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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Apanhados (I)

João-Afonso Machado, 30.10.16

F. ANGLIA.JPG

Harry Potter voando na fatídica "curva Bernardino". Ao volante do seu Ford Anglia, o "Mentiroso", uma grelha cromada, americanizadamente promissora, a desilusão da traseira quase enfiada num buraco. Ou talvez o "Basófias", se não vamos já num Mondego de divagações. Não, o encontro foi bastante mais a norte, é só atentar no epíteto da curva famigerada. Tem três velocidades, apenas, a primeira arranca em força, a terceira leva-nos no Tempo para antes e suscita engasgos quanto ao depois. O ideal é mantê-lo em segunda, sempre durante. No presente.

 

 

Scotland, 2009

João-Afonso Machado, 27.10.16

PLANALTO.jpgDuncan não se cala. ((Estou na Escócia, estou eu só.) Sem nada me explicar sobre este 2009, nem mesmo sobre Nessie. Ainda assim, percorro o ano dos bons ou maus sonhos. (?) Não sei bem, não me lembro, vou numa carrinha atulhada de gente cuja nacionalidade não é nítida. Mas alguém falta. Ou não? Ainda viajam dois ou três nomes de localidades que embarcaram nas paragens lá. E a voz de Duncan, a palração de Duncan, a aceleração verbal de Duncan. Logo de manhã desisti de pedalar ao lado da sua condução, marcho solitário, com o olhar apenas. Sozinho, Escócia fora, com 2009, sem Nessie até, porque nem sempre quem nós queremos  não está onde está.

Irei aos poucos tentando preencher vazios. (2009.) Num primeiro esforço, as derradeiras horas da tarde em planuras sem fim à vista e Duncan - que alívio! - momentaneamente sem mais para dizer. É quando nas alturas do feno e do gado escocês tudo parece uma fábula e as lebres saltarilham nos pastos como um bando poisado de estorninhos.

Já é um início.

 

 

Falando sozinho

João-Afonso Machado, 23.10.16

PINHAL.JPGO meu ritmo a seu dono. Prefiro a deriva controlada pela mão segura do carreiro de regresso. No mar vermelho dos pinheiros e a guia adiante, de nariz em riste a sondar os ventos. Muito senhora dos seus ´sentidos. É nesta conversa entre os dois que nunca sucederia aquele frente a frente de há bocado, cinco minutos a reter a lebre acoitada no mato, e eu atento à disciplina da formatura, desperdiçando esse maná, o que de mim não terá pensado e dito a minha guia, a minha guarda avançada?

Agora sobre a caruma dos pinheiros, já em final de manhã, a derradeira esperança nas moitas e nos molhos de lenha, no silêncio em que nos entendemos e ela, a minha guia, talvez me perdoe esta alvorada, estas horas todas, a trabalheira e o banho de chuva, tanto tiro e nada, rigorosamente nada, pendurado no cinto.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 23.10.16

FALESIA.JPG

Assim empobreci. Remando palavras que não descobri, perdidas na imensidão do oceano. Desafortunada expedição de onde voltei sem meios nem modos de exprimir sensações e pensamentos. Nem, tão-pouco, de mais remar as palavras que diriam tudo isso.

 

 

"Caçarelhos de Calisto"

João-Afonso Machado, 20.10.16

CAMILO E OS SEUS.JPG

De quando a minha última ida a Miranda do Douro? Já não sei fazer contas, mas ainda não havia auto-estradas: o IP4 morria em Amarante e o resto era o dia todo, a manhã e a tarde muito bem aproveitadas, não fosse chegarmos a desoras do espantoso jantar que íamos já saboreando pelo caminho. O da posta bovina mais famosa do mundo. Tudo isto em vésperas de caçada às perdizes e, acaso o Sr. Silva ou o Sr. Rebelo de S. Tiago da Cruz estivessem lendo esta página, recordariam os nossos encontros naquela estalagem, um certo vinho palhete, o serão a esmoer o repasto e o destino a separar, logo ao alvorecer, os muitos grupos que dali partiam para os seus lugares de aposta numa gloriosa jornada de caça.

