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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Encontro de viaturas antigas de bombeiros

João-Afonso Machado, 04.06.15

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É justo tenha sido escolhido, para capa de revista, um da casa. Mas eles são mais de cem e estão chegando de todo o País. Dos confins transmontanos à perigosa proximidade com África. Todos carregados de idade e de vontade. No sábado será a exposição e no domingo o desfile.

O maior até hoje realizado em toda a Europa. O Encontro de Viaturas Antigas de Bombeiros, em V. N. de Famalicão. Não cabem nas palavras as emoções ante a beleza e o historial das que já arribaram e o quanto elas falam de outros tempos supostamente mais duros.

Comove a ambulância "pão de forma" baptizada Imaculada Conceição. Fez o seu serviço em Paredes de Coura, lá para cima, muito lá para cima, no fim de um emaranhado de curvas que não aconselharia cuidados urgentes e gravidade de maleitas. Quanto demoraria uma viagem ao Porto então?

É um exemplo apenas. Lavradas em cromados, em tantas outras viaturas, os nomes dos mecenas, dos benfeitores. Os símbolos das corporações também, na abundância dos baixos-relevos, ao som das sinetas, curvando pela rotação de imensos volantes de massas. 

Amanhã mais surgirão. Amarelos, até agora, só os Tirsenses. O Haynes de Viana da Foz do Lima proclama na sua lata - sempre em cromado que se leia - «Vida por vida». Os durienses ainda parecem trazer consigo as mazelas de quem vem de tão longe descendo socalcos. Talvez os beirões se queixem do mesmo.

O mais é ver. Ouvir. Cheirar. Sentir os meios rudimentares, o fascínio, ainda assim, do "carro da bomba", o desespero de enfermeiros e maqueiros, assim as ambulâncias voassem. Eras de heróis. E, felizmente, de um clima onde o vento leste soprava muito menos...

 

 

"A Sapataria Ângelo"

João-Afonso Machado, 04.06.15

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Aquele principio da Rua Capitão Manuel de Carvalho – depois de mais uma esquina em ruínas…– é um tesouro. Um bem presente lugar do passado que o futuro não guardará infelizmente. Uma história feita de vozes silenciosas obrigando-nos a adivinhar como foi à vista do que é. Como se o tempo andasse dessintonizado e o impossível se revelasse afinal ao alcance dos nossos olhos e do nosso tacto, na pose penteadinha da equipa de futebol do Benfica em 1905. Se acrescentar que em poster na parede, ajeitado num pedaço de vidro, já todos concluirão não vir aí uma apologia das ditas “grandes superfícies”.

Está bem, a gente sempre de relógio à espreita, invariavelmente apressados, atrasados, esmagados pela pressão da agenda (a “agenda” é linguagem de agora), já não dispensa o “híper”. Serve para emalar tudo, ou quase tudo, a preços de quantidades industriais. Serve até para arejar o fato-de-treino e para duas palavras fugidias a um conhecido qualquer. Mas há outros valores, insubstituíveis. Há descontos em vez de promoções, há curiosidades, humanidades e diversidades. Como uma sapataria, por exemplo.

Até prova em contrário, a mais antiga em Famalicão será a Sapataria Ângelo, idosa de um cento de anos. Sabem onde é? Pois se calhar não, males do tal corre-corre esbaforido, a Rua Capitão Manuel de Carvalho deixada já para trás e aquela porta, a montrinha e uma dúzia de sapatos expostos, tudo esmagado pela multidão indiferente, implacável ante os maiores oito metros quadrados do mundo. Que de mais área não disporá a Sapataria, os armários trepando a sua parede do fundo, as caixas arrumadas como tijolos, em rijo cartão do mais paralelipipédico design, rótulos não maiores do que selos de correio, e o fado da Mariquinhas saudando da telefonia ao lado de Nossa Senhora. Além dos sapatos, é uma fartura de palmilhas e atacadores e o resto não, as botas decerto entalariam os dedos dos pés no fechar das portadas.

O “Ângelo” da Sapataria era o Sr. Ângelo Silva, o seu fundador, também conhecido por Ângelo Feijão. Morreu vai para meio século e fabricava calçado por medida, auxiliado por outros três artistas, naquela exiguidade, sentados em bancos de pau, talvez nos degraus da escada de madeira, – poucos, pouquíssimos, quase nenhuns – um bonito corrimão e a porta que se abre para o desconhecido: outrora a casa que Ângelo Feijão projectou e construiu para si e para a sua filha única, actualmente o armazém do estabelecimento.

Sucedeu-lhe o genro, o Sr. João Oliveira, um quase octogenário que antes trabalhava nas empresas Sousa Lopes. Um bigodinho bem recortado, a fazer inveja ao Clark Gable. O derradeiro arquejo da Sapataria, o Sr. Ângelo não teve netos e os anos do Sr. João já vão pesando. Aquilo irá até que o stock se esgote. O mais será o seu merecido lugar na história pátria – onde só entra o produto nacional, regra da casa escrupulosamente e sempre cumprida pelo Sr. João, que aprendeu a vender calçado mas não a cozinhá-lo.

Não lhe perguntei se ainda vivia no andar de cima, o abrigo do seu sogro e da sua falecida Senhora. Perguntei-lhe de sapatos, porque me andavam fazendo falta uns levezinhos para os dias quentes que vêm aí. Ouvi histórias remotas, ecos dos seus tempos de caixeiro, as palmilhas que lhe preservavam os pés e o nariz quando corria Braga de lés a lés em missões profissionais. Vi-lhe os dedos naquele inimitável ritual dos sapateiros torcendo os sapatos a demonstrar a sua resistência, a sua qualidade. Se o artigo era o derradeiro grito da moda, eis uma questão absolutamente desinteressante para ambos. Confortável, barato, duradouro – mais não se exigia. Chegámos a acordo. Pedi-lhe mais umas notas sobre o estabelecimento, apontei-as no meu bloco. Tirei uma fotografias, prometi levar-lhe o jornal e nem eu nem a minha carteira regressámos a casa descalços.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 04.JUN.2015)