Li em jornais antigos, o Santiago era romaria muito a contento da gente grada de Famalicão. Um acontecimento social, tão religioso quanto pândego, que congestionava o terreiro do Senhor dos Aflitos na célebre noitada de 24 para 25 de Julho na freguesia de Cruz. E até ao fim desta, no fundo do vale, quase em Mouquim, os dias a anteceder o Santiago preenchiam-se de altifalante: – Um, dois, três, experiência; escuto, um, dois, três – proclamava uma voz roufenha sobrepondo-se a silvos cortantes, de arrepiar. Enfim a coisa afinava e a música seguia por horas e horas, enquanto o rapazio planeava entusiasmado o escoamento dos trocos amealhados a pensar no Santiago.
Arribavam, preliminarmente, os carroceis, as barraquinhas de tiro, os matraquilhos e bilhares, e algumas bizarrias como a “mulher de palmo e meio” que me levou a respeitável soma de 25 tostões num caixote, dentro de uma barraca, onde se via somente a sua cabeça falante. Como se se tratasse de uma jarra com flores, no centro da mesa. – É isto uma mulher de palmo e meio? – inquiri, num sentimento de burlado. – Sim, uma mulher de palmo e meio metro – responderam-me displicentemente, a aviar, vinham aí mais curiosos…
E, ao aproximar-se a noitada, os caminhos para o Senhor dos Aflitos formigavam de famílias inteiras apetrechadas de mantas e merendeiros, tudo o necessário para essa maratona festiva que se prolongava até às humidades do amanhecer. Com o palco e o artista convidado, fogo de artifício e uma “vaca de fogo” pelo meio.
O Santiago tinha o seu ex-libris, o monumental arco. Uma construção em madeira de eucalipto carpinteirada na horizontal, no cimo do terreiro, quase junto à estrada nacional. Depois enfeitada a papeis coloridos, encaracoladinhos e enroscados pelas moças da freguesia, lavores de semanas a fio até que, na véspera da noitada, sobrevinha a tarefa hercúlea de erguer e verticalizar o arco. A pulso, madrugada fora, deixando-o firme nas buracas alicerçadas defronte à casa da Laidinha, que o Senhor tem. Isto é uma história com princípio há mais de cem anos e o arco chegou a ultrapassar os 50 metros de altura e, provavelmente, algumas regras básicas de segurança. Mas diziam-no o maior de toda a Península, e mesmo lá no fim do vale via-se a sua ponta, acima dos pinheiros e das austrálias, estiolando Agosto, Setembro… Assistindo à chegada de Outono e começando a inclinar, empurrado pelas ventanias, muito na direcção da venda da Maria Alcina, capaz de alcançar, caindo, o telhado do Prof. Araújo – nomes que o Tempo não esqueceu, assim como a memória do arco, lenha para o fogo depois de prudentemente destronado da sua altivez. Renasceria no Santiago seguinte, até que o meado da década de 80 (do século passado) o cortou cerce de vez. Não mais os mais possantes braços de Cruz o levantaram toda a noite dos 23 de Julho. E o topo do terreiro foi alcatroado, engalanado com uma rotunda e a estátua evocativa dos fregueses combatentes no Ultramar.
Agora resolveram ressuscitá-lo. Foi no passado sábado, um pedaço mais abaixo, a meio do terreiro, não indo além dos 40 e pico metros, e os papelotes substituídos por plásticos em várias secções de cores. Era de tarde e muitos compareceram, muitas vozes sob as varas que erguiam o arco, alguma confusão… Afinal, reuniam-se ali, trinta e tal anos depois, naquele incómodo, a ciência dos mais velhos e a força muscular dos que o levantariam. O terreiro povoou-se de engenheiros, cada um debitando as suas recordações de como tinha sido já tão antigamente. O arco rangia e oscilava, ao pôr-se de pé, e ocorreu-me que desgraças acontecem quando menos se espera. Mas uma grua a tocar o céu amparava o gigante pela cintura, o mais era encenação também, até as mulheres a puxarem à corda, na outra extremidade, como outrora, defendendo os seus maridos de uma possível derrocada do arco.
Caía a tarde acaloradíssima e S. Tiago da Cruz revivia o seu ex-libris. Diurno, remasterizado – falemos assim – mas sempre capaz de fazer a freguesia feliz.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 21.JUL.2016)