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Quando, lá longe, eu me dizia de Famalicão, acontecia muita gente já conhecer aqui a capital – e, com admiração, com saudade e saliva no espírito, invariavelmente referenciavam a Íris ou o Tanoeiro.
Hoje vão, por isso, umas linhas sobre este último e a sua história. Um percurso quase centenário principiado por uma oficina de tanoaria estrategicamente mantida junto ao antigo campo da feira. Ao mais antigo, aquele que se situava sob a Fundação Cupertino de Miranda e o Jardim D. Maria II. Era ali que se carpinteiravam os toneis, as dornas e as pipas e, para entreter feirantes e visitantes, se ia ao pipo por uns canecos de tinto. Tudo começou, pois, muito com a animação das quartas-feiras, entre madeirame e aros metálicos e um balcãozito ao lado, onde se desentediava as esperas com uma pinga, um petisco.
O tanoeiro chamava-se Manuel Rodrigues de Oliveira. Pai de um rapaz que emigrou para o Brasil e por lá ficou, sem que dele e da sua provável descendência mais se soubesse; e de duas raparigas, dois destinos sempre aqui por Famalicão, enquanto o tasco decerto ia crescendo, ganhando mesas e bancos, espaço roubado à tanoaria. Havia já cozinha a sério e quem cozinhasse: as senhoras da casa. Até que Manuel Rodrigues de Oliveira enviuvou e lhe ocorreu contratar uma cozinheira descoberta num restaurante da Rua do Almada, no Porto.
Aos famalicenses, senão a outros aos mais camilianos, não podem deixar de interessar estas peripécias. Sobretudo à rapidíssima cadência dos acontecimentos. O Tanoeiro era já um nome firmado, celebrado entre as casas de comer da região. Talvez acusando o peso da idade, alguma solidão, Manuel Rodrigues de Oliveira decidiu casar com a sua cozinheira, D. Silvina. Às filhas dele não entusiasmou particularmente a ideia, afastaram-se, fundaram o seu próprio restaurante. A feira de Famalicão mantinha-se pontualmente às quartas e a afluência de gentes era muita e variada. Os pratos apurados entre o mais típico da culinária minhota. Preparados em instalações que já só cabiam em área conquistada ao quintal do estabelecimento. E a tanoaria cada vez mais residual, mais uma recordação do passado. De antes dos muitos forasteiros, agora aos fins-de-semana, atraídos pela fama do Tanoeiro.
Chega a vez de Manuel Rodrigues de Oliveira entregar a alma ao Criador. Sucedeu-lhe a viúva à frente do negócio. E um seu antigo colega de trabalho na Rua do Almada. Tempos do nosso tempo, é a Década de 60 no seu vagar. Já aquele plátano que ensombra o Tanoeiro, e o refresca na canícula, lá estaria plantado. O Sr. Mário Reis casa com a viúva D. Silvina, unem-se os rumos de vida dos dois antigos colegas de trabalho na Rua do Almada. Então sim, o Tanoeiro cavalga a toda a brida para o reconhecimento nacional. Esse lampejo de geografia que se fazia nos portugueses de paragens mais remotas quando se lhes mencionava V. N. de Famalicão.
O restaurante distendeu-se muito para as traseiras, a fachada mantém-se sóbria, avarandada, convidando a um aperitivo cá fora, sob as densas ramagens do plátano; ou a uma entrada rápida, mandando o frio, para uma sala orgulhosa de troféus diversos nas paredes, muito assisada nas toalhas brancas das suas mesas. A ementa, em suma, é o Minho: a canja com que antigamente se curavam todos os males, as papas de sarrabulho, as pataniscas, o rojão, o cabrito assado, cardumes de bacalhaus a quantas modas, a cabidela… E a carta de vinhos, privilegiando embora os verdes, não dispensa um manancial de maduros. O Sr. Mário Reis, já aposentado, recebe, faz as honras da casa de que hoje é proprietário o Sr. Joaquim Ramos, seu antigo sócio.
Assim se sucedem os reencontros e resiste a continuidade. Estas voltas da tanoaria e da Rua do Almada, figuras e vidas que vieram e não mais foram e enraizaram. Histórias a calhar para um pedaço de conversa a cada almoço ou jantar. Símbolos, marcos, tradições a cultivar o bom gosto. Naquele recanto da Praça D. Maria II, talvez hoje nem lembrada da azáfama da feira de outras eras, mas sempre com o cunho da melhor cozinha famalicense.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 18.FEV.2016)