Atribulações de uma boutique
Defronte à notável presença de uma farmácia, um pouco além da mercearia, naquele empedrado afeito aos cascos das alimárias, - o absoluto mutismo da montra vazia de tudo menos dos cadáveres de moscas enormes, com garras, parecidíssimas com os lobos que enxameiam as serranias circundantes. O interior forrado de prateleiras onde se amontoava roupa, peças de tecidos, objectos indefiniveis, um caixote de comida para cão. E ninguém, a não ser um papel na porta, era favor tocar à campainha. Duas prolongadas vezes toquei.
O miúdo que atendeu, vindo dos fundos, disse ia chamar a avó. E eu não soube dizer à senhora senão a minha enorme vontade de coscuvilhar a loja. A boutique, a descambar para o armazém, obrigada a defender-se das alcateias de moscas a tiros de dum-dum, mesmo assim distinta da botica, desse lugar qualquer onde também se bebem copos de vinho.
Não, a senhora, simpatíquissíma, deixou-me virar do avesso o artigo. Se havia roupa de homem? Claro, umas camisas, camisolas, calças..., um cabide de agasalhos próprios do Circulo Polar Ártico. Não me perguntem o que procurava porque também não sei. Talvez essa pequena maravilha do artigo todo ainda etiquetado com preços em moeda antiga! - Não quer levar esta tê-xarte? É algodão puro, muito boa, de uma fábrica no Porto...
A tê-xarte tinha gola, em boa verdade seria um polo, com botões até à barriga e um bolsinho para o maço de tabaco... Pensando melhor a tê-xarte era uma camiseta. Preta, como agora está muito em moda nos enterros. - E o preço? - Marcava 2.700$00. - O senhor é capaz de me dizer quanto é em euros? - São cerca de 14,50, minha senhora... - Então para si fica por 10€! - Obrigado! - E a tê-xarte/camiseta veio comigo, um milénio depois, mas felizmente ainda não tive de lhe dar uso.
A conversa com a querida senhora arrastou-se. O estabelecimento não resultara bem um sucesso, mas ela é proprietária de um canil de cães Castro Laboreiro, vende cachorros para a Europa inteira, queria à viva força eu o fosse visitar. - Gostaria imenso, sabe? Mas estou mesmo de passagem... - E aquilo era o rés-do-chão da casa, um entretém, aliás, no próximo ano irá remodelar a loja, vender produtos locais, artesanato...
- Acho muitíssimo bem, minha senhora! Mas mantenha estas prateleiras e armários, o balcão, deixe as paredes como estão. - E (disse cá para dentro) não mande embora o cabide com as impenetráveis roupagens de inverno, vá buscar os Castro Laboreiro, porque, a comerciar mel e enchidos, as moscas não tardarão a descer de novo ao povoado, famintas, aterradoras...