Um rebanho já só meu
Nascemos entre os animais, uma galeria como deve ser de cães e gatos, a copiosa capoeira. E mais, dias sadios de gado, lembranças só minhas, as do rebanho de ovelhas, o carneiro de olhar firme, cabeça erguida, e os cordeiros mamando no biberom ao colo de mulheres sentadas nos degraus da corte. Falo sozinho, quem entretanto não morreu já só recorda os que morreram sobrevivendo ao esquecimento, à eternidade de segunda categoria.
Como essa mulher cuja face se esfumou no tempo que também lhe levou o nome. Ficaram apenas as mãos, o eco perdido de uma voz finalmente assentindo em me confiar o biberom, eu não seria muito maior do que o cordeiro.
E todas as recomendações iam para a braveza do carneiro, o feroz sultão entre o seu harém. Que nem me aproximasse! Os criados de lavoura, os mais novos, toureavam-no com uma cesta de vime, tão truncadas chegavam cá acima, qual televisão, quais notícias?!, as proezas taurinas em capotes de cores garridas. Mas o carneiro investia, marrava o fundo da cesta, os rapazes riam, oiço-os ainda, sem cara nem identidade, uma ténue expressão de gozo, já não há quem me ajude a fixar-lhes os contornos, investia o carneiro, disso tenho a certeza, a minha memória é um compêndio, às vezes faltam-lhe é umas páginas, agora no capítulo da tosquia, tarefa certa e um buraco na sua autoria. Quando as ovelhas se tornavam mais pequenas e menos gordurosas ao tacto. Não eram muitas, o rebanho era caseiro, a corte tacanha, com uma porta de madeira carcomida, remendada, e um cravelho a fechá-la. Num cantinho ao lado do estábulo, sob a janela do palheiro.
Falo sozinho, já disse, todos se interrogam - teria sido assim? - mas a lã tosquiada era lavada no tanque e alguêm - quem? - me explicava depois de onde provinham os mais pesados cobertores do pico do inverno.
Eu não teria mais de três, quatro anos o que não tira o rebanho estivesse lá, pastava no campo da horta e hoje entendo o chorado mistério do fim dos cordeiros. Já não a tempo de pegar neles, foram-se um pedaço antes da idade bastante. Como também o carneiro e a cesta de vime com que não o enfrentei. Por isso, ainda agora quando os avisto, carneiros e bodes, os agarro pelos cornos retorcidos, torço-lhes os cornos zangado com Cronos desde esse dia em que o rebanho desapareceu, já não me lembro - mas conjecturo - porquê.