Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Nos pinaculos de Antas"

João-Afonso Machado, 30.11.16

IMG_9625.JPG

Uma obra, penso eu, que será sempre polémica. E para dar o tom, principiando, um redondel com a mais virginal atitude de um lugar tauromáquico. Assim como se a visse do ângulo obtuso de uma passagem aérea e herética. Dispensando o indispensável: a visita in loco.

A freguesia de S. Tiago de Antas inaugurou domingo, nas imediações do velho templo românico, a sua nova igreja paroquial. Entre o antigo e o actual um intenso choque arquitectónico. Com as sondagens altamente desfavoráveis à novidade. Como o tal primeiro vislumbre também.

Mas estive lá na véspera da solenidade. Quando o tempo dormia calmo, sem formigueiros automóveis, sem ruído, e o céu alto. Esse céu propendendo para o “cê” maiúsculo que o torna muito maior.

A visão, cá em baixo, dá para pensar. Do multissecular granito do mosteiro ao caiado de agora vão muitas dezenas de metros de homenagem e respeito. Há largueza em todo o redor. E estamos num cimo, alheados talvez da rotunda e das ruas que nela convergem. Algo esquinada, uma bouça; descendo um pouco uma casa de arcaboiço, simpática, pedra e décadas e telha no telhado. Como se tudo constituísse o esforço dos homens para um “Monte das Oliveiras” naquele topo de Antas. Possivelmente o seu ponto orográfico mais perto de Deus, se faz sentido falar assim.

Há ali muito vagar para estacionamento… Ou para a asneira… Se o homo famalicensis se abalança a construir (plausivelmente em altura) nas imediações, decerto conseguirá – sobretudo – um novo conflito entre a Teologia e Darwin. Com uma vitória de Pirro (do cientista?) apenas, porque também de boas vistas e contemplação vivemos nós. A deixar como está, está bem. Haverá somente a lamentar, gozando essa paisagem desenhada na vastidão do nada urbanístico e do sussurro dos eucaliptos (qualquer coisa acima do alcatrão das rodovias), o verdadeiro punhal cravado – literalmente – nas costas da vetusta igreja românica pela mão ágil do Seminário.

(São lembranças torpes, as dos idos em que a equipa de futebol dos seminaristas nos premiava – a nós, os da telescola – com fortes cabazadas de golos nos jogos que disputávamos…)

Porque não há direito dois edifícios tão longe no tempo e tão perto no espaço. Essa é que é essa. A outra – ainda evitável – é de poente a nascente um fundo apainelado de prédios, uma sobreposição vivencial esbatendo o andar dos séculos e o recolhimento das gerações que o preenchem. Fará o que escrevo sentido? Há quem diga sim, há quem acrescente nunca se sabe onde podem chegar os negócios. Ficam, por isso, sobrando nuvens a negrejar o “Monte das Oliveiras” de Antas…

 

(P.S. A cerimónia da inauguração do templo, presidida por Sua Ex.cia Reverendíssima o Arcebispo Primaz foi bonita e participada por muitíssimos.)

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 30.NOV.2016)

 

 

Domingo sem zelo, perdiz com pêlo

João-Afonso Machado, 27.11.16

MARRADO.JPG

Infalível, a velha sabedoria popular. Sofrida nessas horas após o quentinho da cama, a preguiça é o que é. Quando os carros dos outros vão chegado para um almoço mais merecido e a gente se arrepende do horário de leitura, num domingo em que o tempo não soa certo. A culpa, já nos habituámos, recai sempre sobre a chuva, e as dores sobre a tranquilidade dos gatos. Porque os cães não usam relógio nem se regulam pelo boletim meteorológico.

É a vida, o peso da vida, o turbilhão dos quilos, a bola de neve e a avalanche poderosíssima, a catástrofe. O fim do mundo. Em suma, um espectáculo que não se recomenda aos espíritos mais sensíveis, ali em baixo, na rua, bem à vista da varanda onde preguiçam os nossos dias.

Uma desgraça, é o que é. Lá diz o ditado. E a poesia de António Nobre também. Só mais nada.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 25.11.16

LUSITANO.JPG

Só os desatentos não têm medo. E só daqui as gerações te desabituarás da poeira dos caminhos e da boa pedra das calçadas. Então firmar-se-ão outra vez as tuas orelhas.

 

O alcaide e o filho, o tempo de Faria

João-Afonso Machado, 23.11.16

RUINAS.JPG

É um quadro em calções, sentado numa secretária de pau, o tampo descendente com uma cavidade para os lápis. Está lá o alcaide de Faria e o seu nome, Nuno Gonçalves, ainda ecoa no entusiasmo erguido pela sua braveza. Está aos pés da muralha e cobre-o a sua cota de malha; apenas a veste com a cruz portuguesa denota rasgos, denuncia maus-tratos. Desgrenhado, heroico, contorce-se manietado pelos espanhóis, quatro ou cinco ou seis ou sete.

