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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Já há tuc-tuc's para Entrecampos?

João-Afonso Machado, 30.04.16

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Depois das imagens televisivas da deplorável selvajaria ontem, em frente a Campanhã, a decisão está tomada: taxis só para a colecção; e, nesta, só os verde-negros. No mais, tuc-tuc's se a rampa for muito inclinada ou a volta mais longa. E a Uber, claro, assim viaje de avião, compre um telelé novo e aprenda a solicitar os seus excelentes serviços. Zé Maneis benfiquistas e congéneres sportinguistas ou portistas: por mim, a vossa próxima viagem bem pode levar-vos ao desemprego. Ou ao António Costa, que vai dar ao mesmo mas com mais consumo de combustível e poluição.

 

 

"Quando a Orly entra nos 'entas'"

João-Afonso Machado, 28.04.16

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Em 1976 abria ao público, na Avenida, a Orly, barbearia-cabeleireiro. Nesse mesmo 1976 em que eu dizia adeus a Famalicão por três décadas e meia vividas entre o estudo e a profissão. É certo, visitava então, amiúde, esta nossa terra – mas naqueles vagares de sábados e domingos em que o tempo é todo de desleixo e repouso. Por isso não me fui apercebendo desse convicto marchar da Orly até aos 40 anos que já completou, e os muito mais do seu futuro.

Foi um meu colega e amigo famalicense, logo que regressei e me instalei, – e lhe perguntei por um estabelecimento onde aparasse a barba e desse duas tesouradas no cabelo – quem prontamente recomendou a Orly. O seu poiso habitual e do seu filho também. Fui lá… e continuei a ir. De conversa em conversa até completar o puzzle da sua história. Desde 1976, quando a Orly surgiu contra ventos e marés e as portentosas cabeleiras, aqueles bigodes quase a tapar a boca, as suas guias sucumbindo à força da gravidade, pareciam ameaçar o ofício. Não tinha sido a altura ideal para arriscar o negócio, pensei. Mas não, tudo estava previsto. Os fundadores, os Srs. Aires Silva e Gabriel Lima, trouxeram consigo a novidade da lavagem da trunfa e os secadores, em suma, a arte de pentear. E desta forma abriu a função os seus horizontes bem para a frente da tesoura e da navalha. Os cavalheiros iam lá cuidar a sua ondulação capilar, as patilhas bem aparadas, amanhã era domingo, o dia dedicado à namorada… Assim nasceu para a potencial clientela o vanguardismo do Salão Orly Cabeleireiro.

E muitos dos fregueses de há 40 anos ainda hoje o são. Eles ou a sua descendência. De bisavós a bisnetos. Entre gente que já partiu e outra de recente chegada, que vai ao corte pela mão do pai…

É o que me conta o Sr. António Silva, o actual proprietário e gerente – de quatro cadeiras sempre em funcionamento simultâneo. Ele que, muito no início da Orly, por lá apareceu a fazer a sua aprendizagem, observando atento o manejar das tesouras e dos pentes, o deslizar acautelado das navalhas pescoços acima, pelos queixos até às orelhas. E depois vassourava do chão o pelo caído, tarefa para os mais novatos, até que um dia lhe foi confiado o primeiro “paciente”, uma “barba e cabelo” inteiramente a seu cargo… Estudava então no liceu, e deste jeito acrescentava uns dinheiritos à mesada e se ia entusiasmando com o mester. Ao ponto de as notas escolares começarem a cair pauta abaixo, entrando em força e quantidade na zona interdita da raposa

Tornou-se necessário optar entre os estudos e a vida profissional. O resultado no presente está bem à vista: o Sr. António Silva vai ao leme da Orly, ele e os seus funcionários participam regularmente em acções de formação – a última decorreu em Paris – estudam as novas “tendências”, quer dizer, as bizarrias que a rapaziada em geral vai desenhando com as barbas e cabelos respectivos. Estou informado: vem aí, brevemente, o estilo Elvis Presley.

