A feira não é um sucesso mercantil e suponho tal não se enquadre nos horizontes da organização. Há por ali uns animais bonitos, este ano dois burriquitos para recreio das crianças, uns galináceos dos tempos antigos da cabidela poderosa, a exposição de tractores pioneiros… E a sereníssima estátua de Sua Majestade a Rainha. Logo depois as tendas, geralmente em três quarteirões às riscas de barracas de praia.
Parece mais uma exposição no Jardim D. Maria II. Móveis, cerâmica, artefactos diversos, bijuterias, velharias e outro reboliço onde fiquem os doceiros, as especialidades do fumeiro, a ginginha ou os vinhos. E ao silêncio apressado em tanta coisa para ver sucede o vozear forte entre mesas e bancos corridos, nos “comes e bebes”.
Quero dizer, a gente passeia por ali, é Maio, revive a velha, arqueológica, feira das trocas, mesmo havendo agora pouco para trocar, o Terreiro do Paço, sempre insaciável, leva-nos os trocados todos. Mas antigamente parece que a coisa funcionava. E aos nossos dias chegou a animação, o encontro com os amigos, umas pataniscas e umas malgas sob um toldo qualquer. Dança-se, também, e toca-se cavaquinho e reco-reco.
É o fim-de-semana que marca o início da mais animada fatia do ano. Desta feita com um cortejo floral a engalaná-lo. Foi lindíssimo!
E foi também competitivo, trouxe para as ruas de Famalicão uma sã corrida entre as freguesias do concelho, empenhadas no seu melhor de originalidade e coreografia. Trouxe cores, bailarico e evocações. Episódios de outras eras, memórias que nos tomam subitamente de assalto e espantam pela velocidade do Tempo, pela aceleração dos ventos do modernismo. Ceide (S. Paio) e Cavalões, mais as suas bicicletas da nossa meninice, são, em tal matéria, o momento alto.
Porque antigamente não se circulava por aí em bicicletas que as balanças quase não detectam, com um cardápio inteiro de mudanças para o flanar na horizontal até ao subir e descer na vertical. Nem de calções de lycra e capacete e óculos de mergulhador em trajectos de fins de tarde desportivos. A bicicleta era o meio de transporte para muitos, muitíssimos, torrejasse o sol ou a chuva, através do pó da secura estival ou na geada das invernias sem luvas. Apenas os assentos – os selins – eram mais confortáveis, tinham molas e uma bolsa atrás, com cola e remendos para os furos nos pneus e duas ou três chaves de boca para outras emergências.
Os chefes de família assim saíam de casa, madrugada ainda, de chapéu na cabeça (nessa época todos os homens usavam chapéu ou boina) e a marmita com o almoço e a merenda numa pasta muito puída, eternamente vai-não-vai, a fechar em torno do quadro da bicicleta. Nas subidas apeavam, porque lhes faltavam as pernas e as tais mudanças. E no final do dia ainda arranjavam forças para regressar, embrulhados em plásticos, chovendo, que de roupa impermeável era o que havia.
Lembro esse minhocar demorado pela estrada de Braga fora, quilómetros e quilómetros seguramente nada parecidos com os poucos minutos de agora. E nas quartas-feiras na Vila, maré de negócios, enxadas e engaços novos – sempre atados ao quadro da bicicleta… - as ruas carregavam-se do tinir das campainhas, um acessório entretanto esquecido.
Tudo revivemos um desses derradeiros domingos. Até os anos que já não foram os nossos, os dos carros de cavalos, Famalicão mais idosa ouviu-os e utilizou-os, é para nós um momento de sonho – como seria então?... – um passeio pelo presente dos nossos bisavós e – suspeito – uma colecção magnífica a formar-se ali para o Alto da Vitória. Um assunto para uma próxima vez.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 25.MAI.2016)