Apesar de tal incómodo, o diálogo com o filho, espreitando das ameias, é vivo, empolgado, dramático. Generoso, a dar o ser por El-Rei. Arde o cheiro das labaredas e da fumarada em redor. E de vozes derradeiras, contraditórias: - Ide! - Aguardai! - Sustei! - Erguei!... - Lutai! - Lutai! - A Pátria brada o seu desnorte conjugado no imperativo - talvez mais no implorativo... - de verbos belicistas e filiais.

A aula terminava sem uma ponta de misericórdia, como um simples lugar da História. Um episódio carregado de deveres cumpridos em que o sangue eram só palavras de circunstância. O gume das espadas inimigas esquecia o resto e apenas suscitava raiva - a nossa raiva, vestindo calções...

Agora, diante das ruinas do castelo, tento sentir Nuno Gonçalves pronto a morrer. Explicando ao filho o seu sacrifício; e este cumprindo a vontade do pai, a Pátria sublimando a angústia de ambos.

Impossível. O cerrado dos sobreiros, a dispersão das pedras, ou me insensibilizou ou será do seu musguento silêncio esta minha franca convicção de que ali residirá sempre uma lenda. 

 

 

Camilo na véspera

João-Afonso Machado, 22.11.16

MEMÓRIAS - CAPA E CONTRACAPA.JPGSobre o tampo da secretária, no castanho genuíno da madeira, Camilo remexe a papelada e pensa nos últimos acertos, pouco mais do que vírgulas em pausas esquecidas. Documentou-se: há ilustrações, epístolas de antanho, alfarrábios, no silêncio habitual do seu recanto, uma nesga de luz para a vida cá fora. Tudo - os dias também - o contrário da aparência dos olhares e dos gestos.

SECRETÁRIA.JPG

Por isso observa e escreve sobre por quem não é observado. As mãos nervosas com que amontoa as suas fontes não denunciam o fim cansado do seu propósito: a resma escrita vai já encaminhada. Essa é sempre a maior angústia.

E Camilo pousa a pena e só agora repara, o relógio da parede deu horas, não seria pior um pouco de cera e brilho sobre o tampo a arfar da secretária. A testemunha da verdade da sua escrita e do sentimento com que ela interpretou os papeis velhos e mesmo amiúde os citou.

Sai à rua Camilo. É lá onde se mede o sucesso das suas histórias. O lugar da sua espera ansiosa.

 

 

Apanhados (II)

João-Afonso Machado, 20.11.16

500 (VNF).JPG

Creio que foi o perdigueiro. Ergueu a cabeça e estacou, de pata içada, vendo-o aproximar. Eram quase da mesma cor. Voava ainda no tempo da tranquilidade, assim entrou na rotunda, e o primeiro tiro acertou-lhe a uma distância excessiva; prosseguindo, o segundo foi em cheio, o Fiat 500 curvava quase uma miniatura, inocente, impoluente. Houve mais um terceiro disparo, o derradeiro, muito à queima-roupa, que lhe danificou a crista, deixando um sinal de trânsito mesmo em cima dela. 

O Fiat 500 lembrou-me Roma. Tinha-os lá às centenas, fáceis de estacionar em tantas ruazinhas encolhidas. Já em Famalicão a sua presença é só esporádica. Mas também em Roma as basilicas são às mãos-cheias, enquanto Famalicão se basta com as igrejas matrizes (a nova e a velha). Foi um bom cobro, rapaz! - comentei eu depois com o perdigueiro.

 

Camilo ainda mais próximo

João-Afonso Machado, 18.11.16

CAPA MOMENTOS REDIVIVOS.jpg

Foram meses de escrita sobre a escrita epistolar, ainda essa sempre bem escrita. Camilo, eterno sofredor, quer por curiosidade, quer pelo incómodo dos mosquitos letrados (ou nem isso..), quer da saúde, a sua e a dos seus. Não há alegria nas cartas de Camilo, mas surpreendem palavras próximas, tão amigas, de amigos seus, sobre serem com frequência vizinhos também. Camilo nas intermitências da solidão.

E, de repente, é já o sangue a falar, a aproximar-se querendo escrever distante, rigoroso. Quase em dilema, o exílio de Camilo tem parecenças, suscita solidariedade, acresce a saudade de quando a estupidez não era reinante. Há um grito imenso de revolta e Camilo triunfa, finalmente conhecido e compreendido.

Um mês antes da sua morte, clamando um desespero que é de justiça ouvir e sentir com ele, Camilo escreve a sua derradeira missiva desejando felicidades a um dos amigos. Decorre um século de bolor e sótão. Gosto de uma voz que se reergue sozinha, como se o sangue fosse o antigo sangue forte e sempre presente. Por isso as memórias redivivas e bem vincadas.

