou na Cidade. A Có!. Ad tunc et semper.

E ao par de uma outra actividade também concebida pela Có - ainda no Shopping Town, um espaço de apoio a idosos e incapacitados – restou vagar para esta nova iniciativa. Na loja em frente, menor, mas com mais ladrilhos de marmelada. A tal Casa das Bolachas! Coisas boas e obrigantes de fatal desobriga às voltas no Parque da Devesa, por causa dos açúcares…

Do que apurei, a ideia foi, sobretudo, criar um veículo comercial para os comestíveis artesanais famalicenses. Por exemplo das empresas Vieira de Castro e Estrela Doce, além daquelas estritamente familiares. É bom, retenhamos a ideia, - ninguém perde trazendo para ali as suas compotas ou os seus biscoitos; e a Caixa de Bolachas vai enchendo e distribuindo, com o que não empobrece também.

Já Famalicão, por um lado e o outro, vai servindo os famalicenses. Entre “portas” da Vila. Como até há pouco no supermercado do Sr. Costa, foram tantas décadas, tanta gente, tanta amizade… (Soube agora, uma alegria, o Sr. Alberto é bem vivo e de boa saúde!) Ora tudo isto, não me ocorre algum empório hipertudo que se lhe equivalha. Contabilizando: bolachas e afins, marmeladas, compotas, produtos minhotos e durienses, acabo de chegar ao moscatel de Favaios e ao Vinho do Porto, despertaram-me o palato – como é fino dizer – as geleias dos ditos e de alvarinho também; e dou enfim com os melhores biscoitos do mundo, os de Valongo, a revolver na memória as muitas sacadas deles que comi, antes de tornar-viagem. Se por cá já se cozinha o leitão da Bairrada, como não fabricar ainda os biscoitos de Valongo?

Vale a pena, a Caixa de Bolachas. Mesmo porque vale também a pena não deixar cair o Shopping Town, já que ele lá está. Sejam povoados os seus corredores, fujamos todos das catacumbas, respire-se ar puro, luz e movimento. A Caixa de Bolachas nasceu a pensar assim, uma loja “à antiga” no que se pretende uma actualidade sempre bem esperta. E “à antiga” no seu mobiliário – as estantes, a mesinha e as cadeiras algo “five o’clock tea” – e no conforto de uma conversa animada, uns sabores sossegadamente caseiros.

Mas sobretudo a bomboneira, ou rebuçadeira, ou o que lhe queiram chamar. Eu apelidei-a de “Órgão de Estaline” relembrando a nossa voracidade de miúdos, quando 25 tostões tantos rebuçados eram e pareciam sempre tão poucos; e ali se acumulavam, também, milhões de bombons embrulhados em cores múltiplas, com recheio, pequenos, maneirinhos, aptos a serem lambuzados às pazadas… Mas nunca nos portávamos suficiente bem para merecermos tal prémio na sua plenitude… Essa a pacata invencibilidade do único aceitável “Órgão de Estaline”, agora mesmo com os mesmos palatos (sempre “fino”…) e a gente a dar conta de que, afinal, nem tudo é velhice e uma mão cheia de caramelos – ou de biscoitos de Valongo… - ainda marcha num instante. 

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 15.DEZ.2016)

 

 

Camilo despacha a encomenda

João-Afonso Machado, 12.12.16

COM A AUTORIDADE.JPGCamilo não gosta do cinzento. Por quanto é cor que não sai do sítio, nada diz ou diz apenas, não cumpre nem o deixa distinguir o "cívico" do carteiro. O primeiro um maçador, sempre de mal com o mundo (como se não bastassem já os males do mundo!); o segundo uma ave constante, uma garça chegando (lamentavelmente cinzenta...) de longo bico a baloiçar novidades. Camilo precisa avidamente de as saber, de as tomar em forma de palavras escritas.

Por isso a sua correspondência. O compacto volume da sua incontrolável ironia, dos repentes de sarcasmo com que repele afrontas, gestos enganosos, ingratidões. A pena é a sua bengala, antes de ser o seu ganha-pão. É também o prémio com que agracia os fieis.

MEMÓRIAS - CAPA E CONTRACAPA.JPGDesceu hoje a Vila Nova, Camilo, com mais uma encomenda para o editor. Provas revistas, rabiscado o prefácio, na verdade um posfácio, o remate final... Pelo caminho,o "cívico" e as suas eternas querelas, alguém bulhara em outra praça qualquer. Sim, desta vez era o "cívico", sem margem para dúvida, agora o carteiro somente arribará amanhã, com mais vida no bico, sacola aberta a despejar sobrescritos, o diário desafio à sua letra miudinha, bem encarreirada, falante, que apenas a cegueira um dia há de calar.

 

 

Imaculada

João-Afonso Machado, 08.12.16

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Hoje visitá-La-ei. Não que Ela não esteja sempre presente, mas hoje é como se Lhe levasse um ramo de flores. Há procissão e escuteiros e bombeiros, mais o pálio. Não sei, sou novo aqui, talvez em dificuldades de sentir entre a multidão.

Trago-A no peito, o último cuidado da minha Avó. Eram ambas. E o dogma foi ficando fora do pensamento, elevou-se o hino e, quando oiço - "Salvé nobre Padroeira...", é o arrepio, as lágrimas súbitas, não sei bem explicar o mais. Talvez assim deva ser, sobrenaturalmente, neste seu Dia em que as palavras são vãs, embora ouvidas com clareza e uma mão sobre a minha cabeça.

No fundo é um sussurro - "Força!"; e toda a comoção que nem cá dentro cabe ("Salvé nobre Padroeira..."), são os passos hoje mais sonoros da sempre Imaculada Rainha de Portugal, eternamente terna. E justa. 

 

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