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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A viagem deixada à porta

João-Afonso Machado, 29.05.16

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Foi a profanação do momento sagrado pela mesquinha razão de uma dor no corpo. É difícil manter os rituais e antes talvez nada do que pouco e fugidio. A viagem ficou adiada, a vila chamou-se hospedagem, uma noite sequer com apelido, a correria rua fora e uma imagem bonita já na curva da despedida. São uns apertos musculares que quase impedem entrar e sair do carro.

E a história infeliz de um exposto, uma vila menina de que ninguém sabe, nem quem a deixou na roda quer saber, incapaz, todavia, de a esquecer.

 

 

"Trocas e flores"

João-Afonso Machado, 25.05.16

CICLISTAS.JPGA feira não é um sucesso mercantil e suponho tal não se enquadre nos horizontes da organização. Há por ali uns animais bonitos, este ano dois burriquitos para recreio das crianças, uns galináceos dos tempos antigos da cabidela poderosa, a exposição de tractores pioneiros… E a sereníssima estátua de Sua Majestade a Rainha. Logo depois as tendas, geralmente em três quarteirões às riscas de barracas de praia.

Parece mais uma exposição no Jardim D. Maria II. Móveis, cerâmica, artefactos diversos, bijuterias, velharias e outro reboliço onde fiquem os doceiros, as especialidades do fumeiro, a ginginha ou os vinhos. E ao silêncio apressado em tanta coisa para ver sucede o vozear forte entre mesas e bancos corridos, nos “comes e bebes”.

Quero dizer, a gente passeia por ali, é Maio, revive a velha, arqueológica, feira das trocas, mesmo havendo agora pouco para trocar, o Terreiro do Paço, sempre insaciável, leva-nos os trocados todos. Mas antigamente parece que a coisa funcionava. E aos nossos dias chegou a animação, o encontro com os amigos, umas pataniscas e umas malgas sob um toldo qualquer. Dança-se, também, e toca-se cavaquinho e reco-reco.

É o fim-de-semana que marca o início da mais animada fatia do ano. Desta feita com um cortejo floral a engalaná-lo. Foi lindíssimo!

E foi também competitivo, trouxe para as ruas de Famalicão uma sã corrida entre as freguesias do concelho, empenhadas no seu melhor de originalidade e coreografia. Trouxe cores, bailarico e evocações. Episódios de outras eras, memórias que nos tomam subitamente de assalto e espantam pela velocidade do Tempo, pela aceleração dos ventos do modernismo. Ceide (S. Paio) e Cavalões, mais as suas bicicletas da nossa meninice, são, em tal matéria, o momento alto.

Porque antigamente não se circulava por aí em bicicletas que as balanças quase não detectam, com um cardápio inteiro de mudanças para o flanar na horizontal até ao subir e descer na vertical. Nem de calções de lycra e capacete e óculos de mergulhador em trajectos de fins de tarde desportivos. A bicicleta era o meio de transporte para muitos, muitíssimos, torrejasse o sol ou a chuva, através do pó da secura estival ou na geada das invernias sem luvas. Apenas os assentos – os selins – eram mais confortáveis, tinham molas e uma bolsa atrás, com cola e remendos para os furos nos pneus e duas ou três chaves de boca para outras emergências.

Os chefes de família assim saíam de casa, madrugada ainda, de chapéu na cabeça (nessa época todos os homens usavam chapéu ou boina) e a marmita com o almoço e a merenda numa pasta muito puída, eternamente vai-não-vai, a fechar em torno do quadro da bicicleta. Nas subidas apeavam, porque lhes faltavam as pernas e as tais mudanças. E no final do dia ainda arranjavam forças para regressar, embrulhados em plásticos, chovendo, que de roupa impermeável era o que havia.

Lembro esse minhocar demorado pela estrada de Braga fora, quilómetros e quilómetros seguramente nada parecidos com os poucos minutos de agora. E nas quartas-feiras na Vila, maré de negócios, enxadas e engaços novos – sempre atados ao quadro da bicicleta… - as ruas carregavam-se do tinir das campainhas, um acessório entretanto esquecido.