 

 

"Curvando de memória em Outiz"

João-Afonso Machado, 17.11.16

APEADEIRO.JPG

Aquele apeadeiro – ou melhor, o que resta dele – impressiona. Abandonado, destelhado, vivendo apenas da esperança numas paredes que possam ainda aguardar algum destino condigno, - o apeadeiro de Outiz conserva somente o cheiro queimado das velhas locomotivas a carvão da Linha da Póvoa; e o do inesquecível almoço em casa do Sr. Costa, num longínquo domingo de batida às raposas. Irão lá mais de 40 anos.

O Sr. Costa, que Deus tem, era caçador e fiscal do leite. Funcionário, se não me baralha o cronómetro, na Suil, a cooperativa de então, e visitador das explorações pecuárias dos cooperantes. Assim o conheci, eu rapazote dos meus 15, já armado de uma muito antiga cal. 16 de canos tronchados, com que incansavelmente perseguia os últimos coelhos bravos da freguesia. Sabendo disso, logo o Sr. Costa me envidou o amável convite para a dita batida, repasto incluído. A idade, a falta de documentos – deixasse esses pormenores por sua conta… Destarte, a manhã de caça foi vivida na maior emoção, a alma quase soçobrando ao peso de dezenas de raposas que, a todo o instante, podiam sair ao carreirinho onde fui posto, e afinal ninguém viu. Teria sido nos montes mais para as bandas de Cavalões? Já não me situo, confesso. Talvez à conta dos filetes e da salada russa, da vitela assada, logo após, à mesa do Sr. Costa, desses pitéus ainda a desculpar o fracasso da sequente tarde venatória.

Em suma, um domingo eterno, a hospitaleira vivenda nesse caminho de terra batida (hoje naturalmente alcatroado) umas centenas de metros além do apeadeiro de Outiz. Ao som do vetusto comboio da Linha da Póvoa, resfolegando, respirando em dificuldade, cambaleando defronte.

Rotas de antigamente. Perigosíssimas no Verão, tal a densidade dos garridos automóveis de matrícula francesa. Da ameaça terrível que representavam, bem patente nessas suas pinturas de guerra; do galope infrene de tantas dezenas de cavalos cavalgados à louca. E Vila do Conde, quando se lhe dava para não se mexer debaixo do nevoeiro cerrado, tornava-se depressiva, opressora. A suscitar sempre a mesma ideia alternativa: e se fossemos até Famalicão de bicicleta?

Por bicicleta entenda-se o quadruplo ou o quíntuplo do peso das actuais preciosidades ciclísticas. E a ausência de mudanças, a frequência de alguns males incorrigíveis como – no caso da minha – uma enorme folga num pedal, um persistente ruído a cada rotação e a inocultável sensação do falso em que o pé se precipitava. Tudo ao longo de 30 km, de porta a porta, com retorno programado para depois do almoço. Ora, trinta vezes dois igual a sessenta. Aos dezasseis. Nessa idade levezinha a que, se calhar, tanto devo a saúde que, graças a Deus, ainda vou mantendo.

Houve, pelo meio, algumas idas à valeta. Não por efeito de quedas, antes como derradeiro recurso de esquiva a essas danadas cavalgaduras pintalgadas no mais absoluto psicadelismo. Mas o horário era sempre escrupulosamente cumprido: uma hora para cá, três quartos para lá. E a diferença no relógio manifestava-se em Outiz. Precisamente a partir do apeadeiro.

Porquê? Porque ele marcava o início dos 5 km em caracol, sempre a subir até Brufe. (E o pedal a girar em notas desafinadas, uma a cada volta, o pé submergindo num vão, a músculo da perna cansado de tantas rasteiras…) Eram os fatais 5 km de Outiz e a obsessão de os levar de uma empreitada só, um ponto de honra em quantos comigo se tinham abalançado à estrada.

Quatro décadas depois, inquiro-me a quem terei emprestado essas pernas de 1976. Agora que elas tanta falta me fazem, com a rodovia livre dessas tribos belicistas em cavalgadas assassinas, Outiz tranquila, silenciosa, e um mar de recordações a embalar na descida para Vila do Conde, a descer embalando sempre, como que se espraiando, enfim, num sussurro de espuma aos pés do erodido apeadeiro. Desculpar-me-ão a delonga. Pior: esta evidência de um exórdio na velhice.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 17.NOV.2016)

 

 

A propósito de populismos

João-Afonso Machado, 14.11.16

HITLER.JPGEstas manifestações anti-imigração, em si mesmo violentas e buscando sempre a agressão fisica - por um lado; o despudor de uns tantos gestores públicos em negócios privados com o Governo de Costa, sob o sorriso complacente do puritanismo comunista-trotskista - por outro:

Tudo me faz lembrar quão mais inteligente é o radicalismo da esquerda do que o de ("alegadamente"...) direita - enquanto este se sindicaliza nos ginásios, aquele ginastica-se nos sindicatos.

 

 

Pág. 1/2