O fantasma de uma noite sempre
Nunca mais voltará a ser um local simplesmente bonito. Tal a força de um momento e da desgraça. A velha ponte está lá, sempre presente, sempre cravada no Tempo, como se ainda agora vivessem esses minutos inimagináveis de escuridão e terror num regresso inocente e castigado pela morte.
A 4 de Março de 2001. Uma excursão inteira tragada pelas águas imparáveis do Douro, o autocarro descoberto umas centenas de metros adiante. Mais dois carros, outras vidas desaparecidas no precipício aberto no tabuleiro da ponte.
Corpos de que não se soube onde. Outros devolvidos aos seus. Sobrou a memória, o anjo rendido, tão alto e tão impotente, por maiores que fossem as suas asas Deus assim quis.
A História guardou o que podia guardar, um nome e um arrepio - a tragédia da ponte de Entre-os-Rios. Talvez o inconformismo das familias das vítimas. A História tende muito para a Estatística e para as romagens. Não sei se será como eu, buscando ainda agora captar os dizeres dos padecentes, o pavor dos últimos instantes, todas as minhas palavras tentadas sem efeito.
Nos vestígios areados de um pilar da ponte atraiçoada, traiçoeira, morta, imortalizada, ouvem-se ecos indecifráveis, olhares que eu imagino olhar. Há um monumento, fotografias, invocações, umas escadinhas e as águas em dias sim e dias não. O anjo nunca mais levanta a cabeça porque o fantasma surge com dezenas de vozes e sem distinção de idades.