Tudo revivemos um desses derradeiros domingos. Até os anos que já não foram os nossos, os dos carros de cavalos, Famalicão mais idosa ouviu-os e utilizou-os, é para nós um momento de sonho – como seria então?... – um passeio pelo presente dos nossos bisavós e – suspeito – uma colecção magnífica a formar-se ali para o Alto da Vitória. Um assunto para uma próxima vez.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 25.MAI.2016)

 

 

Cabo Espichel

João-Afonso Machado, 23.05.16

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É o limite entre os homens e o azul infinito. Onde melhor se ouvem as antigas procissões vindas do tempo longínquo, talvez inacreditável. Quem seriam eles, os romeiros, de onde partiriam, como um dia chegaram a que Céu? Há ali uma porta para o culto, o luzeiro dos círios, o desconforto do corpo por paga do sossego das almas. E uma espera morta caiada de fé, não talvez em hoteis de amanhã apenas.

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Enquanto isso, a humildade no derradeiro instante do precipício: a Ermida da Memória, sempre viva e acesa, de Nossa Senhora do Cabo Espichel. Em meio milénio de olhar e apelos, indo além do que alcança a visão das gentes.

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Ao lado o farol. Sobre o canto das sereias, pragmático, quase indiferente a uma história que se sente antes de se aprender.

 

 

O meu domingo de alguma vez

João-Afonso Machado, 17.05.16

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Seria assim que eu fui. Talvez não tão florido no guiador mas também com o transistor zelosamente guardado na algibeira do casaco. A fumar Tamariz aos domingos e de pétalas carregadas de cor na lapela e no chapéu e dentro da transparência do meu isqueiro novo. Isto no dia de visitar a moça para quem falo, assunto sério, bem intencionado, a exigir duas molas do estendal na baínha das calças e redobrados cuidados para não manchar de óleo as minhas meias brancas. Sempre com um ror de quilómetros ao pó dos caminhos ladeados de campos e erva para o gado - caminhos do demo, o Senhor me perdoe, mas há marés em que um homem tem de vir abaixo da bicicleta, trepar a ladeira de mãos dadas com ela, nada de chegar molhado, luzidio de suor, os óculos estrangeiros que um cigano me vendeu a fugirem pelo nariz fora.

Nada de atrasar ainda mais o beijo que espero há semanas, para calores já basta a febre que me consome a tarde toda de domingo, não há relato nem Benfica que a apague, eu sempre a jurar-lhe que falo para ela hoje e para o ano e para sempre, com o altar pelo meio... Mas qual quê?! Que podemos esperar, que o pai vem aí e a vizinha está na janela à espreita!...

Seria assim que eu fui, ainda o sarrabulho a pesar cá dentro e já a fazer-me à estrada, a embalar na rampa, todo boas cores, o cabelo cortado e o bigode bem aparado, que o barbeiro vem sempre lá por casa ao fim da manhã, logo depois de cumprido o preceito, ele e aqueles pozinhos cheirosos que não deixam o colarinho da camisa apegar-se ao pescoço agora que o sol de Maio carrega na gente.

 

O estado encarnado e verde da Nação

João-Afonso Machado, 15.05.16

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Aqui na terra o cortejo das flores foi antecipado e a feira das trocas encerra mais cedo. Porquê? Porque hoje, às 17 horas, há em Lisboa um Benfica-Nacional e o Sporting joga em Braga. E do resultado destas partidas vem dependendo o futuro da "nação".

Por isso são proibidas manifestações na Capital e só se pode andar a pé no Marquês e os carros serão revistados e o metro só pára duas estações à frente e a polícia está vai toda para a rua contando com o pior... Porquê?

Porque se teme violência, danos de toda a espécie, depois de conhecido o campeão da Liga. Porquê? Por quem?

