Conheci-o assim: chegara recentemente a Famalicão com trabalho (salvo erro) na Riopele e trouxera da imensa paisagem alentejana o gosto da caça. Mas onde caçar nestas bandas? Informou-se e, com a maior delicadeza, pediu a meu Pai autorização para dar uma volta em terras da minha Família. Muito sensibilizado – a época não condizia bem com tais atenções… - o meu Pai disse-lhe logo que sim, com certeza, e mandou-me a acompanhá-lo por matagais e campinas. Eu tinha 16 anos e a minha espingarda vinha já do meu Bisavô, de cães, velhinha, os dois longos canos muito consumidos.
Andámos a manhã toda naquele mundo cerrado de arvoredo e ralo de coelhos. Andámos sempre, como depois continuámos a andar mais de três décadas de amizade. O pouco que caçámos então foi o muito semeado e até hoje cultivado. Ele não atirava a gaios, pegas ou melros (asneira em que um catraio de 16 anos bem pode incorrer…), a sua história era de perdizes e nós, do que lhe aprouvesse, só podíamos oferecer algum coelhito ou tordos. A conversa foi diminuta e a caçada finalizou em umas leiras carregadas de codessos, mesmo ao pé das ruínas de uma casa desabitada de caseiros. Mas aquelas pedras musguentas, o gotejar da água no fontenário, a varanda e o alpendre, o pátio interior, fascinaram-no, percebia-se claro – puseram-no a sonhar.
Durante cinco anos não nos voltámos a encontrar. E quando se decidiu vender essa quintinha ele prontamente apareceu: queria-a para si e para a sua Família.
Não houve dúvidas, o negócio tratou-se muito rápido. Quase tanto como uma relação de boa vizinhança derivou para a tal amizade que nos levou à caça no Douro, em Terras de Basto, na Beira Baixa… Em Reguengos de Monsaraz, no inesquecível Roncão d’El-Rei (agora afogado no Alqueva), em caçada – a mais bonita da minha vida – que ele me ofereceu.
Muito caçámos também no prato. E na terra fértil dos planos e dos projectos e das ideias e dos ideais políticos ainda. A quintinha transformou-se no mais aprazível lugar para tudo isso e para eu capturar utilíssimas visões da realidade empresarial, uma especialidade sua. E neste amontoar de gratas recordações emerge de repente, não sei porquê, um tostadinho leitão assado e jantado na Póvoa de Lanhoso.
Tudo começou há 40 anos. A espingarda velhinha do Bisavô já se aposentou, descansa na sala, chegara entretanto o tempo de eu comprar a minha própria arma. Para ter também que deixar aos meus bisnetos. E, a páginas tantas, a sua caçadeira começou a dar a vez à carabina dos javalis. Faltaria apenas falar das soltas de faisões…
Em boa verdade falta falar no principal. Mas talvez seja desnecessário. Famalicão conhecerá bem o caracter de um engenheiro químico oriundo do Alvito distante, muito novo aqui arribando com um emprego no concelho, um cargo… e, a recebê-lo e aos seus, um quarto na Pensão Ferreira. Depois…
Depois… cada um contará a sua história e eu alinhavei esta. Dedicada ao bom Amigo Vasco Figueira da sua Quinta do Godinho, onde está sempre presente nos nossos dias.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 09.JUN.2016)