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A Páscoa esse ano veio cedo, antes das glicínias, e por isso esta crónica chegou atrasada, já no eco das campainhas das cruzes.
Mas aquele domingo invariavelmente solarengo manteve todas as alegrias e as esperas da sua manhã. Com as muitas secções do compasso pascal rabiando pelas ruas de Famalicão. E agora, à frente delas, geralmente leigos, gente dedicada à comunidade, no lugar da clerezia que rareia e não chega para a encomenda.
Para uma encomenda muito maior, ainda por cima, encarrapitada nas alturas da propriedade horizontal, espalhada no casario infindo de uma urbe que se agigantou. O pobre compasso pascal se não calça sapatilhas não consegue a encomenda pronta no prazo estipulado.
Antigamente a descontração era maior por isso mesmo, por serem as famílias em número muito inferior. Na freguesia de onde é a minha, aqui no concelho, o Senhor Abade todos os anos fazia equitativos planos, de modo a não presentear com madrugadores aleluias os mesmos fregueses de sempre. A hora mais apetecida, o meio-dia, quando o pão-de-ló e um cálice de Porto já marcham muito bem, assim rotativamente não esquecia lar algum. E as campainhas, muito frenéticas, na soleira da porta do caseiro, anunciavam para de imediato a visita pascal. Cada um a seu posto, pois. Lembro saudá-la tocando o sino da capela…
Assim o compasso entrava no terreiro sobre um tapetinho de flores e folhas em que se destacava o multicolorido das camélias, tlim-tlim-tlim-tlim, e subiam as escadas com especial cuidado para o Senhor Abade não pisar e tropeçar no rendilhado da sua veste branca, debaixo da qual negrejava a sotaina e a rigidez dos seus sapatos de atacadores! Vinha suando! O Senhor Abade, coitado, não gozava de uma saúde fulgurante e já não sei em que ano comunicou a extraordinária novidade: andava outra cruz na ponta oposta da freguesia… Ele sozinho já não dava conta do recado… E passava de seguida a distribuir santinhos entre nós, criançada, com a absoluta convicção de que essa oferta nos despertava idêntico entusiasmo ao dos cromos de jogadores da bola.
A Avó convidava-o então para a sala de jantar, que entrasse e sentasse um bocadinho, tomasse um cafezinho, provasse um bolo branco, e o Senhor Abade aceitava apenas o dito cafezinho, de muito bom grado, era o seu doping, ainda faltava um tanto para rever a sua ansiada igreja paroquial. E no descanso daqueles minutos, enquanto levava a chávena fumegante à boca, discorria sobre coisas geo-estratégicas – o percurso das cruzes no próximo ano – cientificas – a vida íntima das abelhas – e trágicas, sensacionais, – a morte de um rapaz novo essa manhã, levado por uma leucemia galopante…
Pobre Senhor Abade, também a sua saúde não lhe consentiu viver muito mais entre nós. E três décadas volvidas, como se num mundo absolutamente novo, eu volto a ouvir as campainhas pascais… percorrendo o parque da Devesa! Numa Primavera ainda a gatinhar, a tentar os primeiros rebentos da sua flora. Vinha a cruz, a caldeirinha e o hissope lá dentro, os acompanhantes, as opas encarnadas. Cruzaram a ponte e dirigiram-se ao ponto de encontro com as demais que calcorrearam S. Tiago de Antas. Chegou então a fanfarra dos escuteiros e foi todo o vigor na subida da avenida nova, uma expressão de vitória na entrada da velha igreja. E uma missa pascal repleta de gente e de paz.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 14.ABR.2016)