Agora surgiu a oportunidade de voltar a Miranda e trazê-la a tiracolo, numas dúzias de fotografias. De rever as escarpas do Douro, a cidade pós-fronteiras – cheia de ademanes turísticos – o Menino Jesus da Cartolinha, o toco da praça-forte que sobreviveu à terrífica explosão do paiol setecentista. E tudo isto graças ao velho camiliano morgado, o pagode do Calisto Elói.

Calisto Elói deixou de ser anjo, caiu não sei exactamente de que conjectura, faz agora 150 anos. Comemorando a data, a Casa de Camilo quis levar-nos a conhecer a remota origem que Camilo lhe atribuiu – Caçarelhos, no concelho de Vimioso. Assim largaram de Ceide, no passado sábado, dois autocarros para três horas de viagem até ao destino.

Caçarelhos, diga-se, não guarda vestígios do que nunca lá existiu, o morgadio de Agra de Freima, dos Barbudas do Calisto. Nada há na pacata terrinha que nos aproxime, sequer, de alguma fonte arquitectónica, bem escavada na pedra, rica cantaria e heráldica condizente, onde Camilo bebesse os traços da vida do seu personagem. Não, Caçarelhos é infinitamente mais simples e quieta. Tem agricultura porque tem tractores junto às casas e porque se presume que esses tractores hão de ser conduzidos por mãos humanas. No resto, é a ausência de crianças, muita ruina de habitações, e algumas vozes que se animam enormemente na conversação com visitantes ou sentadas à mesa do café.

(Não contando, é claro, as suas varandas e telheiros, as escadinhas de acesso aos grandes observatórios do globo, aqueles onde o cronómetro não atazana os espíritos e o céu ainda escurece carregado de estrelas.)

De modo que Caçarelhos significou um agradável passeio. Eu juraria ter fotografado a morgada D. Teodora de Figueiroa (para quem não sabe, a legítima Senhora de Calisto Elói) à janela, não fora a moldura em alumínio da fotografia a contrariar o formidável feito. Como quer que seja, uma vez mais a simpatia e a hospitalidade dos transmontanos, num só breve trecho de palavras cruzadas. E de Caçarelhos seguimos então a Miranda.

Isto tudo porque A Queda de um Anjo foi editada pela Casa de Camilo também em língua mirandesa. Outra homenagem ao morgado de Agra de Freima… A cerimónia da apresentação do livro decorreu no Salão Nobre dos Paços do Concelho, o Senhor Presidente da Câmara mirandense envergou a “capa de honras” (uma peça majestosa em burel), o tradutor Alfredo Cameirão exprimiu-se nesse misto de leonês e português e os famalicenses dali seguiram a visitar a Sé, as ruas da cidade. Como refiro, hoje um pacífico local de convívio entre os de cá e os do lado de lá da fronteira.

Não sei se ainda há caça em Miranda. Talvez dela só tenham ficado boas memórias. O mesmo vale para Caçarelhos: uma aldeia pitoresca, inócua, em que Camilo pode à vontade plantar um personagem seu, remoto, provinciano, letrado até ao séc. XVII, antagonizando o mundanismo lisboeta. Ao qual, enfim, se rendeu. Estas jornadas prosseguem, aliás, na Capital, com nova mostra do livro em mirandês em S. Bento. Lastimando tanto não me avistar com a bela Ifigénia, deixarei de lado a Assembleia da República, equivalendo-me muito à primeira edição do velho Calisto.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 20.OUT.2016)

 

 

Miranda do Douro

João-Afonso Machado, 17.10.16

DOIRO.JPGAinda não será o Doiro de Torga, é mais estreito e comprimido, mas o Penedo Amarelo é uma reluzente pertença dos espanhois para regalo dos portugueses. Estamos em Miranda, espreguiçando um fim de tarde no mirante sobre o rio estático, no fundo da ravina, como se fora já do alcance do som.

RUA PEDONAL.JPG

Exactamente o oposto do que vai sucedendo algo adiante, onde o comércio de tudo um pouco floresce e agita os passantes. Fala-se português e castelhano quase meio por meio, e a diferença chama-se o orgulho mirandês, que é a lingua só de lá.

