Procuro na memória uma cheia em Famalicão. Não uma inundação, essa frequente maçada às vezes resultante de canalizações já cansadas, outras provocando lamentáveis desastres humanos e patrimoniais. Digo uma cheia como agora as da Trofa. A meter Santarém, a lezíria, num chinelo, tolhendo o tráfego na EN14, espalhando o caos, chamando aos berros as televisões.
(Tudo porque, ouvi dizer, a edilidade facilitou a construção sobre uma linha de água mais arisca que se repimpa de chuva e gosta de largueza e ar puro. Pois ao que parece os edis famalicenses não se deram a carnavais com a natureza e, de resto, o Ave não navega aquém de Bairro, Lousado, Fradelos, cujas margens a gente não alcança daqui).
Vejam a ribeira da Boca! Se algum dia fez história, afora aquelas manhãs em que depois das escolas – a Primária e a Comercial – era uma lavoura toda até aos Bargos, um empastelado de terra a calcorrear até à futebolística aula de ginástica – lado a lado com o treino dos atletas do F. C. Famalicão. A ribeira serpenteava a céu aberto entre a sucessão de campos que nos separava do destino e ginástica, ginástica, era a sua travessia em pulos bem medidos porque banhos frios em Dezembro ou Janeiro ou Fevereiro, não obrigado! O gado pastava e a rapaziada corria, saltava, colecionava lama nas botas até às bainhas das calças. Ainda assim, nem cheia, nem inundação, somente a água turva, os enfeites de plástico nas bordas da Boca.
E o Pelhe? Durante décadas e décadas escondido, ele e os seus afluentes esquecidos debaixo dos silvados, visível (sempre em coloridos suspeitos) apenas a jusante da velhinha, acorcundada, ponte romana do campo da feira, o Pelhe também não tinha graça alguma. Outrossim o rio Este, vindo as meteorologias difíceis do inverno, galgava o leito e alagava a várzea de Nine com fartura de água e de aves pernaltas, ribeirinhas, sonhos que nunca se me tornaram realidade – tempos antigos, muito antigos, muito menos populosos, em que o meu Avô ainda não tinha netos.
Mas estas ocorrências de alagamentos são assaz mais simpáticas do que as inundações. Alagar significa transformar em lago. Ora, é sabido, os lagos são desprovidos de correnteza, pautam-se pela quietude, não atiram – como as inundações mais bravas – com os automóveis estacionados para cima dos telhados ou para dentro das fendas abertas no solo. Provavelmente apelarão à vinda dos bombeiros, por qualquer vaca encalhada até ao pescoço, mas tudo são botes, oleados a defender da chuva, cordames e técnica, vontades solidárias. Uma aventura!
É o que temos agora em Famalicão, no Parque da Devesa, quando chove a sério. O lago transborda, ultrapassa os bancos de madeira, obriga à retirada dos namorados mais para riba. Alguém me disse, o domingo passado as suas águas vieram até perto das latrinas, quase afogavam os coelhos do Parque. Terá sido tanto? Terei sido eu que esqueci as galochas? Não sei, mas o lago da Devesa cumpriu a sua missão – alagou. E na segunda-feira, já em plena bonança, o cenário pela manhãzinha era lindíssimo, com uma luz magnífica e os patos em actividade infrene, nadando, voando, cavaqueando ao longo das margens ainda muito inchadas. Houvera cheia. Sem inundações, sem automóveis soterrados no lodo, sem dramas. Unicamente para gozo dos nossos olhos. E está garantido, a próxima será ainda maior, as águas vão chegar à Casa do Território mas, por obséquio a Famalicão, contrariando o princípio dos vasos comunicantes.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 21.JAN.2016)