Veio da Régua casar a Famalicão, Zeferino Bernardes Pereira, e não é da minha geração. Enfim, terá pertencido à dos meus bisavós, circunstância absolutamente irrelevante, tal como a de jamais militarmos debaixo da mesma bandeira e amiúde insistirmos em prolongar a discussão sobre tal divergência. Era muito para isso aquela casa onde o azul e branco se degladiava com o rubro-verde, – sempre de modo respeitoso e aprazível - os leitores dirão qual a mais bonita combinação de cores. E assim talvez convençam o Zeferino Pereira, o primeiro presidente da nossa edilidade eleito (em 1914) após a implantação da República. Um teimoso que não consta haja deixado inimigos, e a quem os adversários políticos do Partido Evolucionista alcunharam de Mestre Zéfrino ou também Contas-Achas, por ser austero, muito cioso do rigor dos números da poupança. E se dúvidas subsistem sobre a verdade do que escrevo, consultem por favor o blogue dopresente, do meu amigo Amadeu Gonçalves.
Aí saberão também que Zeferino Pereira habitava a casa na esquina das Ruas Adriano Pinto Basto e Narciso Ferreira, – a tal onde discutíamos acesamente – uma interessante fachada em azulejo e um interior consumido pelas chamas, vão lá uns três ou quatro anitos. Já aqui referi esta grande desgraça e os traumas que produziu no estabelecimento de bem comer Sete Velhos – também em espírito assaz frequentado por Mestre Zéfrino, sempre saudoso dos dias do seu tempo e de uma boa polémica com os talassas.
Se este nosso autarca deixou herdeiros, ignoro. Não fui assim tão longe nas minhas averiguações. Certo, certo, a sua residência, provavelmente construção sua, não saiu do sítio onde a época dos meus bisavós a deixou e se mantinha quando eu vim ao mundo. Impossível esquecer a placa incrustada na sua frente, apontando a rota de Guimarães. Famalicão acabava logo além, depois da Industrial do Barreiro (recordam-se?) e de uma ideia difusa de altos muros de pedra, aí pela Rua S. João de Deus. De rotundas – zero!, de Bernardino outro tanto. Mas o rés-o-chão da antes habitação povoava-se dos aromas do presunto e dos pipos da tasquinha do Marques Miana.
Não são iscas da minha juventude. O antagonismo entre mim e Zeferino Pereira, teimosamente mantido, atropelou um pouco esse outro personagem, sem dúvida interessante, o Marques Miana. Ofuscou-o. E depois foi a minha longa ausência no estrangeiro tripeiro, uma maçada de décadas, e, entretanto, uma qualquer visita nocturna, a janta a queixar-se do atraso e aquele reclame sobre a porta da entrada – Sete Velhos – a chamar, a aplacar os ânimos, era mesmo ali. E foi. O proprietário, o Sr. Álvaro Velho, não ignorava a minha existência, nem a da minha família.
Repeti o programa com pendularidade. Geralmente às sextas-feiras, a caminho do fim de semana, com os filhos, ainda pequenotes, pelando-se já pelo “pica-pau” acompanhado de batatas fritas. Foi por então que conheci Zeferino Pereira e o apresentei à minha prole. Em boa verdade, firmámos amizade, em consonância com a simpatia do Sr. Álvaro Velho. E assim os anos foram trotando, uns atrás dos outros.
Depois do incêndio, todos se voltaram para a Câmara Municipal peticionando obras: Mestre Zéfrino, com a sua autoridade histórica, o clã Velho, honrando o inesquecível “pica-pau”, e até eu, nesta minha coluna. Já com saudades de berrar ao ouvido do fundador da casa um destemperado “Viva o Rei!”. E em nome de uma fachada que tanta falta faz à estética urbana desta terra. Até que as máquinas vieram e se deu sumiço às vigas carbonizadas do telhado e dos soalhos e ao mais imprestável.
Por agora ficaram as paredes e o vazio entre elas. Mas consta o andar cimeiro, a reconstruir, será sede de uma associação e cá em baixo renascerá das cinzas o Sete Velhos.
Oxalá sempre com o seu “pica-pau”. E o assossegado espírito de Zeferino Pereira. Mai-la história que ainda não ouvi do Marques Miana. Tudo compondo as vindouras amenas tardes famalicenses. – Qual quê a República, Sr. Zeferino? – Ó Sr. Álvaro, traga lá mais uma pinguinha, que o Sr. Zeferino também não diz não…
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 15.OUT.2015)