SÉ.JPGDepois voltamos a lugares de desalento e revolta, voltamos ao dia em que a cabeça da Diocese foi transferida de Miranda do Douro para Bragança, como se a Sé pudesse ser levada numa padiola para outro sítio. Daqui só saiu a sacristia, dizem os mirandenses...

RUINA.JPGE vamos ainda à nunca reedificada praça forte, ouvindo agora mesmo o eco da explosão do paiol na setecentista Guerra dos Sete Anos. Eu gosto das torres mais altas, inteiras ou não, em que a bandeira da República ficou esquecida algures cá pelo chão. As terras, sofrendo muitos revezes, calham bastante serem eternas. 

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 15.10.16

IGREJA E CEMITÉRIO.JPGContinuam vivendo, não sei se estão a ver. Continuam a sua oração e juro tê-los ouvido cantar no adro da igreja. Mesmo não sendo domingo.

 

 

Ainda dormia de manhã a noite

João-Afonso Machado, 14.10.16

ESQUINA.JPGA noite, acentuadamente a sul, tinha formas mouriscas, apenas sussurros de albornoz esquivo e quase uma lembrança de adagas. Era uma noite caiada de fresco, desnivelada nos passos em esquinas súbitas. Estranhamente despovoada de sombras sob lampiões aqui e acolá, no quieto das vielas. E obedientemente calada, nada se manifestaram vozes daqueles recantos que muitos diriam de mais além dos mares.

A noite, afinal, foi o possível inconformado de um dia nascido já longe.

 

 

A vitela que não sabia nadar

João-Afonso Machado, 12.10.16

PRAIA.JPG

Esse Verão fui à praia a Trás-os-Montes, tentando fugir aos 40º que me atormentavam a existência. E a praia lá estava, muito bem composta de banhistas, embarcações de recreio, até das famigeradas esplanadas. Admirei o areal, a serenidade das águas notoriamente limpas. Aliás, famosas nas conversas de pescadores pela fartura de lúcios e outras combativas espécies. Mas em tal hora de canícula era apenas a praia que chamava por mim. Respondi-lhe já descalço, quase a caminho.

Ia pesado. - Porquê tão pesado? - inquiri-me, desconfiando não ser apenas da praga rogada pelo termómetro.

Foi quando me ocorreu a vitela que há uma hora transportava nas entranhas. A tenrinha vitela muito às postas, quase inteira, que marchara ao almoço embrulhada em batatas a murro e grelos. Refrescada em vinho branco de uma garrafa gélida a que as mãos se agarravam e o corpo também. Pois a ternurenta vitela continuava remexendo cá dentro, decerto assustada por não saber nadar.

Por ela suportei o braseiro e não mergulhei nas apelativas águas do Azibo. Ainda há pouco ouvira uma qualquer sinistra história de alguém a morrer afogado tentando salvar outrém. Não, não me apetecia o naufrágio deste frágil bote carregado de gado e hortícolas. Pobre vitela! Sequer havia boia onde ela coubesse! Antes permanecer em terra assando, estorricando, em lume incandescente.                                                                            

 

Pinheiros, onde estão?

João-Afonso Machado, 08.10.16

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Andar as freguesias é ir ao lado oposto da superficialidade. Pôr os pés nos caminhos à margem, marcar com o gume das pedras os lugares. Ouvir o gado, apanhar o seu cheiro. É uma corrida contra o Tempo. Abundam os detractores das freguesias, as muitas formas de lhes roubar o ser. Vão sobrando algumas bouças, a lavoura aqui e ali. E os pinheiros - pinhais deles, paisagem, essência, os gaios e os pombos do silêncio da terra nossa.

Ainda há por onde aproveitar o sino dos campanários e correr a manhã. Barcelos avista-se ao longe e aligeira a aproximar-se (andar as freguesias é perder a idade...), sempre mais perto.

Finalmente, Barcelinhos. Restava a travessia da ponte velha e sobraram algumas horas de Minho. Vindimado, colhido, já semeado, ante o Cávado com dias sim - limpo! - e dias não.

Certo é, de Rates ao destino nunca o arvoredo desistiu de reclamar a perpetuidade dos Pinheiros.

 

 

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