Mas em tudo isto há perseverança, bem servir e visão. A Orly representa uma marca de produtos cosméticos masculinos, a American Crew; significa uns tantos postos de trabalho, dispõe de instalações amplas e confortáveis; e, em maré de espera pela vez, o tempo escoa facilmente entre a leitura dos jornais e um naco de cavaqueira.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 28.ABR.2016)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 27.04.16

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Disse-lhe, na loja de penhores, ao ler-lhe os olhos ávidos de relógios e anéis: - tome lá, é prata! E o homenzinho mirou, numa vesgueira inundada do mais superficial. A medo, respondeu apenas – não tenho tanto dinheiro assim; é uma quantidade muito grande.

Mesquinho, sem dúvida. Mas prudente negociante até ao fim. Desses que pesam a prata em milhas.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 24.04.16

MIRADOURO PEDRA BELA.JPGPensava ela, a vida não aprofundaria os seus segredos mais de umas dezenas de metros. Tanto quanto recordava os vales de outrora e o seu arvoredo assinalando o curso de tímidos regatos submersos. Nunca fora à praia e desconhecia houvesse vida para além das serranias.

Um dia, moça já feita (e bem feita), viajou, visitou o mar. Afligiu-se, teve medo. A sua vastidão transportou-a às estrelas, ao firmamento, sob o peso insuportável do sem fim do Universo.

 

 

Crónica de uma agonia e o seu fim

João-Afonso Machado, 24.04.16

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Diz quem lá esteve, foi um estrondo de susto. Desfez-se na tempestade, ruiu, caiu por ele abaixo e entupiu a rua para semanas de acarretar pedra e entulho. Sabia-se ia acontecer, o destroçar de um morto-vivo, o Hotel do Parque.

Assim guardo religiosamente o retrato dessa vila do Gerês das cartas antigas em que os cavalheiros narravam férias do fraque e da casaca e iam em imaginárias curas de doenças amarelecidas no tempo. Achaques aliviados em fatiota mais ligeira, colarinhos menos espetados. E as senhoras, sempre bem resguardadas, também elas de toilllette não tão rendilhada. Cartas redigidas de ingénuas esperanças em águas em que não se afogavam o fígado, as vias respiratórias ou mesmo a melancolia, todos os seus males. Li muitas, repletas de doutíssimas opiniões sobrelotando o Hotel do Parque. O Minho entretinhas-se, se não a banhos nas termas, ao longo de varandins e varandins sobre varandins e varandins de que ainda restava um eco triste, abafado, desfeito, derruído na tempestade a semana passada.

 

 

A verdade do "cão-e-gato"

João-Afonso Machado, 22.04.16

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Hora de jantar. Todos na cozinha a ultimar o repasto. Duas expressões tranquilas explicam como vai ser, como todos os mitos caem. Subsiste a verdade da caça apenas - às perdizes e aos ratos. O mais são sabores - daquelas no prato e destes na sua ausência.

Acresçam ainda as vozes do canário e a minoria humana no vitalício revolver do dia-a-dia neste bocadinho de espaço...

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 20.04.16

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Longos são os caminhos do silêncio rumo ao mar. Tão longos quão caudalosos ou esquecidos em prolongados remansos estivais. Só por isso a vida é deles, entre a juventude e os anos, a euforia e a resignação de um tempo com princípio, meio e fim, do outro lado da eternidade.

 

 

Estes meses depois

João-Afonso Machado, 19.04.16

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A tempestade é já um sabor amargo deixado para trás. As inundações sucessivas pela casa toda, desmoronamentos moles de cheiro suspeito a qualquer hora, a vigilia constante, o vaivém da esfregona. Foi um olhar terrível, uma expressão implacável de censura sobre as decisões que a vida comporta e o tempo, afinal, ameniza e lhes faz justiça.

Ficaram apenas as correrias desvairadas atrás do gato. E os gritos lancinantes deste, abocanhado pelo pescoço, ratado nas orelhas.

O mais são beijos ou aquela santa companhia, muito suspirada, enrolada no tapete, nas horas de leitura, de escrita, do serão televisivo. E noites tranquilíssimas depois de uma despedida efusiva, trepada pela colcha fora (e a gente sem coragem de perguntar se lavou as mãos...), lambida, lambida, lambida até à exaustão e ao contorno da cama na direcção do seu aposento.