Porque a história começou há meses em parlamentarismos faias de treinadores, em facebooks incendiários de dirigentes, em guerrilhas de um certo Pedro, apenas mais descaradas do que as demais de muitos programas idênticos; e na corrupção que grassará entre os arbitros - dizem - como pelos tribunais. Porque rola tudo embrulhado na mesma bola política. Os calhaus da Fontes Pereira hoje servirão algo que se mova semelhando clubismos opostos, como amanhã poderão valer a qualquer intento mais sindicalista. E porquê?

Porque a República é isto mesmo. Burguesa, urbana, moderno-depressiva, cega de horizontes. Nascida numa barriga de aluguer, filha de dois pais, marisamatiasmente acarinhada. E educada no catarinamartinsismo. Ao serviço de todos os anafados antoniocostianos. Pugnando pela eutanásia mas, infelizmente, querendo viver assim, nos antípodas do Portugal livre e com liberdade de ir pacatamente ao espectáculo da bola.

 

 

"Uma 'Cãominhada' no Parque"

João-Afonso Machado, 12.05.16

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Mandaram-nos estar lá cedo, era o “dia do trabalhador” e havia muito para carpinteirar. Fomos com os nossos ajudantes, nós os assessores da Tareja e da Dona Mécia e do Egas mais famosos de sempre. A manifestação adivinhava-se grandiosa, plurirracial.

Ao longe percebia-se já o Parque da Devesa apinhado de cães passeando os seus donos. A manhã era deles, da imensa babel deles, povoando Famalicão e arredores. Alguns de linhagens bem definidas, outros nem tanto. Mas isso é apenas um pormenor.

Porque importante, importante, é a percepção de quanto mudou no espírito das pessoas – o bastante para percorrer a longa travessia entre as coisas e os seres. E os cães são seres, não são coisas. Têm, como aprendi desde pequenino, sentimentos tão díspares como o medo, a meiguice, a preguiça ou a gratidão. Ou a malandrice e o orgulho. E têm memória, uma forma muito própria de raciocínio até, à moda deles, e cultivam hábitos, sentem como nós o frio e o calor, a comodidade e o desconforto. Em suma, os cães já não são jecos.

Assim desfilaram orgulhosamente no dia 1 de Maio – como poderia ter sido noutro dia qualquer: todos são “dia do cão” – dando a volta ao Parque, ostentando as suas mais vistosas gravatas (como nós usamos coleiras), os seus coletes de eleição. E sem esquecer os pobrezinhos, os ignorados da sorte, os canitos pedindo adopção urgente. É famosa a solidariedade dos cães, muito mais do que a dos homens. Ponha cada um os olhos em si – ocorre-me agora, até onde vejo eu para além do pedigree dos meus perdigueiros e, é claro, da dedicação com que me agraciam? Onde topar nas esquinas do planeta olhares mais dedicados, mais a pedir um beijo? E o que é um simples rafeirito menos do que um registado no LOP?

É nada. Rigorosamente nada. E isso ficou bem patente na manif do passado dia 1 no Parque. Sem distinção alguma, apenas trazendo a reboque o desvelo, o carinho, a alegria dos donos dos seus corações. Está cada vez mais difícil, creio, encontrar por aí um lar a cuja família não pertença – por inteiro – juntamente com os hominídeos de que somos uma imagem semi-pelada, os canídeos que eles tão bem representam.

Esta não foi a primeira cãominhada – julgo ter sido a terceira – e é desejável não seja a última. Para o ano haverá mais?... Eu insisto, a iniciativa traduz uma importantíssima revolução de mentalidades e justiça que se faz ao “melhor amigo do homem”. Na realidade, ensina-nos a experiência, ainda está por descobrir um cão que tenha abandonado o dono, ao contrário de tantos donos que diariamente abandonam os seus cães. E isso é uma monumental lição de vida, uma pecha de vergonha sobre a nossa alegadamente superior condição dita racional.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 12.MAI.2016)

 

 

Memórias vilacondenses (XXII)

João-Afonso Machado, 07.05.16

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Nos primordiais anos eu via as corridas encarrapitado num banco à janela da varanda das traseiras. Sobretudo ouvia-as, enquanto os carros, como baratas, eram um instante entre a esquina do Sr. Minhava e a do quintal dos Lencastres. Quem for de então percebe perfeitamente o desenho e talvez consiga imaginar-me com os meus Matchbox, a minha própria escuderia, pela tarde fora circuitando nas tábuas do soalho, com frequentes vindas aos janelões de guilhotina, assim que o troar da competição se abeirava dessa nesga de panorama ao longe, um campo imenso aberto para os sonhos de um dia mais tarde e mais meu.

