De quando a minha última ida a Miranda do Douro? Já não sei fazer contas, mas ainda não havia auto-estradas: o IP4 morria em Amarante e o resto era o dia todo, a manhã e a tarde muito bem aproveitadas, não fosse chegarmos a desoras do espantoso jantar que íamos já saboreando pelo caminho. O da posta bovina mais famosa do mundo. Tudo isto em vésperas de caçada às perdizes e, acaso o Sr. Silva ou o Sr. Rebelo de S. Tiago da Cruz estivessem lendo esta página, recordariam os nossos encontros naquela estalagem, um certo vinho palhete, o serão a esmoer o repasto e o destino a separar, logo ao alvorecer, os muitos grupos que dali partiam para os seus lugares de aposta numa gloriosa jornada de caça.
Agora surgiu a oportunidade de voltar a Miranda e trazê-la a tiracolo, numas dúzias de fotografias. De rever as escarpas do Douro, a cidade pós-fronteiras – cheia de ademanes turísticos – o Menino Jesus da Cartolinha, o toco da praça-forte que sobreviveu à terrífica explosão do paiol setecentista. E tudo isto graças ao velho camiliano morgado, o pagode do Calisto Elói.
Calisto Elói deixou de ser anjo, caiu não sei exactamente de que conjectura, faz agora 150 anos. Comemorando a data, a Casa de Camilo quis levar-nos a conhecer a remota origem que Camilo lhe atribuiu – Caçarelhos, no concelho de Vimioso. Assim largaram de Ceide, no passado sábado, dois autocarros para três horas de viagem até ao destino.
Caçarelhos, diga-se, não guarda vestígios do que nunca lá existiu, o morgadio de Agra de Freima, dos Barbudas do Calisto. Nada há na pacata terrinha que nos aproxime, sequer, de alguma fonte arquitectónica, bem escavada na pedra, rica cantaria e heráldica condizente, onde Camilo bebesse os traços da vida do seu personagem. Não, Caçarelhos é infinitamente mais simples e quieta. Tem agricultura porque tem tractores junto às casas e porque se presume que esses tractores hão de ser conduzidos por mãos humanas. No resto, é a ausência de crianças, muita ruina de habitações, e algumas vozes que se animam enormemente na conversação com visitantes ou sentadas à mesa do café.
(Não contando, é claro, as suas varandas e telheiros, as escadinhas de acesso aos grandes observatórios do globo, aqueles onde o cronómetro não atazana os espíritos e o céu ainda escurece carregado de estrelas.)
De modo que Caçarelhos significou um agradável passeio. Eu juraria ter fotografado a morgada D. Teodora de Figueiroa (para quem não sabe, a legítima Senhora de Calisto Elói) à janela, não fora a moldura em alumínio da fotografia a contrariar o formidável feito. Como quer que seja, uma vez mais a simpatia e a hospitalidade dos transmontanos, num só breve trecho de palavras cruzadas. E de Caçarelhos seguimos então a Miranda.
Isto tudo porque A Queda de um Anjo foi editada pela Casa de Camilo também em língua mirandesa. Outra homenagem ao morgado de Agra de Freima… A cerimónia da apresentação do livro decorreu no Salão Nobre dos Paços do Concelho, o Senhor Presidente da Câmara mirandense envergou a “capa de honras” (uma peça majestosa em burel), o tradutor Alfredo Cameirão exprimiu-se nesse misto de leonês e português e os famalicenses dali seguiram a visitar a Sé, as ruas da cidade. Como refiro, hoje um pacífico local de convívio entre os de cá e os do lado de lá da fronteira.
Não sei se ainda há caça em Miranda. Talvez dela só tenham ficado boas memórias. O mesmo vale para Caçarelhos: uma aldeia pitoresca, inócua, em que Camilo pode à vontade plantar um personagem seu, remoto, provinciano, letrado até ao séc. XVII, antagonizando o mundanismo lisboeta. Ao qual, enfim, se rendeu. Estas jornadas prosseguem, aliás, na Capital, com nova mostra do livro em mirandês em S. Bento. Lastimando tanto não me avistar com a bela Ifigénia, deixarei de lado a Assembleia da República, equivalendo-me muito à primeira edição do velho Calisto.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 20.OUT.2016)