Restam as idas ao parque e um andar já disciplinado, como se a trela não estivesse lá, em amena cavaqueira connosco. E o filme à Walt Disney termina à vista de um melro ou de uma pomba, especado, cauteloso, invadido pela gula, a marcá-la, a pedir encarecidamente perdizes.

Há fundadas esperanças para que dele se possa dizer uma obra-prima. 

 

 

"O compasso, com algum atraso"

João-Afonso Machado, 14.04.16

SOBRE A PONTE DEVESA.JPG

A Páscoa esse ano veio cedo, antes das glicínias, e por isso esta crónica chegou atrasada, já no eco das campainhas das cruzes.

Mas aquele domingo invariavelmente solarengo manteve todas as alegrias e as esperas da sua manhã. Com as muitas secções do compasso pascal rabiando pelas ruas de Famalicão. E agora, à frente delas, geralmente leigos, gente dedicada à comunidade, no lugar da clerezia que rareia e não chega para a encomenda.

Para uma encomenda muito maior, ainda por cima, encarrapitada nas alturas da propriedade horizontal, espalhada no casario infindo de uma urbe que se agigantou. O pobre compasso pascal se não calça sapatilhas não consegue a encomenda pronta no prazo estipulado.

Antigamente a descontração era maior por isso mesmo, por serem as famílias em número muito inferior. Na freguesia de onde é a minha, aqui no concelho, o Senhor Abade todos os anos fazia equitativos planos, de modo a não presentear com madrugadores aleluias os mesmos fregueses de sempre. A hora mais apetecida, o meio-dia, quando o pão-de-ló e um cálice de Porto já marcham muito bem, assim rotativamente não esquecia lar algum. E as campainhas, muito frenéticas, na soleira da porta do caseiro, anunciavam para de imediato a visita pascal. Cada um a seu posto, pois. Lembro saudá-la tocando o sino da capela…

Assim o compasso entrava no terreiro sobre um tapetinho de flores e folhas em que se destacava o multicolorido das camélias, tlim-tlim-tlim-tlim, e subiam as escadas com especial cuidado para o Senhor Abade não pisar e tropeçar no rendilhado da sua veste branca, debaixo da qual negrejava a sotaina e a rigidez dos seus sapatos de atacadores! Vinha suando! O Senhor Abade, coitado, não gozava de uma saúde fulgurante e já não sei em que ano comunicou a extraordinária novidade: andava outra cruz na ponta oposta da freguesia… Ele sozinho já não dava conta do recado… E passava de seguida a distribuir santinhos entre nós, criançada, com a absoluta convicção de que essa oferta nos despertava idêntico entusiasmo ao dos cromos de jogadores da bola.

A Avó convidava-o então para a sala de jantar, que entrasse e sentasse um bocadinho, tomasse um cafezinho, provasse um bolo branco, e o Senhor Abade aceitava apenas o dito cafezinho, de muito bom grado, era o seu doping, ainda faltava um tanto para rever a sua ansiada igreja paroquial. E no descanso daqueles minutos, enquanto levava a chávena fumegante à boca, discorria sobre coisas geo-estratégicas – o percurso das cruzes no próximo ano – cientificas – a vida íntima das abelhas – e trágicas, sensacionais, – a morte de um rapaz novo essa manhã, levado por uma leucemia galopante…

Pobre Senhor Abade, também a sua saúde não lhe consentiu viver muito mais entre nós. E três décadas volvidas, como se num mundo absolutamente novo, eu volto a ouvir as campainhas pascais… percorrendo o parque da Devesa! Numa Primavera ainda a gatinhar, a tentar os primeiros rebentos da sua flora. Vinha a cruz, a caldeirinha e o hissope lá dentro, os acompanhantes, as opas encarnadas. Cruzaram a ponte e dirigiram-se ao ponto de encontro com as demais que calcorrearam S. Tiago de Antas. Chegou então a fanfarra dos escuteiros e foi todo o vigor na subida da avenida nova, uma expressão de vitória na entrada da velha igreja. E uma missa pascal repleta de gente e de paz.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 14.ABR.2016)

 

 

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