E essas baratas, esses instantes, esses motores, ainda agora, meio século depois, me enchem o espírito de solarengas fantasmagorias: a recta do Castelo, a meta, as boxes, as dunas, o espaço todo pairando no tempo. Porque não nos resta mais senão sufragar Vila do Conde? Porque abrimos a mão e deixamos as gerações cair no abismo do esquecimento?

Acima de cansadas, há memórias com medo, propositadamente esquecidas. Crendo ser esse o segredo da longevidade. Se é, eu dispenso-a, a longevidade desprovida de imagens e sensações. Por isso a minha emoção quando do cinzento dos dias emergem as cores, ingénuas mas alegres, dos bólides de então, roncando e solavanqueando das boxes para a meta. Talvez até ainda nem tivese nascido, mas não duvido, o circuito estava ao rubro e o comissário do Estrela e Vigorosa Sport aprestava-se para dar mais uma partida.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 06.05.16

B. CAUDA DE ANDORINHA (PAPILIO MACHAON).JPGDispensam o nome. As borboletas são o momento, a cor, o voo e o poiso. Sem razões e aflições. Apenas pelo gosto de estar e de nos dar.

Desconheço episódios de borboletas com medo, somente os das suas asas na brisa entre o pólen e as tonalidades campesinas.

 

 

Romagem à Boavista

João-Afonso Machado, 03.05.16

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Foram mais de vinte anos de vida. Ali pela Boavista e suas cercanias, entre a casa e o escritório, diariamente, rotineiramente, cumprimentando os transeuntes de todas as manhãs, de todas as tardes, como se passeasse na quietude familiar da aldeia. Perco a conta às caras por Cronos entretanto tragadas; e aos estabelecimentos que foram e já não são, como tudo pode ser tão diferente no envelhecer - ou no modernizar... - desse quintal, afinal um dos orgãos vitais do Porto. Não torno lá não descubra retratos escaqueirados, novas molduras no lugar de vultos idos para sempre, ou então as rugas vincando gente que conheci no pleno vigor dos seus negócios, rodopiando calendários e calendários todo este traço de existência. A drogaria do Sr. Carvalho, suspeitosamente encerrada aquando das anteriores romagens à Boavista, escancarava a porta aos ares solarengos de hoje. Entrei.

- Apenas para o cumprimentar, Sr. Carvalho! Como está? Há quanto tempo! - Muito obrigado, Sr. Dr.! Realmente não o tenho visto, o que é feito de si?

Expliquei o meu regresso à pátria, perguntei-lhe pela saúde. Percebi, o balcão é como um cordão sanitário... E, incapaz de ir embora sem um souvenir da vida antiga, fui deitando o olhar em redor, até aquela prateleira além, onde petrificava uma formatura de desodorizantes em recipientes de vidro, o produto envolto em capa de plástico: contra os maus odores e, mais contudentemente, excelentes para lançar à cabeça de algum gatuno dentro de portas. Era os sticks, com tampa em alumínio de enroscar. Também eles em revolta aberta contra Cronos.

Trouxe dois. E despedi-me duas vezes, à cautela - Adeus, Sr. Carvalho, até à próxima! - Foi um gosto, Sr. Dr., tê-lo por cá!

Na prateleira, o desenho de alguns sticks ainda. (- Os mais velhos é o que preferem...). Oxalá o stock não esgote... Mas ninguém sabe as partidas de que o Tempo é capaz...

(E a eternidade dos outros também a construímos nós).

 

 

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